sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

MÍDIA - Mídia na berlinda na América Latina.

Altamiro Borges

“O terrorismo midiático é a primeira expressão e condição necessária do terrorismo militar e econômico que o Norte industrializado emprega para impor à humanidade a sua hegemonia imperial e o seu domínio neocolonial”. Manifesto do 1º Encontro Latino-Americano contra o Terrorismo Midiático (março de 2008).



“As mobilizações populares e a ascensão de governos progressistas realçam a oportunidade de uma América Latina pós-neoliberal [...], que permita maior controle social sobre a mídia”. Dênis de Moraes, autor do livro “As batalhas da mídia”.


A América Latina vive um processo inédito e intenso de mudanças políticas, que já se refletem no terreno econômico e social e também nos rumos da integração regional. O continente que foi saqueado pelas nações colonialistas, como tão bem retratou o escritor Eduardo Galeano no livro “As veias abertas da América Latina”, que sofreu com sangrentas ditaduras militares e que foi o principal laboratório das destrutivas políticas neoliberais, atualmente se levanta e tateia caminhos alternativos, que garantam mais democracia, soberania nacional e justiça social. A perspectiva do “socialismo do século 21” volta a se colocar no horizonte na região da heróica revolução cubana.

Nesta América Latina rebelde, a mídia hegemônica está na berlinda. Ela é criticada por seu papel manipulador, pela postura de criminalização dos movimentos sociais e pela ação destabilizadora contra governos democraticamente eleitos. Em todos os países surgem entidades que priorizam a batalha pela democratização dos meios de comunicação. Governantes progressistas, oriundos das lutas contra a regressão neoliberal, também adotam medidas para se contrapor ao terrorismo midiático. Mais ousados ou mais moderados, conforme a correlação de forças de cada país, eles tentam regulamentar o setor, incentivam redes públicas e polemizam com os barões da mídia.

Apoio aos golpes e às ditaduras

A revolta contra a mídia hegemônica é plenamente justificada. Com raras e honrosas exceções, o seu passado a condena! Afinal, ela sempre expressou o que há de mais antidemocrático, antipovo e antinação no sofrido continente latinoamericano. Sempre serviu às elites rascistas e golpistas e reproduziu servilmente os interesses das potências imperialistas, em especial os dos EUA. Num passado mais remoto, a imprensa burguesa, que ainda não havia erguido seus impérios midáticos, satanizou o jovem movimento camponês e operário da região e fez de tudo para sabotar governos burgueses nacional-desenvolvimentistas, como o de Lázaro Cárdenas (México), Jacobo Arbens (Guatemala), Juan Perón (Argentina), Velasco Alvarado (Peru) e Getúlio Vargas (Brasil).

Já no passado mais recente, estimulada pela propaganda estadunidense da “guerra fria”, a mídia hegemônica clamou por golpes militares para evitar o “perigo comunista” e o risco de contágio da revolução cubana. Muitas das atuais corporações midiáticas prosperaram durante as violentas ditaduras e têm as mãos sujas de sangue. Um dos casos mais execráveis foi o do Chile. Agustín Edwards, dono do jornal El Mercurio, foi um dos principais mentores do golpe que derrubou o presidente Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973. Relatórios desclassificados da CIA, a agência terrorista dos EUA, confirmam que o empresário recebeu US$ 1,5 milhão de subsídios para criar o clima favorável à conspiração militar comandada pelo general Augusto Pinochet [1].

Além da ajuda da CIA, o First National Bank anistiou as dívidas do caloteiro Agustín e inúmeras empresas envolvidas na preparação do golpe fizeram depósitos ilegais na sua conta na Suíça. “El Mercurio é importante. É um espinho cravado nas costas de Allende. Ajuda a manter alta a moral das forças opositoras”, explicou, às vésperas do golpe, Willian Jorden, assessor do secretário de Defesa Henry Kissinger. Um memorando da CIA de 1972 enalteceu o jornal, que “publica quase diariamente editoriais com críticas ao governo” e atua “como centro da agrupação da oposição”. Outro relatório afirmou que “a assistência dada a El Mercurio tinha como objetivo que o jornal independente pudesse sobreviver como porta-voz da democracia e contra a Unidade Popular”, a coalisão de esquerda que elegeu e dava sustentava o governo democrático de Salvador Allende.

A retribuição do sanguinário Pinochet foi generosa. Durante a ditadura, a corporação prosperou e hoje possuí quatro jornais nacionais, 21 diários regionais e a rede de rádios FM Digital. Um livro recém-lançado, “El diario de Agustín”, revela que o império cresceu acorbertando as violações de direitos humanos durante os 17 anos do cruel regime militar – que resultaram, segundo dados oficiais, em mais de 3 mil chilenos mortos e cerca de 35 mil torturados. El Mercurio noticiava os assassinatos como se fossem suicídios ou “acidentes de trânsito”, como na morte do diplomata chileno-espanhol Carmelo Soria, em julho de 1974. Quando não dava para ocultar, ele justificava os assassinatos como “conseqüência da guerra civil iniciada em 1973 pelos marxistas” [2].

A mesma postura golpista foi adotada por outros barões da mídia da América Latina [3]. O grupo El Clarín, que hoje compõe o clube dos 50 maiores impérios midiáticos do planeta, articulou a conspiração militar na Argentina. “A economia se encontra numa etapa vizinha ao colapso total. A violência subversiva e sua ação criminosa exigem ordenar medidas adequadas para exterminá-las... Abre-se agora uma nova etapa com renascidas esperanças”, afirmou o editorial do jonal El Clarín de 24 de março de 1976. A sua linha editorial “serviu para justificar os horrendos crimes da ditadura... Só quando os ‘subversivos’ foram virtualmente eliminados pelos militares e estes já não eram mais necessários, El Clarín se transformou num embandeirado da democracia” [4].

Porta-voz da devastação neoliberal

A exemplo da Argentina, quando as crises econômicas e políticas isolaram os regimes militares e a resistência popular avançou no continente, as maiores corporações da mídia se travestiram de democratas e passaram a pregar o receituário neoliberal. Elas substituíram a ditadura militar pela ditadura do mercado. Ajudaram a criar o consenso neoliberal em defesa do desmonte do Estado, da nação e do trabalho. Adoradores do “deus-mercado”, as maiores redes de rádio e televisão e os jornais tradicionais pregaram a privatização criminosa das estatais, o corte dos gastos sociais, a flexiblização dos direitos trabalhistas e a total libertinagem financeira. Os jornalistas críticos do neoliberalismo foram afastados das redações, que foram ocupadas pelos agentes do rentismo [5].

Através de técnicas requintadas de publicidade, a mídia fabricou “candidatos” e ajudou a eleger e reeleger vários presidentes neoliberais, adpetos do “Consenso de Washington”, como Fernando Henrique Cardoso (Brasil), Alberto Fujimore (Peru) e Carlos Menem (Argentina), entre outros. Após a “década perdida”, que fragilizou a economia nos anos 1980, veio a “década maldita” do neoliberalismo, com as suas taxas declinantes de crescimento e a explosão do desemprego e da informalidade. As nações foram escancaradas para os capitais estrangeiros, os Estados foram privatizados, a miséria explodiu e a vida foi mercantilizada. As “relações carnais com os EUA”, pregadas por Menem, tornaram a região ainda mais servil aos desígnios do “império do mal”.

Mas o devastador tsunami neoliberal, que inicialmente seduziu parcelas das camadas médias e dos próprios trabalhadores, como aponta estudo do sociólogo Armando Boito Jr. [6], não durou muito tempo. Aos poucos, a luta contra os seus efeitos destrutivos e regressivos ganhou impulso, desafiando o “pensamento único” emburrecedor da mídia hegemônica. Através de várias formas de rebeldia, dos levantes populares que derrubaram 11 presidentes em curto espaço de tempo aos Fóruns Sociais Mundiais deflagrados no Brasil, a resistência cresceu e ganhou protagonismo. No geral, a crescente revolta contra o neoliberalismo desaguou na vitória das forças progressistas nas eleições presidenciais, que adquiriram centralidade na luta política no continente [7].

O ciclo inédito e impressionante de vitórias de candidatos progressistas na América Latina teve início com a eleição do militar rebelde Hugo Chávez, na Venezuela, em dezembro de 1998. Na seqüência, numa guinada à esquerda, chegam ao governo central um líder operário no Brasil, um peronista antineoliberal na Argentina, um ex-exilado político no Uruguai, um líder indígena na Bolívia, um economista heterodoxo no Equador, um ex-guerrilheiro na Nicarágua, uma mulher vítima da ditadura no Chile, um teólogo da libertação no Paraguai – no início de 2009, um jovem candidato da FMLN, a guerrilha que depôs suas armas, é eleito em El Salvador. De laboratório do neoliberalismo, a América Latina despontou como vanguarda mundial da luta por mudanças.

Com ritmos e visões diferenciadas, cada um destes novos governantes procura avançar nas novas “vias abertas na América Latina”, visando superar a destruição neoliberal e construir nações mais democráticas, soberanas e justas. Eles também apostam na integração regional como contraponto à desintegração imposta pelos EUA. Com todas as suas contradições, este novo ciclo tem sentido progressista (8). Para o sociólogo Emir Sader, “o continente onde o neoliberalismo nasceu – no Chile e na Bolívia –, ainda mais se estendeu e encontrou um território privilegiado, tornou-se, em pouco tempo, o espaço de maior resistência e construção de alternativas... São duas faces da mesma moeda: justamente por ter sido laboratório das experiências neoliberais, a América Latina viveu a ressaca dessas experiências, tornando-se o elo mais fraco da cadeia neoliberal” [9].

NOTAS

1- Mário Augusto Jakobskind. “Reações à democratização da informação”. Observatório da Imprensa, 07/11/06.

2- Daniela Estrada. “El Mercurio y la dictadura. Historia de una colusión". Rebelión, 26/05/09.

3- A postura da mídia brasileira no golpe e na ditadura militar é descrita no Capítulo IV.

4- Andrés Iari. “Chávez, Evo y Correa contra los medios de comunicación”. Rebelión, 12/05/09.

5- Pascual Serrano. “Los medios e la crisis mundial”. Exposição apresentada no Fórum Mundial de Mídia Livre em Belém do Pará, em janeiro de 2009.

6- Armando Boito Jr. Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. Editora Xamã, SP, 1999.

7- Roberto Regalado. América Latina entre siglos. Dominación, crisis, lucha social e alternativas politicas de la izquierda. Editora Ocian Press, Cuba, 2006.

8- Altamiro Borges. “As vias abertas da América Latina”.

9- Emir Sader. A nova toupeira. Os caminhos da esquerda latino-americana. Boitempo Editorial, SP, 2009.

- Extraído do segundo capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir o livro, entrar em contato com Eliana Ada no endereço – livro@vermelho.org.br

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