domingo, 9 de novembro de 2008

HISTÓRIA - Os árabes têm de confiar nos ingleses e israelistas para conhecer sua história.

Robert Fisk.

"Não há arquivos do ministério de relações exteriores, nem interiores, nem do ministério da defesa. Não há cláusula que proíba publicar alguma coisa por 30 anos. Há proibição eterna. Não há Arquivo Nacional no mundo árabe, nem há investigadores esperando para entrar nalgum Arquivo Nacional num país árabe. É assim no Cairo, em Riade, em Beirute e em Trípoli. Ditaduras e califados zelam pelos próprios segredos". Leia aqui o texto de Robert Fisk

Em Damasco, há enorme estátua do falecido presidente Hafez al-Assad, sentado em imponente cadeira de ferro, à frente da Biblioteca Assad, de 22 mil metros quadrados; na mão direita, um livro-gigante, aberto, de ferro.

Às costas de Assad, estão os arquivos da correspondente ditadura. Mas são documentos secretos e nem uma folha impressa é acessível aos cidadãos sírios. Não há arquivos do ministério de relações exteriores, nem interiores, nem do ministério da defesa. Não há cláusula que proíba publicar alguma coisa por 30 anos. Há proibição eterna. Não há Arquivo Nacional no mundo árabe, nem há investigadores esperando para entrar nalgum Arquivo Nacional em país árabe.

É assim no Cairo, em Riade, em Beirute e em Trípoli. Ditaduras e califados zelam pelos próprios segredos.

O único país do Médio-Oriente no qual é possível consultar arquivos nacionais públicos atende pelo nome de Israel – e é bom para os israelitas. Mas o resultado é óbvio. Investigadores israelitas têm podido desconstruir a história tradicional da pequena Israel – provando que jamais houve rádios árabes que mandassem os palestinos deixar a própria terra, que os árabes foram sim, expulsos de suas cidades, por métodos de limpeza étnica, pelos grupos Irgun e Hagana.

Mas não há investigador árabe que possa responder à propaganda, com argumentos coletados dos arquivos de história árabe. Quem queira tentar, tem de ir aos Arquivos Nacionais em Londres, e ler os despachos, de 1948, enviados da Palestina, pelo General Cunningham; ou tem de citar historiadores israelitas. E acabaram-se as fontes. Se não se contam as biografias autolaudatórias de ditadores e generais árabes, o que há está em Londres. Mesmo os pesados volumes escritos por Walid Khalidi sobre as cidades palestinas destruídas dependem, completamente, da pesquisa do historiador israelita Benny Morris.

Lentamente, contudo, começa a acumular-se na Região uma pequena bagagem de referência histórica. Se não há como conhecer os documentos privados dos líderes do lamentável Exército Árabe de Libertação de 1948, pode-se pelo menos, ainda, ouvir o depoimento dos sobreviventes palestinos.

Rosemarie Esber, por exemplo, deu bom uso aos saberes que obteve nas universidades de Londres e Johns Hopkins e entrevistou, na Jordânia e no Líbano, 126 homens e mulheres palestinos que perderam casas e terras em 1948 e 1949. Seu livro, Under the Cover of War [Sob a camuflagem da guerra] ajuda a equilibrar o que narrem documentos e diários de um lado, com história oral recolhida do outro lado. O livro não poupa os árabes – não, pelo menos, os árabes que cometeram atrocidades ou os voluntários iraquianos que se apresentaram para defender a Palestina, sem nada saber da geografia do país – mas, mesmo assim, o sofrimentos dos que tiveram de fugir está registado.

Por exemplo, a fala de Abu Mohamed, da vila de Saquiia, leste de Telaviv, contando o que aconteceu dia 25/4/1948: "Os judeus entraram na cidade e começaram a atirar em mulheres, homens e velhos. Prenderam as meninas e até hoje não se sabe o que aconteceu a elas. Vieram da colônia que havia perto da vila... Usavam armas Bren [1]. Os tanques estacionaram no centro da vila. Naquele dia, morreram 14. Duas mulheres não conseguiram correr e foram mortas na vila... As pessoas correram juntas na direção de al-Lid (Lod, onde, na Israel atual, está o aeroporto Ben Gurion). Depois, as famílias correram separadas... Deixamos tudo o que tínhamos. Imaginamos que seria por pouco tempo e que poderíamos voltar."

No Líbano também floresce um comércio de livros baseados em diários e arquivos pessoais. Um dos mais intrigantes é A Face in the Crowd: The Secret Papers of Emir Farid Chehab, 1942-1972 [Um rosto na multidão: Os papéis secretos de Emir Farid Chehab], com os documentos privados do chefe do serviço de inteligência do Líbano, imediatamente depois da II Guerra Mundial. Além de demonstrar que as relações Síria-Líbano podiam ser tão ruins nos anos 40 quanto nos anos 90, aprende-se ali que Chehab foi espião ativo, cujos agentes na Jordânia, em 1956, trabalharam para descobrir por que o jovem Rei Hussein demitiu o comandante britânico da Legião Árabe, Glubb Pasha. "Glubb gastava mal, controlava com mão de ferro as finanças do Exército e as despesas secretas, e recusava-se a partilhar informação relevante com os oficiais e comandantes árabes", escreveu um informante que permanece incógnito, em carta para Chehab, dia 11/3/1956.

"[Glubb] interferia em tudo, [controlava até] as linhas telefônicas de vários ministérios. Um telefonista que trabalha em Aman admitiu para mim que até as redes de comunicação do Palácio e do Primeiro-ministro eram controladas pelo exército. Um comunicado secreto emitido por Glubb para todos os chefes de unidades britânicas foi descoberto recentemente; dizia que, em caso de ataque israelita os britânicos deveriam retirar-se sem resistência. Oficiais independentes levaram esse comunicado ao Rei." Então, adeus, Glubb Pasha.

Mas teria isso algo a ver, talvez, com a também secreta "Operation Cordage", citada pela primeira vez por Keith Kyle no seu excelente livro sobre Suez, e ainda mais rigorosamente investigada por Eric Grove da Universidade Salford? "Cordage" foi o plano inglês para defender seu aliado jordano, no caso de Israel atacar o Egipto. O plano, segundo Grove, incluía a "campanha aérea conduzida pelos Venoms (ingleses, da RAF) das bases de Aman e Mafraq na Jordânia, para destruir a Força Aérea israelita em 72 horas... A Alemanha colaborará com uma esquadrilha de aeronaves (Sabres ou Hunters) operada a partir de Chipre..." Uma brigada de pára-quedistas seria levada à Jordânia para defender as bases aéreas britânicas e, assim – junto com a Legião Árabe de Glubb –, também para defender Amã contra os israelitas. Hussein demitiu Glubb no final de fevereiro de 1956; porque Glubb, na formulação diplomática de Grove, "criara problemas". Então… o quanto Glubb sabia sobre a "Operation Musketeer"?

O que realmente criara "problemas", é claro, foi o próprio plano secreto dos ingleses de atacar o Egipto, com França e Israel, depois do quê teve início a "Operation Musketeer" – o ataque a Suez –, a partir da "Operation Cordage", e os israelitas, inimigos potenciais dos britânicos… repentinamente tornaram-se seus aliados secretos. Mas isso, é claro, é o que se lê nos arquivos britânicos. Desgraçadamente, ainda passarão muitos anos antes de que se saiba o que Assad lê, ali, na calçada de sua biblioteca em Damasco, naquele livro de ferro.


[1] Armas Bren eram metralhadoras leves, que os ingleses usaram dos anos 30 até 1991. A palavra "Bren" é formada com as duas primeiras letras de "Brno", cidade tcheca onde as armas eram desenhadas, e de "Enfield", cidade inglesa onde as armas eram fabricadas (na British Royal Small Arms Factory) (da Wikipedia, em http://en.wikipedia.org/wiki/Bren_gun).
Fonte:Site Esquerda.net

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