Do blog "Vi o Mundo", do jornalista Luiz Carlos Azenha.
DA "COLABORAÇÃO" E RESISTÊNCIA AO OPRESSOR
Ziyaad Lunat, na Eletronic Intifada
Em 1835, Thomas Macaulay, autoridade colonial britânica na Índia, decretou que "nós precisamos fazer o melhor possível para formar uma classe de intérpretes entre nós e os milhões que governamos, uma classe de pessoas hindus no sangue e na cor, mas britânica no gosto, nas opiniões, nas palavras e no intelecto". Os poderes coloniais europeus sempre usaram intermediários políticos através de uma rede de colaboradores nativos como forma conveniente de subjugar as massas. Esses colaboradores controlavam os colonizados em nome dos chefes que se tornaram alheios às revoltas populares. No entanto, esse processo nem sempre é previsível. Em 1857, os cipaios, soldados hindus aliados aos britânicos, se revoltaram contra os colonizadores. A resposta britânica foi dura. Mais de 100 mil cipaios e centenas de milhares de civis foram mortos a sangue frio. O episódio ficou conhecido como o primeiro da luta da Índia pela independência; que finalmente triunfou em 1947.
Um ano depois, colonizadores europeus estabeleceram o estado de Israel através de uma campanha premeditada de limpeza étnica da população nativa da Palestina. Apesar das divisões entre os governos árabes e a manipulação interessada da causa palestina, a resposta foi de oposição em linha com os sentimentos do povo árabe. Como resultado disso, os governos ocidentais têm tentado durante décadas forçar a submissão desses governos e forçá-los a aceitar um estado judeu inerentemente racista entre eles.
E enquanto Israel massacra os palestinos de Gaza de novo, uma pessoa é levada a perguntar o que aconteceu com a voz árabe. Não é surpresa que os superpoderes de hoje apoiam os atos genocidas de Israel em Gaza. Colonização, escravidão, genocídio e limpeza étnica foram uma constante do colonialismo aventureiro ocidental. O que atingiu níveis desconhecidos é o apoio ativo e vocal de governos árabes ao massacre do povo palestino. Como os cipaios hindus um dia fizeram, novos colaboracionistas aderiram ao coro de vozes apoiando a carnificina.
A fronteira de Rafah entre Gaza e o Egito é um exemplo, simbolizando uma dolorosa nova realidade. O governo de Hosni Mubarak no Egito e a não-eleita Autoridade Palestina em Ramallah se juntaram ativamente a Israel, primeiro para tentar derrubar sem sucesso o Hamas de Gaza através da força e depois para sufocar os palestinos em Gaza negando a eles itens básicos como comida, água limpa, tratamento médico e uma educação decente. Enquanto isso é "preparação para holocausto", como o rapporteur especial da ONU Richard Falk descreveu, o presidente Mahmoud Abbas e seus asseclas colaboravam com Israel para reprimir resistência à ocupação na Cisjordânia. Como o general dos Estados Unidos Keith Dayton disse, essas forças [da Autoridade Palestina] foram ensinadas não "para enfrentar a ocupação israelense", mas em vez disso para lutar "contra os fora-da-lei da sociedade palestina".
Não surpreendentemente, Abbas culpou o Hamas pelo derramamento de sangue, afirmando que o grupo se negou a renovar o cessar-fogo. O melhor que ele pode fazer, diante de crescente descontentamento popular, foi a "ameça" de suspender as negociações (leia-se, colaboração) com Israel. O Hamas, na verdade, propôs a extensão do cessar-fogo sob a condição de que terminasse o cerco ilegal a Gaza. Isso é reivindicar os direitos humanos básicos dos palestinos, algo que Abbas nunca pediu em suas negociações com Israel.
O outro aliado de Israel, o Egito, acusou o Hamas de evitar que os feridos escapassem dos ataques de Israel, convenientemente ignorando sua antiga decisão de barrar qualquer palestino de entrar ou sair de Rafah. De acordo com o jornal al-Quds al-Arabi, de Londres, o ministro da Inteligência do Egito, Omar Suleiman, enganou o Hamas informando o grupo que Israel não lançaria um ataque à faixa de Gaza enquanto mandava forças para fechar as fronteiras em preparação para o ataque israelense. Mais tarde forças do Egito abriram fogo contra palestinos que tentavam escapar da carnificina.
Essa forma de hipocrisia encontrou expressão em todo o mundo árabe. Nos Emirados Árabes Unidos, por exemplo, protestos em solidariedade aos palestinos foram banidos ou duramente controlados. A Liga Árabe, com sua usual incompetência, foi lenta para reagir, primeiro adiando um encontro por vários dias e depois divulgando uma declaração insignificante para que todas as partes abdicassem da violência mas não oferecendo solução para os palestinos sob cerco.
Mas uma questão mais importante é como as massas árabes e as pessoas de consciência em todo o mundo reagiram. Quais são os desejos democráticos deles? Se os governos árabes bateram seu próprio recorde no desprezo aos direitos dos palestinos, as massas árabes renovaram sua determinação para rejeitar a ocupação estrangeira; sempre que elas têm sua dignidade ameaçada o espírito de resistência à opressão é revitalizado. Em todo mundo árabe, houve um novo sentimento de repulsa e de determinação em dar solidariedade aos palestinos, unindo a causa deles às do Iraque ocupado e dos que resistem a outros regimes opressivos patrocinados pelo Ocidente.
Num discurso sóbrio para o povo do Egito, o secretário-geral do Hizballah, Hassan Nasrallah, disse: "Que o povo egípcio vá para as ruas em milhões. A polícia do Egito pode prender milhões? Não". Essas palavras resumem porque, hoje, o Hamas e o Hizballah têm mais legitimidade e respeito no mundo árabe do que qualquer regime árabe corrupto. As organizações de resistência representam as aspirações do povo comum, que quer os seus direitos e suas liberdades restaurados, não porque apoiam o terrorismo ou são sub-humanos, como boa parte da mídia ocidental os descreve. Israel e seus aliados estão plantando as sementes do radicalismo e maior instabilidade no Oriente Médio. Enquanto assistimos impotentes aos massacres em Gaza ainda não é possível discernir se isso é um meio ou um fim em si mesmo. Quanto aos regimes árabes corruptos, só têm duas escolhas: ouvem os seus cidadãos ou vão enfrentar a contínua revolta do povo. As páginas da história nos ensinaram que a opressão nunca existiu sem provocar revolta por liberdade e direitos.
Abbas e seus asseclas podem aprender muito com o motim dos "sepoy" da Índia e a luta não-violenta de Ghandi pela libertação que se seguiu. Desde os acordos de Oslo, assinados em 1993, os 15 anos de colaboração com Israel resultaram em mais assentamentos, milhares de demolições de casas, sequestros e massacres -- a verdade é que os líderes palestinos não têm nada para mostrar ao povo em troca. Chegou a hora das facções palestinas se juntarem atrás do povo, de parar com a legimitização ativa e passiva da política de Israel e de voltar ao básico. A resistência à ocupação de Israel será mais eficaz se for uma luta não-violenta, por direitos iguais com os invasores israelenses sob um estado secular. É hora de pedir o que o Ocidente sempre pediu para si: liberdade não é negociável.
Ziyaad Lunat é membro honorário da London School of Economics (LSE) e ativista palestino.
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