Zizek e o mal-estar com as lógicas do capitalismo
Enviado por luisnassif
Por Webster Franklin
A caminho de uma ruptura global
Chegada dos protestos ao Brasil e Turquia revela: há
mal-estar generalizado contra lógicas e ideologia do capitalismo.
Desafio é construir alternativas e nova democracia
Slavoj Žižek,
London Review of Books
Tradução Vila Vudu
Em seus primeiros escritos, Marx descreve a situação
na Alemanha como uma daquelas na qual a única resposta a problemas
particulares seria a solução universal: a revolução global. É expressão
condensada da diferença entre período reformista e período
revolucionário: em período reformista, a revolução global permanece
como sonho que, se serve para alguma coisa, é apenas para dar peso às
tentativas para mudar alguma coisa localmente; em período
revolucionário, vê-se claramente que nada melhorará, sem mudança global
radical. Nesse sentido puramente formal, 1990 foi ano revolucionário:
as muitas reformas parciais nos estados comunistas jamais dariam conta
do serviço; e era necessária uma quebra total, para resolver todos os
problemas do dia a dia. Por exemplo, o problema de dar suficiente
comida às pessoas.
Em que ponto estamos hoje, quanto a essa diferença?
Os problemas e protestos dos últimos anos são sinais de que se aproxima
uma crise global, ou não passam de pequenos obstáculos que pode
enfrentar mediante intervenções locais? O mais notável nas erupções é
que estão acontecendo não apenas, nem basicamente, nos pontos fracos do
sistema, mas em pontos que, até aqui, eram percebidos como histórias de
sucesso. Sabemos por que as pessoas protestam na Grécia ou na Espanha;
mas por que há confusão em países prósperos e em rápido desenvolvimento
como Turquia, Suécia ou Brasil?
Com algum distanciamento, pode-se ver que a
revolução de Khomeini em 1979 foi o caso original de “dificuldades no
paraíso”, dado que aconteceu em país que caminhava a passos largos para
uma modernização pró-ocidente, e era o mais estável aliado do ocidente
na região.
Antes da atual onda de protestos, a Turquia era
quente: modelo ideal de estado estável, a combinar pujante economia
liberal e islamismo moderado. Pronta para a Europa, um bem-vindo
contraste com a Grécia mais “europeia”, colhida num labirinto
ideológico e andando rumo à autodestruição econômica. Sim, é verdade:
aqui e ali sempre viam-se alguns sinais péssimos (a Turquia, sempre a
negar o holocausto dos armênios; prisão de jornalistas; o status não
resolvido dos curdos; chamamentos a uma “grande Turquia” que
ressuscitaria a tradição do Império Otomano; imposição, vez ou outra,
de leis religiosas). Mas eram descartados como pequenas máculas que não
comprometeriam o grande quadro.
E então, explodiram os protestos na praça Taksim.
Não há quem não saiba que os planos para transformar um parque em torno
da praça Taksim no centro de Istambul em shopping center não foram “o
caso”, naqueles protestos; e que um mal-estar muito mais profundo
ganhava força. O mesmo se deve dizer dos protestos de meados de junho
no Brasil: foram desencadeados por um pequeno aumento na tarifa do
transporte público, e prosseguiram mesmo depois de o aumento ter sido
revogado. Também nesse caso, os protestos explodiram num país que –
pelo menos segundo a mídia – estava em pleno boom econômico e com todos
os motivos para sentir-se confiante quanto ao futuro. Nesse caso, os
protestos foram aparentemente apoiados pela presidente Dilma Rousseff,
que se declarou satisfeitíssima com eles.
O que une protestos em todo o mundo — por
mais diversos que sejam, na aparência — é que todos reagem contra
diferentes facetas da globalização capitalista
É crucialmente importante não vermos os protestos
turcos meramente como sociedade civil secular que se levanta contra
regime islamista autoritário, apoiado por uma maioria islamista
silenciosa. O que complica o quadro é o ímpeto anticapitalista dos
protestos. Os que protestam sentem intuitivamente que o fundamentalismo
de mercado e o fundamentalismo islâmico não se excluem mutuamente.
A privatização do espaço público por ação de um
governo islamista mostra que as duas modalidades de fundamentalismo
podem trabalhar de mãos dadas. É sinal claro de que o casamento “por
toda a eternidade” de democracia e capitalismo já caminha para o
divórcio.
Também é importante reconhecer que os que protestam
não visam a nenhum objetivo “real” identificável. Os protestos não são,
“realmente”, contra o capitalismo global, nem “realmente” contra o
fundamentalismo religioso, nem “realmente” a favor de liberdades civis
e democracia, nem visam “realmente” qualquer outra coisa específica. O
que a maioria dos que participaram dos protestos “sabem” é de um
mal-estar, de um descontentamento fluido, que sustenta e une várias
demandas específicas.
A luta para entender os protestos não é luta só
epistemológica, com jornalistas e teóricos tentando explicar seu “real”
conteúdo: é também luta ontológica pela própria coisa, o que esteja
acontecendo dentro dos próprios protestos. É apenas luta contra governo
corrupto? É luta contra governo islâmico autoritário? É luta contra a
privatização do espaço público? A pergunta continua aberta. E de como
seja respondida dependerá o resultado de um processo político em
andamento.
Em 2011, quando irrompiam protestos por toda a
Europa e todo o Oriente Médio, muitos insistiram que não fossem
tratados como instâncias de um único movimento global. Em vez disso,
argumentavam, haveria uma resposta específica para cada situação
específica. No Egito, os que protestavam queriam o que em outros países
era alvo das críticas do movimento Occupy: “liberdade” e “democracia”.
Mesmo entre países muçulmanos, haveria diferenças cruciais: a Primavera
Árabe no Egito seria contra um regime autoritário e corrupto aliado do
ocidente; a Revolução Verde no Irã, que começou em 2009, seria contra o
islamismo autoritário. É fácil ver o quanto essa particularização dos
protestos serve bem aos defensores do status quo: não há nenhuma ameaça
direta à ordem global como tal. Só uma série de problemas locais
separados…
O capitalismo global é processo complexo que afeta
diferentes países de diferentes modos. O que une todos os protestos,
por mais multifacetados que sejam, é que todos reagem contra diferentes
facetas da globalização capitalista. A tendência geral do capitalismo
global é hoje expandir o mercado, invadir e cercar o espaço público,
reduzir os serviços públicos (saúde, educação, cultura) e impor cada
vez mais firmemente um poder político autoritário. Nesse contexto, os
gregos protestam contra o governo do capital financeiro internacional e
contra seu próprio estado ineficiente e corrupto, cada dia menos capaz
de prover os serviços sociais básicos. Nesse contexto, os turcos
protestam contra a comercialização do espaço público e contra o
autoritarismo religioso. E os egípcios protestam contra um governo
apoiado pelas potências ocidentais. E os iranianos protestam contra a
corrupção e o fundamentalismo religioso. E assim por diante.
Nenhum desses protestos pode ser reduzido a uma
única questão. Todos lidam com uma específica combinação de pelo menos
dois problemas, um econômico (da corrupção à ineficiência do próprio
capitalismo); o outro, político-ideológico (da demanda por democracia à
demanda pelo fim da democracia convencional multipartidária). O mesmo
se aplica ao movimento Occupy. Na profusão de declarações (muitas vezes
confusas), o movimento manteve dois traços básicos: primeiro, o
descontentamento com o capitalismo como sistema, não apenas contra um
ou outro corrupto ou corrupções locais; segundo, a consciência de que a
forma institucionalizada de democracia multipartidária não tem meios
para combater os excessos capitalistas. Em outras palavras, é preciso
reinventar a democracia.
A causa subjacente dos protestos ser o capitalismo
global não significa que a única solução seja “derrubar” o capitalismo.
Nem é viável seguir a alternativa pragmática, que implica lidar com
problemas individuais enquanto se espera por transformação radical.
Essa ideia ignora o fato de que o capitalismo global é necessariamente
contraditório e inconsistente: a liberdade de mercado anda de mãos
dadas com os EUA protegerem seus próprios agronegócios e
agronegociantes; pregar a democracia anda de mãos dadas com apoiar o
governo da Arábia Saudita.
Essa inconsistência abre um espaço para a
intervenção política: onde o capitalista global é forçado a violar suas
próprias regras, ali há uma oportunidade para insistir em que ele
obedeça àquelas regras. Exigir coerência e consistência em pontos
estrategicamente selecionados nos quais o sistema não pode pagar para
ser coerente e consistente é pressionar todo o sistema. A arte da
política está em impor demandas específicas as quais, ao mesmo tempo em
que são perfeitamente realistas, ferem o coração da ideologia
hegemônica e implicam mudança muito mais radical. Essas demandas, por
mais que sejam viáveis e legítimas, são, de fato, impossíveis. Caso
exemplar é a proposta de Obama para prover assistência pública
universal à saúde. Por isso as reações foram tão violentas.
Um movimento político começa com uma ideia, algo por
que lutar, mas, no tempo, a ideia passa por transformação profunda –
não apenas alguma acomodação tática, mas uma redefinição essencial –,
porque a própria ideia passa a ser parte do processo: torna-se
sobredeterminada.* Digamos que uma revolta comece com uma demanda por
justiça, talvez sob a forma de demanda pela rejeição de uma determinada
lei. Depois de o povo estar profundamente engajado na revolta, ele
percebe que será preciso muito mais do que a demanda inicial, para que
haja verdadeira justiça. O problema então é definir, precisamente, em
que consiste esse “muito mais”.
A perspectiva liberal-pragmática entende que os
problemas podem ser resolvidos gradualmente, um a um: “Há gente
morrendo agora em Rwanda, então esqueçam a luta anti-imperialista e
vamos impedir o massacre”. Ou: “Temos de combater a pobreza e o racismo
já, aqui e agora, não esperar pelo colapso da ordem capitalista
global”. John Caputo argumenta exatamente assim em After the Death of
God (2007):
Eu ficaria perfeitamente feliz se os políticos da
extrema-esquerda nos EUA fossem capazes de reformar o sistema
oferecendo assistência universal à saúde, redistribuindo efetivamente a
riqueza mais equitativamente com um sistema tributário [orig. Internal
Revenue Code (IRC)] redefinido, restringindo o financiamento privado de
campanhas eleitorais, autorizando o voto universal, para todos,
tratando com humanidade os trabalhadores migrantes, e levando a efeito
uma política externa multilateralista que integrasse o poder dos EUA
dentro da comunidade internacional etc. Ou seja, intervindo sobre o
capitalismo mediante reformas profundas, de longo alcance… Se depois de
fazer tudo isso, Badiou e Žižek ainda reclamarem de um monstro chamado
Capitalismo a nos assombrar, eu estaria inclinado a receber o tal
monstro com um bocejo.
Não se trata de “derrubar” o capitalismo.
Mas de construir lógicas de uma sociedade que vá além dele. Isso inclui
novas formas de democracia
O problema aqui não é a conclusão de Caputo: se se
pode alcançar tudo isso dentro do capitalismo, por que não ficar aí
mesmo? O problema é a premissa subjacente de que seja possível obter
tudo isso dentro do capitalismo global em sua forma atual. Mas e se os
emperramentos e mau funcionamento do capitalismo, que Caputo listou,
não forem meras perturbações contingentes, mas necessários por
estrutura? E se o sonho de Caputo é um sonho de ordem capitalista
universal, sem sintomas, sem os pontos críticos nos quais sua “verdade
reprimida” mostra a própria cara?
Os protestos e revoltas de hoje são sustentados pela
combinação de demandas sobrepostas, e é aí que está a sua força: lutam
por democracia (“normal”, parlamentar) contra regimes autoritários;
contra o racismo e o sexismo, especialmente quando dirigidos contra
imigrantes e refugiados; contra a corrupção na política e nos negócios
(poluição industrial do meio ambiente etc.); pelo estado de bem-estar
contra o neoliberalismo; e por novas formas de democracia que avancem
além dos rituais multipartidários. Questionam também o sistema
capitalista global como tal, e tentam manter viva a ideia de uma
sociedade que avance além do capitalismo.
Duas armadilhas há aí, a serem evitadas: o falso
radicalismo (“o que realmente interessa é abolir o capitalismo
liberal-parlamentar; todas as demais lutas são secundárias”), mas,
também, o falso gradualismo (“no momentos temos de lutar contra a
ditadura militar e por democracia básica, todos os sonhos de socialismo
devem ser, agora, postos de lado”).
Aqui, ninguém se deve envergonhar de acionar a
distinção maoista entre antagonismo principal e antagonismos
secundários, entre os que mais interessam no fim e os que dominam hoje.
Há situações nas quais insistir no antagonismo principal significa
perder a oportunidade de acertar golpe significativo, no curso da luta.
Só uma política que tome plenamente em consideração
a complexidade da sobredeterminação merece o nome de estratégia. Quando
se embarca numa luta específica, a pergunta chave é: como nosso
engajamento ou desengajamento nessa luta afeta outras lutas?
A regra geral é que quando uma revolta contra regime
semidemocrático começa – como no Oriente Médio em 2011 – é fácil
mobilizar grandes multidões com slogans (por democracia, contra a
corrupção etc.). Mas muito rapidamente temos de enfrentar escolhas
muito mais difíceis. Quando a revolta é bem-sucedida e alcança o
objetivo inicial, nos damos conta de que o que realmente nos perturbava
(a falta de liberdade, a humilhação diária, a corrupção, o futuro pouco
ou nenhum) persiste sob novo disfarce. Nesse momento somos forçados a
ver que havia furos no próprio objetivo inicial. Pode implicar que se
chegue a ver que a democracia pode ser uma forma de des-liberdade, ou
que se pode exigir muito mais do que apenas a mera democracia política:
que a vida social e econômica tem de ser também democratizada.
Em resumo, o que à primeira vista tomamos como
fracasso que só atingia um nobre princípio (a liberdade democrática) é
afinal percebido como fracasso inerente ao próprio princípio. Essa
descoberta – de que o princípio pelo qual lutamos pode ser
inerentemente viciado – é um grande passo em qualquer educação política.
Representantes da ideologia reinante mobilizam todo
o seu arsenal para impedir que cheguemos a essa conclusão radical.
Dizem-nos que a liberdade democrática implica suas próprias
responsabilidades, que tem um preço, que é sinal de imaturidade esperar
demais da democracia. Numa sociedade livre, dizem eles, devemos agir
como capitalistas e investir em nossa própria vida: se fracassarmos, se
não conseguirmos fazer os necessários sacrifícios, ou se de algum modo
não correspondermos, a culpa é nossa.
Em sentido político mais direto, os EUA perseguem
coerentemente uma estratégia de controle de danos em sua política
externa, recanalizando os levantes populares para formas
capitalistas-parlamentares aceitáveis: na África do Sul, depois do
apartheid; nas Filipinas, depois da queda de Marcos; na Indonésia,
depois de Suharto etc. É nesse ponto que a política propriamente dita
começa: a questão é como empurrar ainda mais adiante, depois que passa
a primeira, excitante, onda de mudança; como dar o passo seguinte, sem
sucumbir à tentação “totalitária”; como avançar além de Mandela, sem
virar Mugabe.
O que significaria isso, num caso concreto?
Comparemos dois países vizinhos, Grécia e Turquia. À primeira vista,
talvez pareçam completamente diferentes: Grécia, presa na armadilha da
ruinosa política de austeridade; Turquia em pleno boom econômico e
emergindo como nova superpotência regional. Mas e se cada Turquia
contiver sua própria Grécia, suas próprias ilhas de miséria? Como
Brecht diz em sua Elegias Hollywoodenses (orig. Hollywood Elegies’
[1942]),
A vila de Hollywood foi planejada segundo a ideia
De que o povo aqui seria proprietário de partes do paraíso. Ali,
Chegaram à conclusão de que Deus
Embora precisando de céu e inferno, não precisava
Planejar dois estabelecimentos, mas
Só um: o paraíso. Que esse,
para os pobres e infortunados, funciona
como inferno.[1]
Esses versos descrevem bastante bem a “aldeia
global” de hoje: aplicam-se ao Qatar ou Dubai, playgrounds para os
ricos, que dependem de manter os trabalhadores imigrantes em estado de
semiescravidão, ou escravidão. Exame mais detido revela semelhanças
entre Turquia e Grécia: privatizações, o fechamento do espaço público,
o desmonte dos serviços sociais, a ascensão de políticos autoritários.
Num plano elementar, os que protestam na Grécia e os que protestam na
Turquia estão engajados na mesma luta. O melhor caminho talvez seja
coordenar as duas lutas, rejeitar as tentações “patrióticas”, deixar
para trás a inimizade histórica entre os dois países e buscar espaços
de solidariedade. O futuro dos protestos talvez dependa disso.
Slavoj Žižek é um filósofo e teórico
crítico esloveno. É professor da European Graduate School e pesquisador
sênior no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana.
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Notas da tradução:
* Em seu prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política,
Marx escreveu (no seu pior modo evolucional) que a humanidade só se
propõe problemas que seja capaz de resolver. E se invertermos a ganga
dessa frase e declararmos que, regra geral, a humanidade propõe-se
problemas que não pode resolver, e assim dispara um processo cujo
desdobramento é imprevisível, no curso do qual, a própria tarefa é
redefinida?
[1] Não encontramos tradução para o português. Aqui, tradução de trabalho, sem ambição literária, só para ajudar a ler [NTs].
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