Rui Martins
Berna (Suiça) - Quando estávamos terminando o curso de Direito, no Largo de São Francisco, em 1963, criou-se, como de praxe, uma Comissão da Formatura. Naquela época, eu já não era um presbiteriano ativo e me debatia com as dúvidas que me levariam à descrença, principalmente depois da IPB ter tomado o partido dos militares.
Era um ano politicamente quente com os grandes debates das reformas de base, e a passagem pelas Arcadas de Leonel Brizola com seu verbo inflamado respondendo às acusações levantadas contra Jango pelo líder udenista Carlos Lacerda.
O mais importante era talvez a crença, entre os jovens, de que se podia mudar o mundo, por isso cada um de nós (não sei se mantenho esse comportamento do passado) estava sempre pronto a entrar numa trincheira, mesmo sem armas, para defender idéias de igualdade social, de combate à miséria com todo o ardor da juventude.
Ora, vez ou outra, nos intervalos das aulas (eu fazia o curso noturno), apareciam os membros da Comissão de Formatura para contar como iam organizar nossa festa, quanto poderia custar, onde ia ser o baile e como deveríamos pagar nossa parte. E numa dessas noites, fomos informados sobre a missa da formatura. Eu, pessoalmente, nunca imaginara que, numa Faculdade de Direito pública da USP, pudesse haver missa numa festa de formatura.
Pedi informações, e me foram dadas: era praxe (meus colegas advogados têm uma atração por palavras desse tipo e mantenho o original) os formandos pedirem a celebração de uma missa. O arcebispo já havia sido contatado e a missa seria na prestigiosa Catedral da Sé. « Mas vejam, respondi, nós estudamos numa faculdade pública e isso me parece um tanto estranho ».
- Mas é a tradição, me responderam. Ora, como nas Arcadas de São Francisco a tradição imperava, parecia muito normal mantê-la, mesmo se ao arrepio do princípio da separação da Igreja do Estado.
Como tenho um espírito de provocador (meus leitores já devem ter notado), perguntei como se faria com os protestantes (naquela época não se falava evangélicos), com os ortodoxos e com os judeus (não havia muçulmanos naquele grupo).
- Faremos como vem sendo feito (era de novo a tradição): os cultos não católicos terão o convite em separado e os formandos não católicos entregarão o convite da formatura com a separata aos seus convidados. No convite oficial só constará a Missa.
Como tenho o pavio curto, me levantei do lugar em que estava, no grande anfiteatro, e despejei tudo quanto pensava sobre esse desrespeito aos colegas de outros cultos e essa visão distorcida do direito de livre culto justamente por estudantes de Direito. Virou um enorme bate-boca com a intervenção de outros que passaram a me apoiar, no meio da reação de católicos que se consideravam insultados com a petulância de se querer quebrar uma velha tradição arcadiana.
O professor apareceu na porta, era hora de começar a aula, a discussão parou ali, mas de volta à minha República redigi um texto para abaixo-assinado e, já na manhã seguinte, fui ao curso diurno, expliquei aos colegas o incidente e pedi assinaturas. Em alguns dias, as assinaturas encheram duas ou três páginas, porque mesmo católicos, futuros advogados preferiam o respeito à laicidade que o privilégio de um culto sobre os outros.
Para evitar uma perda do abaixo-assinado, pedi a um colega fotografar com flash a entrega do documento ao presidente da Comissão. Para encurtar, o responsável pela Catedral da Sé informou que só haveria missa naquela igreja, se a cerimônia constasse no convite oficial e sem a presença de outros cultos religiosos. E, finalmente, todos os cultos de ação de graças inclusive a missa acabaram em convites em separado, como manda a laicidade.
Conto esse episódio para enfatizar, como não religioso, que todos os cultos e religiões devem ser livres em termos iguais. Hoje no Brasil, segundo denúncias feitas ao Comissariado de Direitos Humanos em Genebra, estão se registrando casos de ataques e violências contra umbandistas por evangélicos. Li, no caso do terremoto do Haiti, ter havido absurdas declarações de líderes evangélicos nos EUA e talvez no Brasil de ter sido um castigo de Deus ao paganismo haitiano.
É fato notório que nem todas as religiões são adeptas do ecumenismo e que chegam mesmo a insuflar o ódio e a guerra, como acontece hoje em alguns países e como aconteceu no passado com as Cruzadas e Isabel da Espanha, sem se esquecer a Inquisição. Por isso, o nosso moderno Estado de direito precisa estar atento a fim de evitar privilégios religiosos, perseguições ou desigualdades.
Os terreiros de umbanda são uma realidade no Brasil e devem gozar de todo direito das outras religiões. No Senado Federal, havia, não sei se foi aprovado, um projeto de lei restabelecendo o ensino religioso católico nas escolas em lugar de um ensino opcional das religiões em geral, como ocorre aqui na Europa, tais preferências e deslizes devem ser evitados.
Arthur Clarke, o autor do livro 2001, Odisséia no Espaço, levado ao cinema por Kubrick, previu um mundo futuro sem religião, mas enquanto não chegamos lá, é preciso se respeitar todos os cultos. Se Dilma acha que, por questão eleitoral, não deve reconhecer agora o direito dos terreiros de umbanda, não pode esquecer de fazê-lo nos seus primeiros meses de governo.
Direto da Redação
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