sábado, 23 de janeiro de 2010

HAITI - " Tratam os mortos como lixo "


''Tratam os mortos como lixo''

Nos melhores guias de viajante costuma aparecer um velho ditado sobre o Haiti: "80% da população é católica, 20% protestante e 100% professa o vodu". Também se constata que poucas religiões sofreram uma operação de desprestígio tão afligida como esta que nasceu na África e viajou para o Caribe com os primeiros escravos. Max Beauvoir é a Autoridade Suprema dos seguidores do vodu haitianos. Para os seus é uma espécie de Papa. Com 74 anos, casado e com uma filha de 45, vive rodeado de árvores gigantescas sagradas, a uma hora de Porto Príncipe com moto-táxi. Usa camisa branca, fala crioulo, francês, inglês e espanhol, tem uma casa de forma circular, vários templos no seu jardim e uma espécie de museu com esculturas de vodu. Lamenta que tenham enterrado tantos milhares de pessoas sem nenhum respeito, nem dignidade.

A reportagem é de Francisco Peregil e publicada pelo jornal El País, 22-01-2010. A tradução é de Vanessa Alves.

"O presidente René Préval mandou me chamar há quatro dias para realizar uma reunião com o resto do Governo. Aí falou-se da ajuda internacional, da distribuição, do caos... mas não tratamos o tema dos enterros. E me parece gravíssimo. Tratou-se as pessoas como lixo, sem a dignidade e o respeito que merece qualquer ser vivo. Sei que a situação é complexa e eu não tenho a solução. Mas, certamente, se tivéssemos sentado, teríamos encontrado alguma solução em meia hora. E ainda estamos a tempo, porque ainda têm muitos mortos por enterrar".

Os crentes do vodu costumam, segundo o Ati ou Autoridade Suprema, realizar a cerimônia do enterro durante nove dias. "Reunimos a família, os amigos e inimigos do morto. Durante esse tempo, comemos e convivemos juntos. Qualquer um que tenha algo a dizer sobre o morto o diz, seja bom ou mau. Depois enterramos o corpo, mas a alma vai para baixo do mar, um ano e um dia ou sete anos e um dia, depende. Durante esse tempo, se purifica. É importante saber que nós acreditamos na reencarnação e que a pessoa vive oito vezes como mulher e oito vezes como homem. Isto é assim porque o objetivo da vida é ganhar conhecimento. Depois desse processo, todo o mundo, sem exceção, integra-se em Deus e começa uma existência na qual cuida de todas as coisas vivas do Universo".

Beauvoir esclarece que a imagem que se tem em grande parte do mundo do vodu como uma crença cujos bruxos [ele renega esta palavra] ou sacerdotes podem infligir dano aos demais se valendo, entre outras ferramentas, de um boneco que se picam alfinetes é totalmente falsa. "Não vi nem um só boneco desses em todo o Haiti. Em qualquer grupo social há gente boa ou má, mas o vodu não promove que se faça mal a ninguém. Há uma vertente religiosa do vodu. E outra vertente filosófica. Temos normas muito definidas sobre como é preciso viver, sentar-se, comer, caminhar. Isso é o que permite a um haitiano reconhecer outro em qualquer parte do mundo simplesmente ao vê-lo andando ao longe".

Beauvoir atribui essa má imagem de sua religião ao cristianismo e às potências estrangeiras como a França, os Estados Unidos e a Espanha. "O vodu fez o Haiti como país. Nossa independência foi alcançada graças a uma cerimônia celebrada no dia 14 de agosto de 1791, conhecida como a de Bwa Kayiman. Haiti é vodu". Quando lhe diz: "Nossa, que país mais desgraçado que o vodu gerou, não?", o Ati responde: "Mas os espanhóis, os franceses e os Estados Unidos nunca perdoaram nossa independência e fizeram todo o possível para deixar nossa vida mais difícil. E o pior foi quando os cristãos chegaram ao poder em 1816. Ainda se mantêm aí, com a ajuda econômica dos Estados Unidos e da França".

Desde 2003, os sacerdotes do vodu desfrutam do primeiro reconhecimento oficial como religião. Aquele foi o ano em que o ex-presidente Aristide lhes concedeu autoridade para unir as pessoas em matrimônio. Simplesmente Ati significa grande árvore que se abre como um guarda-chuva para proteger os menores. Neste caso, ele considera que tem que usar a voz para defender seu povo, já que Préval não os defende. "Eu agradeço que o presidente tenha querido me consultar, mas ele segue favorecendo a Igreja de Roma, os europeus e americanos que consideram suas religiões européias ou centro-asiáticas superiores à africana".

Nenhum comentário: