A tragédia no Haiti cobra do mundo que conte a verdadeira história desse país. Os noticiários o tratam de nação mais pobre das Américas e do Caribe sem aprofundar as razões que o levaram a tão deplorável situação. Retrospectivas superficiais falam em ocupações, sem explicar os seus fins, e em sucessões de ditaduras, sem especificar quem as apoiava, como se o Haiti tivesse construído sozinho o seu próprio destino e de forma incompetente.
Por trás desta superficialidade talvez ainda esteja o racismo dizendo que um país de negros não tem como dar certo. Falta contar que no Haiti aconteceu a única insurreição vitoriosa de escravos das Américas e que ele foi o primeiro país do mundo a abolir a escravidão. Inspirado pelos ideais iluministas que derrubaram a monarquia na França, o Haiti ousou ser um país independente e Toussaint L’Ouverture, um dos personagens mais notáveis da história, o imaginou aliado da França revolucionária no campo das idéias.
Traído pelo ranço colonial francês que não tolerava um regime de igualdade no que fora sua mais próspera colônia nas Américas, Toussaint foi preso e morto antes de ver a independência completa de seu país. Ela viria pouco depois, em 1803, mas a um preço muito alto. Os regimes escravistas da Europa e dos Estados Unidos promoveram um bloqueio comercial de 60 anos, sufocando economicamente o país que tivera sua produção açucareira destruída na guerra de libertação. Para suspender esse bloqueio, o Haiti foi obrigado a assinar um acordo pelo qual pagaria à França uma indenização de 150 milhões de francos pela sua liberdade. O país pagou esta “dívida” de 1825 a 1888.
E agora vem a França, pousar de magnânima, anunciando que irá anular a dívida de 4 milhões de euros que o Haiti teria com ela. A França tem uma dívida histórica com o Haiti e na lista de responsáveis pelo que o país é hoje ocupa a primeira posição. A presença francesa na recuperação do Haiti após o terremoto é pífia, assim como a da União Européia, que acenou com 3 milhões de euros de ajuda. Esse dinheiro não é nada. Organizações não governamentais levantaram mais do que o dobro disso.
Noticiários falam das ajudas e dos valores concedidos e muitos se comprazem como se grande coisa tivesse sendo feita. Na crise financeira global, os países ricos foram muito mais generosos com os bancos do que estão sendo com os haitianos. Na zona do euro foram levantados pacotes de mais de um trilhão de euros. Nos Estados Unidos, só o JP Morgan recebeu 25 bilhões de dólares do governo. O “privilégio” da descriminação não é exclusivo do Haiti. Só em 2008, o setor financeiro recebeu 18 bilhões de dólares, quase dez vezes mais recursos do que todos os países pobres nos últimos 50 anos: US$ 2 bilhões. Os dados são da ONU.
O Ocidente tem uma dívida com o Haiti e o terremoto que acabou de destruir o país seria uma boa oportunidade de reparação. Mas assim como Toussaint L’Ouverture não imaginava que a França revolucionária pudesse ser capaz de restabelecer a escravidão, que o Haiti não espere muito altruísmo em sua reconstrução, principalmente se for liderada pelos Estados Unidos, que já fincaram sua bandeira no aeroporto de Porto Príncipe. |
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