Neoliberalismo e consumo alienado. O impacto cultural.
por José C. Valenzuela Feijóo [*]
À memoria de Mercedes Urriolagoitia
e Ligeia Balladares.
À memoria de Mercedes Urriolagoitia
e Ligeia Balladares.
Propósitos.
Nas economias neoliberais latino-americanas o fetichismo inerente à forma mercadoria assume uma profundidade que talvez surpreendesse teóricos como Veblen e o próprio Max. A inversão e alienação fetichista observam-se, muito especialmente, no caso de alguns bens de consumo pessoal. Na actualidade, uma parte importante do gasto em consumo das famílias aplica-se na compra de bens não devido ao seu valor de uso intrínseco e sim do seu significado social. O televisor, o automóvel, o telemóvel, os sapatos, etc compram-se não pela sua utilidade natural e sim pelos "poderes mágicos" que lhe são atribuídos em termos de ascensão e nível social. Este fenómeno de arrivismo enfermiço está muito associado às bases estruturais do estilo neoliberal. Nas notas que se seguem, tentamos delinear seus traços e fundamentos. Apoiámo-nos na experiência chilena – aquela que se considera a manifestação com mais êxito do neoliberalismo latino-americano – mas o fenómeno reproduz-se em termos semelhantes no Brasil, na Colômbia, no México (na parte norte do país assume traços quase delirantes), etc. Projecta-se como ideologia para consumo da classe média e opera como um dos pilares que afirma e sustenta os regimes neoliberais. [1]
Nas economias neoliberais latino-americanas o fetichismo inerente à forma mercadoria assume uma profundidade que talvez surpreendesse teóricos como Veblen e o próprio Max. A inversão e alienação fetichista observam-se, muito especialmente, no caso de alguns bens de consumo pessoal. Na actualidade, uma parte importante do gasto em consumo das famílias aplica-se na compra de bens não devido ao seu valor de uso intrínseco e sim do seu significado social. O televisor, o automóvel, o telemóvel, os sapatos, etc compram-se não pela sua utilidade natural e sim pelos "poderes mágicos" que lhe são atribuídos em termos de ascensão e nível social. Este fenómeno de arrivismo enfermiço está muito associado às bases estruturais do estilo neoliberal. Nas notas que se seguem, tentamos delinear seus traços e fundamentos. Apoiámo-nos na experiência chilena – aquela que se considera a manifestação com mais êxito do neoliberalismo latino-americano – mas o fenómeno reproduz-se em termos semelhantes no Brasil, na Colômbia, no México (na parte norte do país assume traços quase delirantes), etc. Projecta-se como ideologia para consumo da classe média e opera como um dos pilares que afirma e sustenta os regimes neoliberais. [1]
No padrão de acumulação neoliberal o poder hegemónico é exercido pelo capital financeiro-especulativo. Este, por suas características intrínsecas (é um capital improdutivo e parasitário), tende a propagar por toda a estrutura social seu estilo de enganos e armadilhas. Em resumo, gera um forte impulso à decomposição moral. Além disso, como obstaculiza o investimento produtivo, o modelo neoliberal associa-se a um baixo crescimento do PIB e da produtividade do trabalho. O que, por sua vez, determina uma capacidade muito fraca para gerar empregos. Com isso, o número de pessoas que não encontra trabalho vai crescendo em termos absolutos e relativos. Aumenta o desemprego mas, sobretudo, cresce a marginalidade: ocupações improdutivas, venda ambulante, actividades ilícitas, etc. Com isso, a decomposição moral também começa a estender-se para baixo.
Um terceiro traço deduz-se da distribuição muito desigual do rendimento (e do património) que tipifica as economias neoliberais. A taxa de mais-valia muito alta vai associada a um alto peso do excedente económico no rendimento nacional. [2] Sob tais condições, surge o problema de como realizar o excedente. Ou seja, como transformar os produtos-mercadorias que integram o produto excedente em dinheiro contante e sonante. Como regra, num quadro neoliberal, o principal expediente que se utiliza para resolver o problema de realização, engendrado pela alta taxa de mais-valia, é o gasto improdutivo – o qual passa a crescer em termos exponenciais. Daí a perversa combinação que costuma caracterizar as experiências neoliberais: junto a níveis insanos de exploração, um altíssimo nível de desperdício.
O gasto improdutivo, entre outras coisas, implica gastos militares, gastos de consumo capitalistas e gastos de consumo de assalariados improdutivos. E também expansão dos gastos circulatórios: propaganda, comércio, etc.
Junto a isso, e desempenhando um papel decisivo, verifica-se o surgimento de campanhas ferozes para elevar a propensão a consumir das famílias. Significativamente, o antigo afã puritano de levar uma vida austera e de conseguir os maiores níveis possíveis de poupança (factor muito destacado por Max Weber) é substituído pelo culto ao consumo mais desenfreado. Como disse alguém certa vez, o lema que passa a imperar é o do "compro, logo existo". Operam aqui, como num jogo de pinças, dois factores chave: a) impressionantes campanhas publicitárias e a penetração cada vez mais maciça dessa espécie de princípio ou mandamento religioso: é preciso estar de acordo com a moda e é preciso mudar a moda frequentemente, com a maior celeridade possível; b) as facilidades creditícias que a banca concede para os créditos ao consumo e que, na actualidade, abrange um universo de consumidores potenciais de rendimento médio e baixo que antes não tinham nenhum acesso ao sistema. O que desemboca numa relação entre dívida e rendimentos familiares que vai subindo cada vez mais. Ou seja, perfila-se uma situação de fragilidade financeira que se torna bastante perigosa para a estabilidade financeira do sistema.
Um terceiro traço deduz-se da distribuição muito desigual do rendimento (e do património) que tipifica as economias neoliberais. A taxa de mais-valia muito alta vai associada a um alto peso do excedente económico no rendimento nacional. [2] Sob tais condições, surge o problema de como realizar o excedente. Ou seja, como transformar os produtos-mercadorias que integram o produto excedente em dinheiro contante e sonante. Como regra, num quadro neoliberal, o principal expediente que se utiliza para resolver o problema de realização, engendrado pela alta taxa de mais-valia, é o gasto improdutivo – o qual passa a crescer em termos exponenciais. Daí a perversa combinação que costuma caracterizar as experiências neoliberais: junto a níveis insanos de exploração, um altíssimo nível de desperdício.
O gasto improdutivo, entre outras coisas, implica gastos militares, gastos de consumo capitalistas e gastos de consumo de assalariados improdutivos. E também expansão dos gastos circulatórios: propaganda, comércio, etc.
Junto a isso, e desempenhando um papel decisivo, verifica-se o surgimento de campanhas ferozes para elevar a propensão a consumir das famílias. Significativamente, o antigo afã puritano de levar uma vida austera e de conseguir os maiores níveis possíveis de poupança (factor muito destacado por Max Weber) é substituído pelo culto ao consumo mais desenfreado. Como disse alguém certa vez, o lema que passa a imperar é o do "compro, logo existo". Operam aqui, como num jogo de pinças, dois factores chave: a) impressionantes campanhas publicitárias e a penetração cada vez mais maciça dessa espécie de princípio ou mandamento religioso: é preciso estar de acordo com a moda e é preciso mudar a moda frequentemente, com a maior celeridade possível; b) as facilidades creditícias que a banca concede para os créditos ao consumo e que, na actualidade, abrange um universo de consumidores potenciais de rendimento médio e baixo que antes não tinham nenhum acesso ao sistema. O que desemboca numa relação entre dívida e rendimentos familiares que vai subindo cada vez mais. Ou seja, perfila-se uma situação de fragilidade financeira que se torna bastante perigosa para a estabilidade financeira do sistema.
Como é perfeitamente evidente, na actual sociedade chilena (e em outras como o Brasil e o México) impera uma lógica mercantil que busca o lucro privado. Num sentido genérico, aplica-se a lógica moral descrita por Adam Smith: "não é a benemerência do talhante, do cervejeiro ou do padeiro o que nos dá o alimento e sim a consideração do seu próprio interesse. Não apelamos aos seus sentimentos humanitários e sim ao seu egoísmo, nem lhes falamos das nossas necessidades e sim das suas vantagens". [3] Bentham era ainda mais directo: "todo conjunto de homens é regido totalmente pelo conceito do que é o seu interesse, no mais estrito e egoísta sentido do vocábulo interesse; nunca por consideração alguma no interesse do povo". [4] O traço mercantil provoca consequências adicionais que devemos sublinhar. Neste caso, a relação com outros aparece mediada pelas coisas-mercadorias, o que transcorre no espaço do mercado. Aqui, se consigo vender minhas mercadorias, obtenho dinheiro e, por isso, o acesso (via compras) a outras mercadorias. Com elas, posso subsistir como pessoa e reproduzir à unidade de produção (empresa) que interesse. A transacção chave que conecta as duas classes fundamentais do sistema reside na compra e venda da força de trabalho. Se o trabalhador vende sua mercadoria força de trabalho, obtém um salário e com ele passa a comprar os bens de consumo pessoal que permitem a ele e sua família subsistirem. Mas não há nada a assegurar que essa mercadoria força de trabalho vá ser vendida. Os números do desemprego (aberto e disfarçado) mostram claramente a verdade desta situação. Por outras palavras, o trabalhador assalariado vive durante toda a sua vida útil com "a corda no pescoço", sem ter a segurança de poder vender sua mercadoria força de trabalho. Para os capitalistas, problema também emerge: se as coisas lhe correm mal no mercado, se não consegue vender em termos adequados, pode sofrer revezes sérios e inclusive falir. Em resumo, a insegurança nas vendas traduz-se na insegurança da vida. Neste sentido, afirma-se que a incerteza opera como uma característica estrutural das economias de mercado, da capitalista em especial. Esta incerteza traduz-se na angústia que costuma angustiar os agentes mercantis e que costuma estender-se ao conjunto da vida social: "desde o seu centro económico, a competição irradia-se para todas as outras actividade e também satura o amor, as relações sociais e as diversões". [5]
Isto, num sentido genérico. Mas como se trata de um capitalismo neoliberal (e dependente), encontramos traços mais específicos e peculiares.
No Chile, desde os tempos de Alessandri Palma a seguir de Aguirre Cerda , até culminar com o governo de Allende, foi-se forjando uma rede não pequena de políticas públicas que procuravam impulsionar o crescimento industrial e, ao mesmo tempo, proporcionar seguranças mínimas à força de trabalho: educação, saúde pública, programa de segurança social, leis do trabalho, etc. Com isso, tentava-se amortecer a incerteza e angústias já mencionadas. Neste sentido, a intervenção estatal gerava certa segurança vital. Não a toda a população, mas sim a camadas médias assalariadas e a trabalhadores da grande indústria.
Com a ascensão do neoliberalismo (desde o golpe de Pinochet até agora), desmantelou-se totalmente esse sistema e passou-se a funcionar com uma espécie de capitalismo descarnado, sem cosméticos. Como além disso dissolveram-se aparelhos sindicais e perseguiu-se os partidos de esquerda com sanha implacável, chegámos a uma situação de desamparo total dos trabalhadores.
Ao acima descrito devemos acrescentar: 1) o neoliberalismo caracteriza-se por uma criação lenta de ocupações produtivas. O que se traduz num aumento da taxa de desemprego aberto e/ou num forte aumento dos empregos marginais; 2) o neoliberalismo eleva a instabilidade da economia, o que se traduz no emprego, que se torna volátil e instável; 3) emerge uma altíssima rotação dos empregos: as pessoas duram menos nas suas ocupações e mudam com muito maior frequência de um centro de trabalho para outro. Para isso, as leis flexibilizadoras do trabalho ajudam consideravelmente. Na actualidade, um patrão pode despedir seus operários com grande facilidade e com custos mínimos; 4) expande-se a sub-contratação, o que agrava ainda mais as condições do trabalho operário (salários, segurança, etc).
Na generalidade, chegamos a uma situação em que o trabalho é mais incerto, mais instável, mais precário e pior pago. Neste quadro, não se pode estranhar que a saúde mental dos chilenos haja experimentado um grave retrocesso. [6]
As inseguranças e angústias que assim se geram desembocam muitas vezes em atitudes neuróticas. [7] Estas manifestam-se em condutas obsessivas que buscam, como pseudo-remédios ou pseudo-calmantes, coisas como a fama, o êxito económico ou o poder. O que talvez seja mais patético nestas condutas é que – na maioria dos casos – o que se consegue são arremedos do poder, da fama e da opulência económica. Como assinalou Vance Packard num livro clássico, quando um trabalhador da classe média pode, após um grande esforço (e endividamento), comprar um automóvel na moda, contempla seu longuíssimo automóvel e exclama: "Não somos ricos... mas parecemos!" [8]
Claramente, o que se vai perfilando é um gasto em consumo que já não busca as mercadorias pelo seu valor de uso intrínseco e sim por suas qualidades simbólicas: as de exprimir um determinado nível social.
Isto, num sentido genérico. Mas como se trata de um capitalismo neoliberal (e dependente), encontramos traços mais específicos e peculiares.
No Chile, desde os tempos de Alessandri Palma a seguir de Aguirre Cerda , até culminar com o governo de Allende, foi-se forjando uma rede não pequena de políticas públicas que procuravam impulsionar o crescimento industrial e, ao mesmo tempo, proporcionar seguranças mínimas à força de trabalho: educação, saúde pública, programa de segurança social, leis do trabalho, etc. Com isso, tentava-se amortecer a incerteza e angústias já mencionadas. Neste sentido, a intervenção estatal gerava certa segurança vital. Não a toda a população, mas sim a camadas médias assalariadas e a trabalhadores da grande indústria.
Com a ascensão do neoliberalismo (desde o golpe de Pinochet até agora), desmantelou-se totalmente esse sistema e passou-se a funcionar com uma espécie de capitalismo descarnado, sem cosméticos. Como além disso dissolveram-se aparelhos sindicais e perseguiu-se os partidos de esquerda com sanha implacável, chegámos a uma situação de desamparo total dos trabalhadores.
Ao acima descrito devemos acrescentar: 1) o neoliberalismo caracteriza-se por uma criação lenta de ocupações produtivas. O que se traduz num aumento da taxa de desemprego aberto e/ou num forte aumento dos empregos marginais; 2) o neoliberalismo eleva a instabilidade da economia, o que se traduz no emprego, que se torna volátil e instável; 3) emerge uma altíssima rotação dos empregos: as pessoas duram menos nas suas ocupações e mudam com muito maior frequência de um centro de trabalho para outro. Para isso, as leis flexibilizadoras do trabalho ajudam consideravelmente. Na actualidade, um patrão pode despedir seus operários com grande facilidade e com custos mínimos; 4) expande-se a sub-contratação, o que agrava ainda mais as condições do trabalho operário (salários, segurança, etc).
Na generalidade, chegamos a uma situação em que o trabalho é mais incerto, mais instável, mais precário e pior pago. Neste quadro, não se pode estranhar que a saúde mental dos chilenos haja experimentado um grave retrocesso. [6]
As inseguranças e angústias que assim se geram desembocam muitas vezes em atitudes neuróticas. [7] Estas manifestam-se em condutas obsessivas que buscam, como pseudo-remédios ou pseudo-calmantes, coisas como a fama, o êxito económico ou o poder. O que talvez seja mais patético nestas condutas é que – na maioria dos casos – o que se consegue são arremedos do poder, da fama e da opulência económica. Como assinalou Vance Packard num livro clássico, quando um trabalhador da classe média pode, após um grande esforço (e endividamento), comprar um automóvel na moda, contempla seu longuíssimo automóvel e exclama: "Não somos ricos... mas parecemos!" [8]
Claramente, o que se vai perfilando é um gasto em consumo que já não busca as mercadorias pelo seu valor de uso intrínseco e sim por suas qualidades simbólicas: as de exprimir um determinado nível social.
Neste contexto, cultiva-se com força especial a novidade pela novidade. Não se trata de buscar este ou outro novo que me permitam resolver estes ou aqueles problemas. O que interessa do novo é que seja novo. Com o qual, supõe-se que essa pessoa ganha em prestígio (estimação) social. Por exemplo: não se buscam sapatos porque sejam funcionais, cómodos e duradouros. São buscados só porque são um modelo novo, no estilo que se pôs na moda. E são comprado e usados, mesmo que sejam incómodos e dolorosos. Quem se beneficia com este culto? São os fabricantes, que ganham em vendas e preços. Em vendas pois conseguem multiplicar suas vendas: aquilo que é um sapato que pode durar 4-5 anos, deixa de ser usado depois de um par anos por ter passado de moda. Ganham também em preços: aproveitando a febre do novo, podem fixar preços mais elevados. Com os móveis e os equipamentos de música, com os automóveis e os novos aparelhos de comunicação, acontecer algo semelhante. Tudo isso gera um desperdício maior e personalidades alienadas que chegam a parecer caricaturas. Em economias com péssima distribuição do rendimento e sérios problemas de realização (isto é, de procura efectiva), semelhante rota é praticamente inevitável. Diríamos que é condição de vida do sistema. [9]
Essa lógica também invade o mundo das ideias: há publicitários, mercadólogos, jornalistas e até académicos que também procuram a novidade pela novidade. Já não interessa a teoria tal ou qual pelo seu possível poder explicativo e sim por ser "a última" que o mercado das ideias apresenta. Neste caso, a alienação chega a extremos: passa-se a viver num mundo frívolo em que os "pensadores" mudam de perspectivas teóricas como quem muda de cuecas. Consequentemente, as grandes e mais valiosas construções teóricas, que exigem sempre um estudo árduo e laborioso, são deixadas no sótão: consomem muito tempo e não alimentam as vaidades mediáticas e mercantis. [10] Como dizia um cronista da televisão: "se as usar, meu público fica adormecido". O que naturalmente não dizia é que esse público havia sido muito bem adestrado no consumo de estupidezes, pelo mesmo meio televisivo. Tão pouco podia dizer que tal difusão e consumo de estupidezes acaba por ser vital para a reprodução da ordem social vigente.
Neste quadro, expande-se também uma ideologia que se auto-qualifica como moderna e inovadora. E também com um estilo um impulso anti-conservador: há que cultivar a mudança. A mensagem, nestes termos, torna-se atraente. Mas o que é que se destrói e o que é o novo que chega às nossas vidas? O que a experiência nos mostra é berrante: o que se destrói hora a hora e dia a dia é o mais superficial e aparente, é a borbulha e a externalidade, o rimmel dos olhos e a cor da gravata. Quanto ao substantivo, isto é, os fundamentos do edifício social que regula nossas vidas, tudo isso funciona como zona sagrada da qual nem se fala e que, naturalmente, permanece intacta. O culto é bastante singular: prega-se o novo para preservar o velho, impulsiona-se a mudança para evitar a mudança.
Implicitamente, em termos quase sempre inconscientes, em tais atitudes opera um pressuposto: os fundamentos da vida social são inamovíveis. Logo, a pretensão de fazê-lo é ingénua ou até tonta. É, no melhor dos casos, própria de um minúsculo segmento da juventude que leu demasiada poesia, que vive estagnada e acredita que com versos de Gustavo Adolfo Bécquer se pode ir para a cama com a companheira do colégio.
Essa lógica também invade o mundo das ideias: há publicitários, mercadólogos, jornalistas e até académicos que também procuram a novidade pela novidade. Já não interessa a teoria tal ou qual pelo seu possível poder explicativo e sim por ser "a última" que o mercado das ideias apresenta. Neste caso, a alienação chega a extremos: passa-se a viver num mundo frívolo em que os "pensadores" mudam de perspectivas teóricas como quem muda de cuecas. Consequentemente, as grandes e mais valiosas construções teóricas, que exigem sempre um estudo árduo e laborioso, são deixadas no sótão: consomem muito tempo e não alimentam as vaidades mediáticas e mercantis. [10] Como dizia um cronista da televisão: "se as usar, meu público fica adormecido". O que naturalmente não dizia é que esse público havia sido muito bem adestrado no consumo de estupidezes, pelo mesmo meio televisivo. Tão pouco podia dizer que tal difusão e consumo de estupidezes acaba por ser vital para a reprodução da ordem social vigente.
Neste quadro, expande-se também uma ideologia que se auto-qualifica como moderna e inovadora. E também com um estilo um impulso anti-conservador: há que cultivar a mudança. A mensagem, nestes termos, torna-se atraente. Mas o que é que se destrói e o que é o novo que chega às nossas vidas? O que a experiência nos mostra é berrante: o que se destrói hora a hora e dia a dia é o mais superficial e aparente, é a borbulha e a externalidade, o rimmel dos olhos e a cor da gravata. Quanto ao substantivo, isto é, os fundamentos do edifício social que regula nossas vidas, tudo isso funciona como zona sagrada da qual nem se fala e que, naturalmente, permanece intacta. O culto é bastante singular: prega-se o novo para preservar o velho, impulsiona-se a mudança para evitar a mudança.
Implicitamente, em termos quase sempre inconscientes, em tais atitudes opera um pressuposto: os fundamentos da vida social são inamovíveis. Logo, a pretensão de fazê-lo é ingénua ou até tonta. É, no melhor dos casos, própria de um minúsculo segmento da juventude que leu demasiada poesia, que vive estagnada e acredita que com versos de Gustavo Adolfo Bécquer se pode ir para a cama com a companheira do colégio.
Os processos indicados verificam-se como parte (decisiva em todo caso) de um movimento que é complexo e multilateral. Para nossos propósitos e por razões óbvias de espaço, basta-nos sublinhar o fundamental.
Configura-se uma situação em que se combinam: i) por um lado, uma ansiedade ou angústia muito profunda e estruturalmente determinada; ii) pelo outro, anseios ou objectivos de vida que implicam um arrivismo social desenfreado e claramente sem destino. Arrivismo que opera pelo lado da imitação do consumo que se acredita conspícuo.
O arrivismo social, num sentido muito geral, implica: 1) o desejo de ser parte da classe alta: chegar ao cimo da escala social; 2) o desejo de isso conseguir aceitando o regime social em vigor.
Vale aqui uma nota marginal: a burguesia inglesa antes de Cromwell queria chegar ao poder. A francesa de antes da Grande Revolução, também. Os referidos anseios materializaram-nos destruindo com grande violência a ordem sócio-económica imperante. O arrivismo não destrói. Muito pelo contrário, aceita a ordem em vigor e vê a sua classe dominante como algo maravilhoso, como um modelo a seguir. As armas que se utilizam para a possível integração não são os arcabuzes e sim a imitação.
No caso chileno observam-se certamente ingredientes mais específicos. Neste caso, temos que: a) entende-se ou acredita-se que a fama e o grande dinheiro (o "big money" de Dos Passos, o financiador de Th. Dreiser ) são as provas de que se conseguiu. Ao mesmo tempo, pensa-se que tais êxitos são os remédios que curam as angústias e incertezas radicais; [11] b) o arrivismo não segue o caminho do trabalho intenso, longo e consistente, no estilo dos velhos puritanos (trabalhar arduamente e poupar muito) e dos preceitos codificados por Benjamin Franklin. De resto, o mesmo clima que impera nas alturas, hegemonizadas pelo capital financeiro e sua lógica económica parasitária, coloca num segundo plano quase invisível o espaço da produção e do trabalho que ali se verifica; c) durante muito tempo propagandeou-se a noção de "capital humano": se você aumenta sua qualificação aumentará seus rendimentos. Muitíssimos, fazendo um esforço oneroso, incorporam-se à educação universitária. Muitos caem nas novas universidades privadas, recebem uma péssima preparação e assumem uma dívida elevadíssima. No fim seus rendimentos elevam-se (nem sempre), mas em termos decepcionantes; d) além disso, como o trabalho árduo não rende, coloca-se toda a ênfase nos golpes de sorte. As pessoas trabalham sim, com intensidade e longas jornadas, mas o trabalho, para além de todo o esforço, simplesmente não resulta. Neste quadro, a motivação laboral desmorona-se: efectua-se só porque "não há outra alternativa"; e) as actividades que se desenvolvem são levadas a cabo em termos do interesse egoísta mais grosseiro. De facto, podemos falar de ausência de códigos morais: o bom é o que permite chegar ao êxito, às alturas. Para chegar às alturas, "tudo é permitido": a traição, o roubo e o crime. Assim sendo as coisas, chega-se a uma sociedade em que a deslealdade e o engano tornam-se traços que chegam a parecer próprios da "natureza humana".
Quantos podem chegar à fama e ao grande dinheiro? Diríamos que por definição só uma delgadíssima e insignificante minoria, quase igual a zero. Contudo, a ilusão se mantém.
Neste quadro, ensaia-se um caminho muito peculiar: o do consumo. Mais precisamente, o do consumo que segue a marca implantada pelos de cima, o que está na moda. Este é o grande mandamento: seguir o que a moda ordena. Nele, o fetiche do bem de consumo ostentatório desempenha um papel chave. Há bens de consumo que se associam à alegria de viver, às preferências da classe "superior". São bens "conspícuos". Passam a interessar não pelo seu valor de uso real e sim como símbolos de status. Aceder a esses bens provoca um salto mágico: sobe-se de categoria social. E como a moeda é essencialmente efémera, a ilusão renova-se só se se renovarem as compras de ostentação: é o famoso "compro, logo existo", compras que nos tempos actuais não se referem ao que exige a existência humana e sim ao que exige a reprodução da ilusão, do arrivismo social. [12]
A lógica com que opera este tipo de consumo é cruel. Quando se estende e massifica, o bem de consumo perde suas propriedades mágicas. Há que procurar outro tipo de bens que possua essas capacidades. Disso se encarregam as classes altas e/ou as artistas do cinema e televisão; em seguida, a moda (e a feroz campanha mediática que a impulsiona) encarrega-se de divulgar essas virtudes. Entretanto, o povo raso vai ficando cada vez mais endividado, o que – diga-se de passagem – gera grossos lucros para o capital bancário e financeiro. [13]
Processos como os que temos delineado vão configurando um mundo (ao nível da consciência social) em que o visível e aparente difere brutalmente do que é mais medular e relativamente invisível. Neste, o que reina é o "princípio da conservação": não se move nem sem altera, parece imutável. Por isso mesmo, nem chama a atenção: é como uma pedra. Pelo outro lado, no aspecto mais externo e visível, parece que reina a mudança, a vida e a juventude. O superficial assume um tom sedutor.
E também dramático, pelo menos para alguns. Se aceitamos que o mundo é como se vê, que pensar dos que pretendem mudar suas bases estruturais? Que estão loucos e que simplesmente vão partir a cabeça. Por acaso agrada-te este mundo? Não, não me agrada mas não há outro. Então, vais viver na amargura? Não, viro-me por outro lado, trato de passar bem, pelo menos nos fins de semana. Vou ao cinema, vou dançar, estou com meu namorado(a). Algo mais? Não. Será que por acaso há algo mais?
Configura-se uma situação em que se combinam: i) por um lado, uma ansiedade ou angústia muito profunda e estruturalmente determinada; ii) pelo outro, anseios ou objectivos de vida que implicam um arrivismo social desenfreado e claramente sem destino. Arrivismo que opera pelo lado da imitação do consumo que se acredita conspícuo.
O arrivismo social, num sentido muito geral, implica: 1) o desejo de ser parte da classe alta: chegar ao cimo da escala social; 2) o desejo de isso conseguir aceitando o regime social em vigor.
Vale aqui uma nota marginal: a burguesia inglesa antes de Cromwell queria chegar ao poder. A francesa de antes da Grande Revolução, também. Os referidos anseios materializaram-nos destruindo com grande violência a ordem sócio-económica imperante. O arrivismo não destrói. Muito pelo contrário, aceita a ordem em vigor e vê a sua classe dominante como algo maravilhoso, como um modelo a seguir. As armas que se utilizam para a possível integração não são os arcabuzes e sim a imitação.
No caso chileno observam-se certamente ingredientes mais específicos. Neste caso, temos que: a) entende-se ou acredita-se que a fama e o grande dinheiro (o "big money" de Dos Passos, o financiador de Th. Dreiser ) são as provas de que se conseguiu. Ao mesmo tempo, pensa-se que tais êxitos são os remédios que curam as angústias e incertezas radicais; [11] b) o arrivismo não segue o caminho do trabalho intenso, longo e consistente, no estilo dos velhos puritanos (trabalhar arduamente e poupar muito) e dos preceitos codificados por Benjamin Franklin. De resto, o mesmo clima que impera nas alturas, hegemonizadas pelo capital financeiro e sua lógica económica parasitária, coloca num segundo plano quase invisível o espaço da produção e do trabalho que ali se verifica; c) durante muito tempo propagandeou-se a noção de "capital humano": se você aumenta sua qualificação aumentará seus rendimentos. Muitíssimos, fazendo um esforço oneroso, incorporam-se à educação universitária. Muitos caem nas novas universidades privadas, recebem uma péssima preparação e assumem uma dívida elevadíssima. No fim seus rendimentos elevam-se (nem sempre), mas em termos decepcionantes; d) além disso, como o trabalho árduo não rende, coloca-se toda a ênfase nos golpes de sorte. As pessoas trabalham sim, com intensidade e longas jornadas, mas o trabalho, para além de todo o esforço, simplesmente não resulta. Neste quadro, a motivação laboral desmorona-se: efectua-se só porque "não há outra alternativa"; e) as actividades que se desenvolvem são levadas a cabo em termos do interesse egoísta mais grosseiro. De facto, podemos falar de ausência de códigos morais: o bom é o que permite chegar ao êxito, às alturas. Para chegar às alturas, "tudo é permitido": a traição, o roubo e o crime. Assim sendo as coisas, chega-se a uma sociedade em que a deslealdade e o engano tornam-se traços que chegam a parecer próprios da "natureza humana".
Quantos podem chegar à fama e ao grande dinheiro? Diríamos que por definição só uma delgadíssima e insignificante minoria, quase igual a zero. Contudo, a ilusão se mantém.
Neste quadro, ensaia-se um caminho muito peculiar: o do consumo. Mais precisamente, o do consumo que segue a marca implantada pelos de cima, o que está na moda. Este é o grande mandamento: seguir o que a moda ordena. Nele, o fetiche do bem de consumo ostentatório desempenha um papel chave. Há bens de consumo que se associam à alegria de viver, às preferências da classe "superior". São bens "conspícuos". Passam a interessar não pelo seu valor de uso real e sim como símbolos de status. Aceder a esses bens provoca um salto mágico: sobe-se de categoria social. E como a moeda é essencialmente efémera, a ilusão renova-se só se se renovarem as compras de ostentação: é o famoso "compro, logo existo", compras que nos tempos actuais não se referem ao que exige a existência humana e sim ao que exige a reprodução da ilusão, do arrivismo social. [12]
A lógica com que opera este tipo de consumo é cruel. Quando se estende e massifica, o bem de consumo perde suas propriedades mágicas. Há que procurar outro tipo de bens que possua essas capacidades. Disso se encarregam as classes altas e/ou as artistas do cinema e televisão; em seguida, a moda (e a feroz campanha mediática que a impulsiona) encarrega-se de divulgar essas virtudes. Entretanto, o povo raso vai ficando cada vez mais endividado, o que – diga-se de passagem – gera grossos lucros para o capital bancário e financeiro. [13]
Processos como os que temos delineado vão configurando um mundo (ao nível da consciência social) em que o visível e aparente difere brutalmente do que é mais medular e relativamente invisível. Neste, o que reina é o "princípio da conservação": não se move nem sem altera, parece imutável. Por isso mesmo, nem chama a atenção: é como uma pedra. Pelo outro lado, no aspecto mais externo e visível, parece que reina a mudança, a vida e a juventude. O superficial assume um tom sedutor.
E também dramático, pelo menos para alguns. Se aceitamos que o mundo é como se vê, que pensar dos que pretendem mudar suas bases estruturais? Que estão loucos e que simplesmente vão partir a cabeça. Por acaso agrada-te este mundo? Não, não me agrada mas não há outro. Então, vais viver na amargura? Não, viro-me por outro lado, trato de passar bem, pelo menos nos fins de semana. Vou ao cinema, vou dançar, estou com meu namorado(a). Algo mais? Não. Será que por acaso há algo mais?
Quando um espectro ideológico como o que temos descrito se torna dominante, passa a funcionar como regulador da conduta. Por óbvias razões, aponta-se ao segmento jovem da população. Tenta-se que esses valores sejam internalizados e a socialização das pessoas consiga essa internalização. Surge então a pergunta: que canais segue esse processo de aprendizagem e de internalização de tais normas e valores?
Primeiro, temos os media, a televisão em especial. Em termos de configuração da consciência social, hoje é sem dúvida a ferramenta mais potente. Mais eficaz que os curas da Idade Média e, por vezes, inclusive mais impactante que a família.
No Chile, sobretudo da classe média para baixo, a família já não reza o rosário e sim vê os programas da TV: telenovelas, musicais, futebol, revistas para "o lar e a mulher", etc. Num primeiro momento, muito possivelmente alguns pais e alguns avós resmungarão e os filhos aplaudirão. A seguir, pais (os que antes foram filhos) e filhos aplaudirão. Quando isto acontece emerge a família como mecanismo de socialização básica do novo. São os pais que pressionam os filhos a serem "triunfadores", os rapazes grandes futebolistas e a meninas, futuras coristas, cantoras ou actrizes (inclusive do tipo das "stripers"). Quanto aos companheiros de jogo e de escola, como foram moldados em termos semelhantes, reforçam o processo de assimilação.
Talvez seja curioso, mas um dos principais canais por onde penetra a ilusão consumista encontra-se nos próprios centros comerciais (no Chile chamados de "mall", de acordo com a regra – igualmente arrivista – de que nenhum estabelecimento comercial pode ter denominação em castelhano). Nestes lugares, concentram-se dezenas de lojas e, se se observar bem, pode-se constatar que, especialmente durante os fins-de-semana, se transformam num passeio público, um lugar de reunião social. Antes, talvez a maioria, usava o fim-de-semana para ir ao campo, caminhar por uma praça arborizada ou pela margem de algum rio, ler, praticar algum desporto, ir a algum concerto ou peça de teatro. Hoje, a grande maioria (falamos das classes médias para baixo) substitui os campos e espaços arborizados por um passeio (familiar inclusive) pelos "mall". Pode ser que não comprem nada, mas é a sua distracção e seu encanto do fim-de-semana. Seria bom filmar essas caras, mas à simples vista observa-se um rosto de satisfação plena, de "iluminados" que parecem haver chegado ao paraíso, ao mundo da modernidade e dos avanços tecnológicos. E voltam às suas casas como uma espécie de reedição, algo mais patética, do famoso Dr. Pangloss .
"Como o mundo progride! Que coisas bonitas! É preciso comprar essa novidade! Viste a tipa que comprava essas calças? Que bonita, que classe! Ai mãe, ai irmã, temos que ser como ela, quando nos pagarem a quinzena viremos comprar essas calças!"
Em outros tempo, quando se falava de dominação ideológica a nível da consciência social, tendia-se a pensar em corpos doutrinários-ideológicos mais ou menos globais e coerentes. Ou seja, num discurso e numa argumentação intelectual relativamente refinada. Mas hoje, caso dos centros comerciais, vemos que tal tipo de discursos já não interessa a ninguém e que é muito mais eficaz mostrar vitrinas em fila. O chamado interesse ou vontade geral parece que agora se processa nesses corredores.
Primeiro, temos os media, a televisão em especial. Em termos de configuração da consciência social, hoje é sem dúvida a ferramenta mais potente. Mais eficaz que os curas da Idade Média e, por vezes, inclusive mais impactante que a família.
No Chile, sobretudo da classe média para baixo, a família já não reza o rosário e sim vê os programas da TV: telenovelas, musicais, futebol, revistas para "o lar e a mulher", etc. Num primeiro momento, muito possivelmente alguns pais e alguns avós resmungarão e os filhos aplaudirão. A seguir, pais (os que antes foram filhos) e filhos aplaudirão. Quando isto acontece emerge a família como mecanismo de socialização básica do novo. São os pais que pressionam os filhos a serem "triunfadores", os rapazes grandes futebolistas e a meninas, futuras coristas, cantoras ou actrizes (inclusive do tipo das "stripers"). Quanto aos companheiros de jogo e de escola, como foram moldados em termos semelhantes, reforçam o processo de assimilação.
Talvez seja curioso, mas um dos principais canais por onde penetra a ilusão consumista encontra-se nos próprios centros comerciais (no Chile chamados de "mall", de acordo com a regra – igualmente arrivista – de que nenhum estabelecimento comercial pode ter denominação em castelhano). Nestes lugares, concentram-se dezenas de lojas e, se se observar bem, pode-se constatar que, especialmente durante os fins-de-semana, se transformam num passeio público, um lugar de reunião social. Antes, talvez a maioria, usava o fim-de-semana para ir ao campo, caminhar por uma praça arborizada ou pela margem de algum rio, ler, praticar algum desporto, ir a algum concerto ou peça de teatro. Hoje, a grande maioria (falamos das classes médias para baixo) substitui os campos e espaços arborizados por um passeio (familiar inclusive) pelos "mall". Pode ser que não comprem nada, mas é a sua distracção e seu encanto do fim-de-semana. Seria bom filmar essas caras, mas à simples vista observa-se um rosto de satisfação plena, de "iluminados" que parecem haver chegado ao paraíso, ao mundo da modernidade e dos avanços tecnológicos. E voltam às suas casas como uma espécie de reedição, algo mais patética, do famoso Dr. Pangloss .
"Como o mundo progride! Que coisas bonitas! É preciso comprar essa novidade! Viste a tipa que comprava essas calças? Que bonita, que classe! Ai mãe, ai irmã, temos que ser como ela, quando nos pagarem a quinzena viremos comprar essas calças!"
Em outros tempo, quando se falava de dominação ideológica a nível da consciência social, tendia-se a pensar em corpos doutrinários-ideológicos mais ou menos globais e coerentes. Ou seja, num discurso e numa argumentação intelectual relativamente refinada. Mas hoje, caso dos centros comerciais, vemos que tal tipo de discursos já não interessa a ninguém e que é muito mais eficaz mostrar vitrinas em fila. O chamado interesse ou vontade geral parece que agora se processa nesses corredores.
As ideologias distinguem-se não só a partir das condições que sacralizam e estimulam como das ideias e imagens que projectam. Também se identificam a partir dos seus demónios. Ou seja, das condutas, mundos, valores e ideias que reprovam.
No caso que nos vem preocupando, podemos apontar dois exemplos: da vida política e o do comunismo-marxista.
Quanto à actividade política, procura-se desacreditá-la e recomendar uma espécie de abstinência em tal tipo de actividades. Na mensagem, a política surge desconectada de todo ideal e de todo propósito transformador. Os que nela participam são pessoas que só procuram satisfazer seu interesse pessoal. Quanto ao resto, acredita-se que todo anseio transformador está condenado ao fracasso. Em consequência, é melhor ser apolítico e não se sujar com as referidas actividades. Naturalmente, o apoliticismo das massas é muito benéfico para as classes dominantes: podem dirigir os assuntos públicos em a incómoda presença de alguns (pior se forem muitos) intrusos. [14]
Vejamos o segundo exemplo. Por comunismo entendemos: i) uma sociedade futura (não muito próxima) que corresponde a determinados traços. Nela, os capitalistas não existem e só se vive do trabalho que se realiza; ii) uma associação ou partido político que reúne os que lutam por esse ideal. Por marxismo entendemos as teorias e ideias propostas por pessoas como Marx, Engels, Lenine, etc.
A título prévio convém assinalar: no Chile, a seguir ao golpe militar e à sangrenta ditadura que se seguiu durante longos anos, a noção ou ideia do comunismo-marxista acabou por se associar ao medo. Se alguém a reivindicava, punha em risco seu trabalho, o sustento familiar e sua própria vida.
Neste quadro, que se prolongou por muitos anos, acaba por operar um mecanismo psicológico conhecido. Para proteger a vida, deve-se ocultar a referida preferência, mantê-la como um segredo que ninguém deve conhecer. As ideias próprias passam à clandestinidade: não podem ou não devem ser externadas, nem declaradas nem defendidas. [15] Não são utilizadas para atacar a ideologia dominante nem para se defender dos ataques desta. [16] E advirta-se: ideias que não se utilizam são como pernas que não caminham: primeiro se enfraquecem e a seguir atrofiam-se.
Mas há algo mais: no mesmo período assiste-se ao derrube do denominado "campo socialista". O que acaba por considerar-se uma prova empírica concludente de que o comunismo é um fracasso e até uma impossibilidade: algo que não tem presente nem futuro. Ser comunista passa a ser considerado como o anseio de viver na idade da pedra, ser marxista é declarar-se obsoleto. São os pobres e anquilosados tipos que no mundo das revoluções electrónicas continuam a escrever com penas de pato e a utilizar os velhos correios e carteiros, em vez da Internet. Em certas ocasiões, do ódio passa-se à compaixão.
Juntamente com isso temos o impacto mediático. Ao longo da ditadura de Pinochet insistia-se dia após dia: o marxismo é algo erróneo e obsoleto, "passou de moda", o comunismo ruiu e é coisa do passado. Além disso – certamente o pinochetismo nunca foi muito tímido – insultava-se os regimes "comunistas" por não respeitarem os direitos humanos. [17] Isto foi um martelar incessante e que, com a Concertación, não se modificou. De facto, este grupo político aliou-se aos grandes empresários e manteve-se, até hoje (2013), uma obstinada ditadura mediática. Afinal de contas, os personagens da Concertación (como o "socialista" de mercado, Camilo "el escalador" Escalante), terminaram por colocar um sinal de igualdade entre comunismo e pinochetismo. Uns e outros atentam contra os "valores democráticos". Atacar "Mamo" Contreras [18] é o mesmo que atacar Lucho Soto [19] , Ramona Parra ou Ricardo Fonseca.[20]
Neste quadro é compreensível que muitos vacilem, que surja uma grande dúvida (alimentada pelas realidades e pelo próprio inconsciente) e que haja uma debandada real. Alguns renegam por completo suas antigas convicções e até passam a ocupar posições em grupos da extrema-direita. Outros, encerram-se em suas casas e retiram-se da vida pública. Também há segmentos, em regra bastante minoritários, que mantêm uma postura radical: alguns, como simples obstinação quase conservadora e outros com o desejo de assimilar as causas do derrube e avançar para uma síntese nova e superior.
O anti-comunismo ou anti-marxismo acarreta consequências variadas. A primeira é a conotação reaccionária – para não dizer cavernícola – que assume o espectro cultural dominante. Sem esquecer que, em regra, quando se persegue e denigre o marxismo também se costuma envolver no ataque o iluminismo laico (em especial, o materialismo francês, o de D'Holbach, Helvetius, Diderot, etc). Com isso, no âmbito cultura abre-se a passagem para todas as variantes de obscurantismo.
Uma segunda consequência de facto faz parte da já indicada. Pela sua importância convém mencioná-la à parte: o silenciamento do marxismo opera como suporte sólido da ideologia dominante e, por isso, do regime imperante. Por que? Porque tal silêncio é o silêncio da arma crítica mais corrosiva do status quo. Como bem apontou Marx, a dialéctica, "na inteligência e explicação do que existe abriga ao mesmo tempo a inteligência da sua negação, da sua morte forçosa; porque crítica e revolucionária por essência, enfoca todas as formas actuais em pleno movimento, sem omitir, portanto, o que tem de perecível e sem se deixar intimidar por nada". [21]
Um terceiro aspecto refere-se ao papel que o marxismo desempenha nos movimentos de oposição ao sistema. Para transformar sua envolvente, o homemprecisa saber. Muito ou pouco, conforme a radicalidade dos propósitos. Se o que se procura são transformações substantivas, o saber tem que ser superado e assumir a forma de sistema teórico. Esta teoria deve avançar da exterioridade dos fenómenos rumo aos seus traços mais essenciais para a seguir voltar à exterioridade, agora ligada aos seus fundamentos e, por isso mesmo, já entendida. Neste plano, as teorias verídicas cumprem duas tarefas básicas: uma, a de iluminar o presente e desfazer distorções (evitar confusões) sobre o modo do seu funcionamento. Por exemplo, romper com a crença grosseira de que o Estado representa o bem comum, o que os lucros do capital são a contrapartida do "sacrifício" que em termos de consumo realizam os capitalistas. [22] A segunda grande função é a de orientar as práticas sociais que buscam transformar a realidade. Neste caso, a teoria passa funcionar como "farol orientador", a qual também põe em evidência sua nenhuma neutralidade política.
Pois bem, se a teoria adequada não existe ou não é conhecida, é muito evidente que os movimentos progressistas ficam como se estivessem numa rua escura e infestada de assaltantes, sem luzes e sem defesas.
Neste quadro, temos que o paradigma marxista, pelos seus traços e temática, deveria representar a arma fundamental de todo movimento radical e popular. Sem estas luzes, dificilmente se pode avançar para processos de transformação social substantivos.
Mas o que acontece hoje no Chile? Em geral, os mesmos sectores populares que começam a reclamar contra o modelo neoliberal desconhecem completamente a teoria marxista. Sublinhemos: ao afirmar o anterior não estamos a pensar num estudo e reflexão sólido e profundo. O ponto é outro: nem sequer se leu algum texto elementar. Pior ainda, em termos algo soterrados, em cada alma parecem operar os insultos e preconceitos inculcados pela ditadura pinochetista. E o que sucede com os intelectuais de esquerda? Além de serem poucos, não se vêem muito equipados. [23] Ignoram de todo a teoria económica de Marx, com Lenine e o Gramsci dos Conselhos Operários de Turim, assustam-se. [24] Costumam auto-declarar-se "pluralistas" e "anti-dogmáticos", abertos, "não mecanicistas" e etc. No fundo também parecem haver engolido boa parte dos sermões do anti-comunismo mais rústico. Assustaram-se e na academia subsistem como pessoas com "ideias clandestinas" (as marxistas) e opiniões públicas "respeitáveis" (as de direita). Nos seus textos tende a verificar-se uma espécie de "salada russa" conceptual, salada na qual até aparecem nazis confessos como Heidegger. E também, toda a bazófia do "pós-modernismo". Em geral, parece que se chega a identificar a desordem mental com a profundidade do pensamento. E mais do que entender a fundo os processos reais em curso, interessa-lhes "estar na moda". [25]
O que se depreende de tudo o que temos argumentado? A resposta, a nível do enunciado, é simples: o movimento popular chileno deverá partir (ou melhor, reiniciar-se) quase desde o zero. A nível prático, naturalmente, o processo real será bastante complexo e difícil de implementar.
No caso que nos vem preocupando, podemos apontar dois exemplos: da vida política e o do comunismo-marxista.
Quanto à actividade política, procura-se desacreditá-la e recomendar uma espécie de abstinência em tal tipo de actividades. Na mensagem, a política surge desconectada de todo ideal e de todo propósito transformador. Os que nela participam são pessoas que só procuram satisfazer seu interesse pessoal. Quanto ao resto, acredita-se que todo anseio transformador está condenado ao fracasso. Em consequência, é melhor ser apolítico e não se sujar com as referidas actividades. Naturalmente, o apoliticismo das massas é muito benéfico para as classes dominantes: podem dirigir os assuntos públicos em a incómoda presença de alguns (pior se forem muitos) intrusos. [14]
Vejamos o segundo exemplo. Por comunismo entendemos: i) uma sociedade futura (não muito próxima) que corresponde a determinados traços. Nela, os capitalistas não existem e só se vive do trabalho que se realiza; ii) uma associação ou partido político que reúne os que lutam por esse ideal. Por marxismo entendemos as teorias e ideias propostas por pessoas como Marx, Engels, Lenine, etc.
A título prévio convém assinalar: no Chile, a seguir ao golpe militar e à sangrenta ditadura que se seguiu durante longos anos, a noção ou ideia do comunismo-marxista acabou por se associar ao medo. Se alguém a reivindicava, punha em risco seu trabalho, o sustento familiar e sua própria vida.
Neste quadro, que se prolongou por muitos anos, acaba por operar um mecanismo psicológico conhecido. Para proteger a vida, deve-se ocultar a referida preferência, mantê-la como um segredo que ninguém deve conhecer. As ideias próprias passam à clandestinidade: não podem ou não devem ser externadas, nem declaradas nem defendidas. [15] Não são utilizadas para atacar a ideologia dominante nem para se defender dos ataques desta. [16] E advirta-se: ideias que não se utilizam são como pernas que não caminham: primeiro se enfraquecem e a seguir atrofiam-se.
Mas há algo mais: no mesmo período assiste-se ao derrube do denominado "campo socialista". O que acaba por considerar-se uma prova empírica concludente de que o comunismo é um fracasso e até uma impossibilidade: algo que não tem presente nem futuro. Ser comunista passa a ser considerado como o anseio de viver na idade da pedra, ser marxista é declarar-se obsoleto. São os pobres e anquilosados tipos que no mundo das revoluções electrónicas continuam a escrever com penas de pato e a utilizar os velhos correios e carteiros, em vez da Internet. Em certas ocasiões, do ódio passa-se à compaixão.
Juntamente com isso temos o impacto mediático. Ao longo da ditadura de Pinochet insistia-se dia após dia: o marxismo é algo erróneo e obsoleto, "passou de moda", o comunismo ruiu e é coisa do passado. Além disso – certamente o pinochetismo nunca foi muito tímido – insultava-se os regimes "comunistas" por não respeitarem os direitos humanos. [17] Isto foi um martelar incessante e que, com a Concertación, não se modificou. De facto, este grupo político aliou-se aos grandes empresários e manteve-se, até hoje (2013), uma obstinada ditadura mediática. Afinal de contas, os personagens da Concertación (como o "socialista" de mercado, Camilo "el escalador" Escalante), terminaram por colocar um sinal de igualdade entre comunismo e pinochetismo. Uns e outros atentam contra os "valores democráticos". Atacar "Mamo" Contreras [18] é o mesmo que atacar Lucho Soto [19] , Ramona Parra ou Ricardo Fonseca.[20]
Neste quadro é compreensível que muitos vacilem, que surja uma grande dúvida (alimentada pelas realidades e pelo próprio inconsciente) e que haja uma debandada real. Alguns renegam por completo suas antigas convicções e até passam a ocupar posições em grupos da extrema-direita. Outros, encerram-se em suas casas e retiram-se da vida pública. Também há segmentos, em regra bastante minoritários, que mantêm uma postura radical: alguns, como simples obstinação quase conservadora e outros com o desejo de assimilar as causas do derrube e avançar para uma síntese nova e superior.
O anti-comunismo ou anti-marxismo acarreta consequências variadas. A primeira é a conotação reaccionária – para não dizer cavernícola – que assume o espectro cultural dominante. Sem esquecer que, em regra, quando se persegue e denigre o marxismo também se costuma envolver no ataque o iluminismo laico (em especial, o materialismo francês, o de D'Holbach, Helvetius, Diderot, etc). Com isso, no âmbito cultura abre-se a passagem para todas as variantes de obscurantismo.
Uma segunda consequência de facto faz parte da já indicada. Pela sua importância convém mencioná-la à parte: o silenciamento do marxismo opera como suporte sólido da ideologia dominante e, por isso, do regime imperante. Por que? Porque tal silêncio é o silêncio da arma crítica mais corrosiva do status quo. Como bem apontou Marx, a dialéctica, "na inteligência e explicação do que existe abriga ao mesmo tempo a inteligência da sua negação, da sua morte forçosa; porque crítica e revolucionária por essência, enfoca todas as formas actuais em pleno movimento, sem omitir, portanto, o que tem de perecível e sem se deixar intimidar por nada". [21]
Um terceiro aspecto refere-se ao papel que o marxismo desempenha nos movimentos de oposição ao sistema. Para transformar sua envolvente, o homemprecisa saber. Muito ou pouco, conforme a radicalidade dos propósitos. Se o que se procura são transformações substantivas, o saber tem que ser superado e assumir a forma de sistema teórico. Esta teoria deve avançar da exterioridade dos fenómenos rumo aos seus traços mais essenciais para a seguir voltar à exterioridade, agora ligada aos seus fundamentos e, por isso mesmo, já entendida. Neste plano, as teorias verídicas cumprem duas tarefas básicas: uma, a de iluminar o presente e desfazer distorções (evitar confusões) sobre o modo do seu funcionamento. Por exemplo, romper com a crença grosseira de que o Estado representa o bem comum, o que os lucros do capital são a contrapartida do "sacrifício" que em termos de consumo realizam os capitalistas. [22] A segunda grande função é a de orientar as práticas sociais que buscam transformar a realidade. Neste caso, a teoria passa funcionar como "farol orientador", a qual também põe em evidência sua nenhuma neutralidade política.
Pois bem, se a teoria adequada não existe ou não é conhecida, é muito evidente que os movimentos progressistas ficam como se estivessem numa rua escura e infestada de assaltantes, sem luzes e sem defesas.
Neste quadro, temos que o paradigma marxista, pelos seus traços e temática, deveria representar a arma fundamental de todo movimento radical e popular. Sem estas luzes, dificilmente se pode avançar para processos de transformação social substantivos.
Mas o que acontece hoje no Chile? Em geral, os mesmos sectores populares que começam a reclamar contra o modelo neoliberal desconhecem completamente a teoria marxista. Sublinhemos: ao afirmar o anterior não estamos a pensar num estudo e reflexão sólido e profundo. O ponto é outro: nem sequer se leu algum texto elementar. Pior ainda, em termos algo soterrados, em cada alma parecem operar os insultos e preconceitos inculcados pela ditadura pinochetista. E o que sucede com os intelectuais de esquerda? Além de serem poucos, não se vêem muito equipados. [23] Ignoram de todo a teoria económica de Marx, com Lenine e o Gramsci dos Conselhos Operários de Turim, assustam-se. [24] Costumam auto-declarar-se "pluralistas" e "anti-dogmáticos", abertos, "não mecanicistas" e etc. No fundo também parecem haver engolido boa parte dos sermões do anti-comunismo mais rústico. Assustaram-se e na academia subsistem como pessoas com "ideias clandestinas" (as marxistas) e opiniões públicas "respeitáveis" (as de direita). Nos seus textos tende a verificar-se uma espécie de "salada russa" conceptual, salada na qual até aparecem nazis confessos como Heidegger. E também, toda a bazófia do "pós-modernismo". Em geral, parece que se chega a identificar a desordem mental com a profundidade do pensamento. E mais do que entender a fundo os processos reais em curso, interessa-lhes "estar na moda". [25]
O que se depreende de tudo o que temos argumentado? A resposta, a nível do enunciado, é simples: o movimento popular chileno deverá partir (ou melhor, reiniciar-se) quase desde o zero. A nível prático, naturalmente, o processo real será bastante complexo e difícil de implementar.
A que situação chegamos?
Por um lado, temos algo assim como uma revolução de aspirações, em muito alto grau impulsionada pelo próprio sistema. [26] Pelo outro lado, encontramo-nos com um sistema completamente incapaz de satisfazer essas aspirações. [27] Até agora, no fundamental, a contradição foi-se "resolvendo" pela via dos sonhos e ilusões.
No acima mencionado observa-se uma singular confluência de factores económicos e não económicos. Por um lado, temos uma base estrutural que é características do estilo neoliberal: o operar com uma altíssima taxa de mais-valia – o que engendra um problema sério que gira em torno da realização da mais-valia. Em termos mais corriqueiros, o problema do sistema – dada a alta taxa de exploração que o caracteriza – radica em como encontrar um nível de procura efectiva capaz de realizar (transformar em dinheiro) a altíssima massa de mais-valia que gera. [28]
O segundo problema é de carácter político: como legitimar um sistema que funciona com uma tremenda desigualdade na distribuição do rendimento e da riqueza? E como fazê-lo sem alterar essa distribuição ou alta taxa de mais-valia?
Isto nos remete para o problema cultural ou, mais precisamente, o das formas que pode assumir a consciência social dominante. O que encontramos aqui? Uma consciência, nos de baixo, profundamente despolitizada e que atribui virtudes mágicas a certas formas de consumo. Estas formas, supõe-se, concedem alto estatus social e a felicidade que – também se supõe – está unida a essa nível da escala social. É a ideologia que penetra e se estende pela via das vitrinas do grande comércio e, especialmente, pelo expediente de um sistema de media (TV e outros) que aliena e idiotiza as grandes massas.
O acesso ao "consumo mágico" não é gratuito. Como se financia? Um: reduzindo a zero a propensão a poupar (já em si baixíssima) das camadas médias assalariadas. Dois: com o crédito, que é o recurso básico. Hoje, as camadas médias assalariadas vivem com um elevadíssimo nível de endividamento, o que obviamente não contribui para a sua tranquilidade espiritual. Tudo isso, em ambos os casos, no plano económico pode suavizar um pouco o problema da realização. Neste contexto deve-se assinalar outro processo importante: a expansão da ocupação em tais sectores. Expandem-se, por isso, as camadas médias assalariadas. E como estas são improdutivas, não geram valor e vivem a cargo da mais-valia que o sistema gera. Neste sentido, o consumo destes segmentos passa a funcionar como um importante factor de realização.
Os sonhos podem-se prolongar durante algum tempo. Mas, ao longo do temo, tal situação não pode subsistir. Por outras palavras, chegará o desencanto (a "morte na alma"?) e as massas frustradas deverão definir a conduta a seguir. Em geral, acredita-se que tais desencantos impulsionam uma atitude radical e de aguda oposição ao status quo. Mas esta não é a única possibilidade. Em certas ocasiões, essas frustrações acabam por ser aproveitadas pela direita mais extrema, de corte fascitóide. No plano objectivo, devem-se conjugar dois aspectos: i) superar a actual alienação enfermiça pelo consumo de ostentação; ii) elevar a capacidade de consumo racional dos trabalhadores e camadas médias. Naturalmente, isto implica romper de raiz com o estilo neoliberal imperante.
A rota efectiva de saída dependerá, em alto grau, das perícias políticas de uns e outros. O dado estrutural tende a favorecer uma saída para o lado das esquerdas. Mas, existe no Chile essa força política autenticamente de esquerda? No momento parece que não. Para logo, haverá que ver.
Notas Por um lado, temos algo assim como uma revolução de aspirações, em muito alto grau impulsionada pelo próprio sistema. [26] Pelo outro lado, encontramo-nos com um sistema completamente incapaz de satisfazer essas aspirações. [27] Até agora, no fundamental, a contradição foi-se "resolvendo" pela via dos sonhos e ilusões.
No acima mencionado observa-se uma singular confluência de factores económicos e não económicos. Por um lado, temos uma base estrutural que é características do estilo neoliberal: o operar com uma altíssima taxa de mais-valia – o que engendra um problema sério que gira em torno da realização da mais-valia. Em termos mais corriqueiros, o problema do sistema – dada a alta taxa de exploração que o caracteriza – radica em como encontrar um nível de procura efectiva capaz de realizar (transformar em dinheiro) a altíssima massa de mais-valia que gera. [28]
O segundo problema é de carácter político: como legitimar um sistema que funciona com uma tremenda desigualdade na distribuição do rendimento e da riqueza? E como fazê-lo sem alterar essa distribuição ou alta taxa de mais-valia?
Isto nos remete para o problema cultural ou, mais precisamente, o das formas que pode assumir a consciência social dominante. O que encontramos aqui? Uma consciência, nos de baixo, profundamente despolitizada e que atribui virtudes mágicas a certas formas de consumo. Estas formas, supõe-se, concedem alto estatus social e a felicidade que – também se supõe – está unida a essa nível da escala social. É a ideologia que penetra e se estende pela via das vitrinas do grande comércio e, especialmente, pelo expediente de um sistema de media (TV e outros) que aliena e idiotiza as grandes massas.
O acesso ao "consumo mágico" não é gratuito. Como se financia? Um: reduzindo a zero a propensão a poupar (já em si baixíssima) das camadas médias assalariadas. Dois: com o crédito, que é o recurso básico. Hoje, as camadas médias assalariadas vivem com um elevadíssimo nível de endividamento, o que obviamente não contribui para a sua tranquilidade espiritual. Tudo isso, em ambos os casos, no plano económico pode suavizar um pouco o problema da realização. Neste contexto deve-se assinalar outro processo importante: a expansão da ocupação em tais sectores. Expandem-se, por isso, as camadas médias assalariadas. E como estas são improdutivas, não geram valor e vivem a cargo da mais-valia que o sistema gera. Neste sentido, o consumo destes segmentos passa a funcionar como um importante factor de realização.
Os sonhos podem-se prolongar durante algum tempo. Mas, ao longo do temo, tal situação não pode subsistir. Por outras palavras, chegará o desencanto (a "morte na alma"?) e as massas frustradas deverão definir a conduta a seguir. Em geral, acredita-se que tais desencantos impulsionam uma atitude radical e de aguda oposição ao status quo. Mas esta não é a única possibilidade. Em certas ocasiões, essas frustrações acabam por ser aproveitadas pela direita mais extrema, de corte fascitóide. No plano objectivo, devem-se conjugar dois aspectos: i) superar a actual alienação enfermiça pelo consumo de ostentação; ii) elevar a capacidade de consumo racional dos trabalhadores e camadas médias. Naturalmente, isto implica romper de raiz com o estilo neoliberal imperante.
A rota efectiva de saída dependerá, em alto grau, das perícias políticas de uns e outros. O dado estrutural tende a favorecer uma saída para o lado das esquerdas. Mas, existe no Chile essa força política autenticamente de esquerda? No momento parece que não. Para logo, haverá que ver.
1. Estes fenómenos também põem em causa os pressupostos centrais da teoria neoclássica do consumidor. Mas este é um tema que não será abordado aqui.
2. A taxa de mais-valia mede a relação entre o rendimento inicialmente apropriado pelos capitalistas (massa de mais-valia anual gerada pelo sistema) e a parte que vai para os assalariados produtivos (capital variável consumido no ano). O pagamento do salário dos trabalhadores improdutivos fica a cargo da mais-valia. O Rendimento Nacional é igual à soma da mais-valia e o capital variável gasto no ano. Por isso, se se eleva a taxa de mais-valia (ou taxa de exploração) eleva-se também a parte da mais-valia no Rendimento Nacional. Exemplo: se a taxa de mais-valia fosse igual a dois terços (40 para o capital e 60 para operários produtivos), a relação entre excedente (mais-valia) e Rendimento Nacional será igual a 40%. Se a taxa de mais-valia fosse igual a 4.0, teríamos que do Rendimento Nacional 80 unidades iriam para as mãos do capital e 20 para a classe trabalhadora. Consecutivamente, o excedente como porção do Rendimento Nacional seria igual a 80%.
3. Adam Smith, "La Riqueza de las Naciones", pág. 17. FCE, México, 1981.
4. J. Bentham, "Escritos económicos", pág. 10. FCE, México, 1978.
5. Karen Horney, "La personalidad neurótica de nuestro tiempo", pág. 118. Planeta, México, 1986.
6. Em matéria de consumo de tranquilizar, o Chile não é jaguar e sim um tigre. Hoje ocupa um dos primeiros lugares a nível mundial na referida rubrica.
7. Ver Karen Horney, obra citada.
8. Vance Packard, "Los buscadores de prestigio", pág. 317. EUDEBA, Buenos Aires, 1971.
9. Suponhamos que o Rendimento Nacional seja igual a 100. Que desses 100, aos assalariados produtivos correspondam 20 e o resto (80) passa ao capital. Os assalariados produtivos, ao gastarem todos os seus salários compram por 20 e, em consequência ajudam a realizar (a converter em dinheiro) a parte correspondente do Rendimento Nacional. Mas ainda restam 80 unidades sem vender. Estas unidades representam uma mais-valia (lucros) potencial, que deve ser transformada em dinheiro para ser real. A pergunta que emerge então é quais são os elementos do gasto que podem cumprir tal papel. Em termos gerais as rubricas do gasto que podem operar como gastos de realização são: a) a acumulação; b) o consumo dos capitalistas; c) os gastos improdutivos do governo (incluem os financiados com défice); d) outros gastos improdutivos diferentes dos do governo (ex. o consumo dos assalariados improdutivos); e) o saldo externo: exportações menos importações. O que, em grosso, coincide com as exportações de capital. Se este tipo de gastos não chega a um nível de 80, parte das mercadorias que integram o excedente ficarão sem vender e pode precipitar-se uma "crise de realização". Quando a distribuição do rendimento é muito regressiva, os problemas que surgem pelo lado da realização pendem como espada de Damocles sobre o sistema. Daí a funcionalidade de elevar o consumo (suntuário, em especial) e os gastos improdutivos para evitar esse problema. Para isso, utilizam-se todos o meios possíveis, como a propaganda alienante, o arrivismo ("trate de viver como os de cima"), etc. Em resumo, "o capitalismo não pode ficar (...) sem a procura do seu sobre-produto". Cf. Rosa Luxemburgo, "La acumulación de capital", pág. 337. Grijalbo, Buenos Aires, 1966.
10. Entre um perito em marketing e um filósofo e ensaísta agudo, ganhará sempre o mercadólogo: trata-se de vender, não de pensar. Na nossa época, gente como Kant e Hegel teriam morrido de fome (ou se dedicado a cantar "jingles" para vender dentifrícios).
11. Os estudos que se conhecem sobre a saúde mental do "bem sucedido" empresariado chileno mostram que neste sector a saúde mental não abunda.
12. De passagem, como já se disse, ajuda-se a resolver o complicado problema de realização que é típico das economias neoliberais.
13. A abertura irrestrita facilitou as importações de bens de consumo, os quais provêm em alta percentagem da China. Com isso foi embaratecido também o preço de tais bens. Claro está que a custa da destruição da indústria autóctone que antes os produzia.
14. Os sociólogos escrevem que "onde existe a igualdade geral não há política, uma vez que esta compreende subordinados e superiores". Na situação que nos preocupa, o apoliticismo não implica ausência de política e sim que os de baixo (os "subordinados") aceitam sem uma palavra de protesto, sem se mexerem, as decisões que tomam os de cima (os "superiores"). A citação é Hans Gerth y Wright Mills, "Carácter y estructura social", pág. 192. Edit. Paidós, Barcelona, 1984.
15. Certamente existe uma rota de saída: manter-se numa organização clandestina. Mas, quase por definição, uma tal organização tende a ser relativamente pequena.
16. Com elas, no melhor dos casos, conversa-se à noite, debaixo da almofada.
17. A UDI, partido de ultra-direita hoje dirigindo o governo de Piñera, perante a morte do Comandante Chávez recusou-se a manter um minuto de silêncio no Parlamento, alegando que Chávez foi um ditador. Na verdade, aplicando stricto sensu os esquadros da democracia burguesa, constata-se que a Venezuela de Chávez foi infinitamente mais democrática que o Chile da Concertación e de Piñera.
18. General do Exército, torturador e chefe da policía política de Pinochet.
19. No Chile, imagem do trabalhador anónimo.
20. Parra e Fonseca, destacados dirigentes da esquerda comunista chilena. A primeira, assassinada pela policía. O segundo, secretario general do Partido durante os duros anos quarenta,
21. C. Marx, "El Capital", Tomo I, pág. XXIV, FCE, México, 1964.
22. Marx escrevia que "o lucro e a renda da terra, ou o capital e a propriedade da terra, jamais podemser fonte de valor". Se assim são as coisas, qual é a fonte de valor e por conseguinte dos lucros? Como o valor só emerge se houver trabalho gasto socialmente necessário e aplicado no sector produtivo, a resposta é clara: trata-se do trabalho excedente que geram os trabalhadores assalariados. A exploração radica neste fenómeno: os trabalhadores geram um valor acrescentado que é superior ao valor do capital variável e os capitalistas, a venderem a produção, apropriam-se do valor acrescentado. Com isto pagam os salários e o que sobra passa a constituir os seus lucros. A citação é de C. Marx, "Theories of Surplus-Value", Part I, pág. 85. Progress Publishers, Moscow, 1969.
23. De Marx manejam frases, nada mais. De facto nunca o estudaram com rigor e sistema.
24. Com o Mao da Revolução Cultural, da qual têm uma imagem caricatural, escandalizam-se e aterram-se.
25. A intelectualidade francesa – tão imitada na América Latina – costuma ser muito propensa à frivolidade. Já o advertia o professor Kant: "na metafísica, na moral e nas doutrinas da religião, nunca se é suficientemente precavido com os escritos desta nação. Domina neles comummente muita bela fantasmagoria, que não sustem a prova de uma investigação repousada. O francês gosta da audácia nas suas expressões; mas para alcançar a verdade não há que ser audaz e sim precavido. Na história gostam de ter anedotas, nas quais só sente a falta de serem verdadeiras". Ver E. Kant, "Observaciones sobre el sentimiento de lo bello y lo sublime", pág. 159. Porrúa, México, 1999.
26. O que não se ve confundir com o impacto do chamado "efeito demonstração".
27. O ponto não se deve entender como não crescimento do salário real e sim de um crescimento que fica muito atrás do crescimento das aspirações.
28. No Chile, na ordem dos 75% ou mais do Rendimento Nacional.
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