segunda-feira, 10 de novembro de 2008

O DIA SEGUINTE : as raízes da vitória de Obama e os rescaldos da direita.

FLÁVIO AGUIAR

Obama não galvanizou apenas um sentimento superficial, como uma leitura apressada de seu lema “é tempo de mudar” sugere. É claro que esse lema padece da indefinição que lemas de campanha costumam ter. Mas ele e o seu desempenho mexeram em raízes profundas da cultura norte-americana, não apenas em bolhas de superfície.

A expressão “O dia seguinte” sempre lembra algum evento catastroficamente negativo ou positivo e suas conseqüências imediatas, quando uma nova era começa. As reações diante da eleição (inesperada, se olharmos desde um ano atrás; previsível, se olharmos desde o começo da última fase da crise financeira, a partir do começo de outubro) de Barack Obama como o 44° presidente dos EUA seguem esse padrão. Elas variam desde a euforia do “uma nova era começa” até a depressão do “nada vai mudar”.

Talvez importe começar a visão desse acontecimento sem dúvida notável – um jovem negro, ou afro-americano, ou mestiço tornar-se presidente dos EUA – não pelo que “vai mudar ou não”, mas pelo que “já mudou”.
Muitas observações sobre o desempenho eleitoral de Obama e de sua campanha apontam o dedo para seu assessor de comunicação, David Axelrod, “Mr. Internet”. Esse espaço desempenhou um papel relevante, mais relevante do que o costume, na campanha do vencedor de 04 de novembro. Duas alavancas importantes foram:

1) As contínuas mensagens que prontamente chegavam aos inscritos no comitê de Obama e passavam a circular no espaço cibernético; nem McCain ou Sarah Palin ou algum de seus assessores terminavam de formular uma crítica a Obama, e a resposta já estava na internete.

2) A coleta de fundos através das mensagens dirigidas pela internete; não sei que percentual se arrecadou dessa forma, em relação ao conjunto dos fundos, mas é certo que esse movimento criou, como reposta, uma “vaga” de mobilização, formatando a impressão e a expressão de que o cidadão comum, especialmente o cibernético, podia ser decisivo na infra-estrutura da campanha.

Mas é necessário ir além da observação midiática, para discernir qual a conexão que ela criou, ou ajudou a consolidar. Essa conexão foi com o imenso contingente de jovens que, pela primeira vez em muitos anos, tomou parte de modo intenso nesta campanha de 2008.

Estariam esses jovens motivados apenas pela crise? Penso que não. O que os motivou, além dessas preocupações imediatas e compreensíveis, foi a re-conexão que a campanha de e em torno de Obama operou, da política com um sentimento do futuro. O futuro foi o grande tema da campanha do senador por Illinois, o futuro como não necessariamente repetição da mesmice do mesmo, do presente e portanto do passado. E esse é um sentimento que encanta os jovens, sobretudo os que, entre 18 e 24 anos, mais ou menos, participavam de um confronto político para valer pela primeira vez. O confronto de Bush com Kelly, quatro anos atrás, não foi para valer. Kelly não galvanizou ninguém, e Bush foi eleito na inércia de seu primeiro mandato como presidente, posto que os desastres que semeou não tinham ainda mostrado todo o seu poderio.

É difícil entender o que se passou e seu significado, ou as possibilidades de seu significado, se não atentarmos para a rica herança libertária da cultura norte-americana. Sei que é complicado percebe-la, num momento em que a administração de Bush potenciou toda a face horrenda do imperialismo dos Estados Unidos, com suas “guerras humanitárias” ou “preventivas”. Mas não esqueçamos, por exemplo, que o 1o. de maio mundial tem sua origem nos Estados Unidos, na Chicago onde Obama seu os primeiros passos importantes de sua carreira política. Não esqueçamos o quanto o mundo deve a este país no que toca aos movimentos pela paz, de protesto contra todas as formas de discriminação, e o quanto a cultura mundial deve à música, às artes, à literatura, à cinematografia grandiosas que cresceram naquela terra. Nela cresceu Henry Kissinger. Mas também é a terra da palavra de Noam Chomsky.

A guerra do Vietnã foi ganha pelo heróico povo vietnamita sim, mas também foi ganha nas universidades e ruas norte-americanas, onde jovens (eles então de novo) amargaram confrontos pesados, muitos optando pelo exílio e outros morrendo debaixo das balas da Guarda Nacional, como em Kent, Ohio. Não esqueçamos que a terra da Ku-Klux-Klan é também a terra de Martin Luther King. Nossas imprensas conservadoras se inspiram em modelos norte-americanos? E nós, da alternativa, não nos inspiramos também em John Reed?

Não ver tudo isso (e os exemplos aqui são poucos dentre milhares e milhares de possíveis outros) é como querer ver a lição libertária dos Evangelhos apenas através dos óculos com que a hierarquia católica os enquadrou; ou ver a contribuição da cultura germânica apenas pela visão sombria de seu uso pelos nazistas; ou pensar que apenas Goebbels era alemão, e não Karl Marx nem Karl Liebknecht. Na Berlim devastada e reconstruída ainda ecoam as palavras do Führer, nascido na Áustria? Também ressoam as da polonesa Rosa Luxemburgo, a Rosa Vermelha. Uma cultura sempre é feita de várias culturas.

Obama não galvanizou apenas um sentimento superficial, como uma leitura apressada de seu lema “é tempo de mudar” sugere. É claro que esse lema padece da indefinição que lemas de campanha costumam ter. Mas ele e o seu desempenho mexeram em raízes profundas da cultura norte-americana, não apenas em bolhas de superfície. No que isso vai dar, depende sim de Obama e seu staff, cujo perfil ainda não está muito bem definido e talvez leve tempo para se definir. Talvez até seja bom que leve tempo, pois as definições muito imediatas do dia seguinte tendem a se tornar imediatistas.

Uma coisa é certa. As pessoas que já apontam o dedo em riste e a unha adunca para Obama e vaticinam de modo um tanto arrogante e ressentido que “não vai dar certo” me lembram um quadro tão domesticamente nosso, das nossas raízes brasileiras. Esse quadro pode se resumir em três frases, nada agradáveis de se ouvir, mas que nem por isso deixam de existir:
“Ah, os brancos fizeram a sujeira; toca agora ao negro limpá-la; e ai dele se não fizer um serviço direito!”.

McCain representa tudo o que foi derrotado nesta eleição de novembro de 2008: um sistema obsoleto de representação política, baseado nos truques eleitorais golpistas que levaram o jovem Bush ao poder em 2000. Mas há sobreviventes políticos entre os republicanos, como Sarah Palin e Condoleezza Rice, que vem sendo citada como a grande opositora a Obama.

Richard Nixon entrará para a história como o inábil presidente que perdeu o cargo por causa do escândalo de Watergate. Já Henry Kissinger, que ganhou o prêmio Nobel, é freqüentemente citado com o diplomata que encerrou a guerra do Vietnã. As pessoas esquecem (e muitas de propósito) que Kissinger foi a sombria máscara que governou a política externa norte-americana durante muitos anos, levando ao golpe no Chile, aos desaparecimentos na Argentina, etc.

Agora estamos assistindo um fenômeno semelhante. Bush filho vem sendo citado como um dos maiores desastres para os Estados Unidos. É um semeador de ruínas. Não só enterrou os EUA no Iraque e no Afeganistão, como enterrou a própria população num poço de pobreza e miséria. Milhões de norte-americanos estão sem seguro saúde; outros milhões estão arriscados de perder suas casas. O sistema – disso ninguém duvide – se sairá bem. Os Estados Unidos poderão manter sua hegemonia monetária, sem o lastro ouro, porque agora tem o lastro China. Quando Henry Kissinger foi à China, e fez Nixon lá ir, na década de 70, ele sabia o que estava fazendo. Ele era um apostador, mas sabia no que estava apostando. Nixon não. O resultado aí está. Odiado por todos os lados, Kissinger é um sobrevivente. Nixon é um afogado.

Entre as perdas de Bush, o semeador de desastres, duas exceções despontam, ao lado de um acompanhante na catástrofe. McCain é o acompanhante. Perdeu a eleição e a vez. Não terá outra, está idoso demais. Ele de fato representa tudo o que foi derrotado nesta eleição de novembro de 2008: um sistema obsoleto de representação política, baseado nos truques eleitorais golpistas que levaram o jovem Bush ao poder em 2000.

Mas em todo esse mundo, há os sobreviventes. Sarah Palin é uma sobrevivente. Agressiva, a política do Alaska conseguiu firmar seu nome entre os grandes da política norte-americana. Valeu-se de tudo: acusou Obama gratuitamente, chamou a atenção sobre suas roupas, fez-se a líder da extrema direita. Pode ser que dê resultados.

A outra sobrevivente, e assim vem sendo citada na imprensa européia, é Condoleezza Rice.

Estranha figura. Começou sua carreira política no Partido Democrata. Rompeu com este durante a gestão de Jimmy Carter, e aparentemente por discordâncias com relação à sua política externa. Aderiu aos republicanos, e ao subir na hierarquia, levou a extremos o que aprendeu no outro partido.
Explico.

Os democratas sempre foram mais protecionistas e intervencionistas (no resto do mundo) do que os republicanos. Por quê? Talvez por hábito: os democratas tiveram que administrar duas guerras mundiais, sempre estiveram em contato com outras forças políticas, mundo a fora. Eram mais cosmopolitas. Os republicanos eram mais paroquiais, e mais ligados ao big business. Acreditavam na força das granas, não das armas.

Parece mentira, mas George Bush filho, em seu debate com Al Gore, defendeu menos intervenção dos EUA na política externa do que aquele. É claro que numa idéia de que “nós” temos que cuidar da “nossa” casa, o mundo que se vire. Ao assumir o governo, depois do golpe de estado que o levou ao poder, Bush tinha como líderes de sua política externa gente como Wolfowitz e Zoellick, ou seja, os então economistas ideólogos do livre-mercado, do laissez-faire.

Foi com o 11 de setembro (e há aí uma estranha coincidência de pontos de vista entre a administração de Bush e a Al Qaeda) que a política de Bush mudou. E quem formulou a mudança foi Condoleezza Rice. A idéia – formulada em grupos de discussão por ela organizados ou liderados, como o “grupo Vulcano” - passou a ser a de construir em terras alheias governos pró-americanos, vulgarmente conhecidos e propagandeados como pró-democracia. Neste sentido, Condoleezza foi o fruto pós-moderno de uma construção antiga, e per-formada no ambiente universitário. Ou seja: nenhum compromisso com a história; nenhum respeito pelas particularidades, a não ser, de certo modo, as do próprio ego, concentradas na certeza de que elas empalmam uma verdade de algum modo universal; destruição do que antes havia, para a construção de novos regimes favoráveis ao western way of life, ou seja, o regime de “farinha pouca, meu pirão primeiro”, pois é disto que se vem tratando, faz tempo.

Condoleezza vem sendo citada como a grande opositora a Obama. Até porque ela tem uma visão de mundo muito bem estruturada, como Henry Kissinger tinha. Este último era esperto o suficiente para tirar os Estados Unidos do atoleiro da derrota no Vietnã e ao mesmo tempo atola-los não só nos golpes de estado na América Latina como na própria operação Condor. Condoleezza foi capaz de sobreviver à administração desastrada e desastrosa de Bush, saindo incólume dos desastres que sua visão de mundo provocou.
Sarah Palin que se cuide.
Fonte: Agência Carta Maior.

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