Exclusivo - Por Argemiro Ferreira
A veemência com que, na entrevista ao Canal Livre da Rede Bandeirantes, o notório cabo Anselmo (José Anselmo dos Santos), de olho numa indenização como perseguido político, tentou negar que já era agente infiltrado (e provocador) da direita ANTES do golpe de 1964, não consegue contestar o depoimento enfático do delegado Cecil Borer em 2001 - conforme o excelente texto (talvez definitivo) assinado por Mário Magalhães na “Folha de S.Paulo”, a 31 de agosto de 2009.
Estou me metendo nessa discussão por ser um assunto que me apaixona desde que participei, há pouco mais de três décadas, de uma reportagem de investigação da revista “Playboy”, conduzida pelo jornalista Marco Aurélio Borba, meu amigo (e editor nacional de “Opinião” no período em que dirigi a redação), que morreria poucos anos depois, num acidente em Brasília. Levantei para a revista no Rio, enquanto mais jornalistas faziam o mesmo em outros estados (não tenho aquele número da revista, mas seria bom se alguém pudesse informar ao menos o mês e o ano, entre 1977 e 1979, pois ainda acho que existem dados importantes ali).
Na época, ouvi depoimentos de vários militantes de partidos clandestinos e ex-presos políticos que tiveram contato com Anselmo (alguns insistem no detalhe de que seria marinheiro de 1ª classe e não cabo). Eles relataram fatos e dúvidas. Ouvi ainda pessoas que tinham servido na intimidade do governo João Goulart. A começar por meu amigo pessoal Raul Ryff, ex-colega de trabalho na redação do “Jornal do Brasil”, que tinha sido secretário de imprensa de Jango.
Com a ajuda de Ryff, cheguei a outros nomes de pessoas que tinham servido no Palácio no governo Jango. Eduardo Chuahy, amigo dele, capitão do Exército até ser cassado em 1964, servira como ajudante de ordens no gabinete militar da presidência, então chefiado pelo general Argemiro de Assis Brasil. Reconstituiu com riqueza de detalhes o clima existente no setor militar do Palácio e as muitas trapalhadas de Assis Brasil, que garantia existir o célebre - e ilusório - “dispositivo militar” capaz de impedir um golpe.
Eu estava particularmente interessado em falar com o comandante Ivo Acioly Corseuil, o que foi possível na época graças ao aval de Ryff e Chuahy, que o conheciam bem. De fato, Corseuil contou muita coisa, aprofundando os relatos que eu já obtivera. Mas o núcleo central do depoimento dele a mim foi a ratificação do que já dissera a Moniz Bandeira e estava no livro (publicado em 1977) “O Governo João Goulart - as lutas sociais no Brasil, 1961-1964″, sobre o qual escrevi minuciosa resenha para “IstoÉ”, infelizmente publicada na época com alguns cortes.
Ele explicou que no governo de Jango o chefe da Casa Militar (Assis Brasil) era também o secretário do Conselho de Segurança Nacional. Segundo a explicação que Corseuil me deu, em 1962 ele era chefe de gabinete do CSN e em 1963 passou a sub-chefe da Casa Militar. Foi quando fez o informe (ele não lembrava a data precisa) avisando que Anselmo era agente infiltrado, provocador e trabalhava para a CIA.
Corseuil me disse que tinha informações de várias fontes, segundo as quais havia gente infiltrada entre os marinheiros. Até pessoas vestidas de marinheiros que, na verdade, não eram marinheiros. Uma das fontes que lhe passaram tais informações era “um rapaz da turma de Carlos Lacerda”, então governador da Guanabara. Julgou confiável o dado porque o rapaz, que conhecia há algum tempo, ex-funcionário do ministério da Marinha, trabalhava para Lacerda junto aos marinheiros (lacerdista, tinha saído do emprego para trabalhar no Palácio Guanabara).
Mas a informação de que Anselmo era agente da CIA não viera desse agente (identificado apenas como “Tanahy”) e sim por um correspondente de jornal norte-americano - “pessoa com muitos contatos, que falava com muita gente”. Ele sempre telefonava para dar informações. Por exemplo, tinha passado imediatamente a informação sobre uma reunião de Lacerda com correspondentes norte-americanos para conclamar os EUA a derrubarem Jango.
Para Corseuil, Anselmo não era o único agente infiltrado, mas pode ter sido escolhido pela CIA por demonstrar capacidade de liderança. Perguntado por que nada foi feito pelo governo de Jango, apesar das muitas informações e avisos feitos, respondeu que as providências não cabiam ao CSN. A Marinha é que teria de se aprofundar no caso, por estar na sua área. A tarefa teria de ser especificamente do Cenimar, que era sempre avisado. Corseuil enfatizou que também tomara a iniciativa de avisar pessoalmente o Cenimar. “Aquela gente do Cenimar era toda do Lacerda. E o Lacerda é que fomentava a rebelião”, disse-me ele.
Corseuil também explicou que nenhuma providência foi tomada desde 1962, apesar de tantos avisos e informes, em parte por causa do próprio temperamento de Jango, que “tinha um coração grande demais”. Lembrou o episódio da revolta dos marinheiros, no Sindicato dos Metalúrgicos, quando o presidente foi especificamente alertado para o papel de Anselmo e nada fez - embora outras pessoas do governo também tenham alertado na época para a necessidade de ação vigorosa para deter a conspiração.
Mas pelo menos dois oficiais que serviam no Palácio recordam ainda hoje um episódio no qual Jango, pessoalmente, agiu com firmeza, mostrando ter consciência do papel de Anselmo como provocador e agente infiltrado. Chuahy, então capitão, pediu que Ryff alertasse Jango e mostrasse ao presidente como a mídia, desde o problema dos sargentos, superdimensionava o problema e apostava deliberadamente na ação potencial de Anselmo para subverter a disciplina, empurrando até moderados das Forças Armadas para o lado do complô golpista em marcha.
O episódio citado foi o da prisão de Anselmo em março de 1964, quando tentava penetrar - e falar - na reunião do Automóvel Clube. Tem sido praticamente ignorado até hoje, pois nunca interessou à mídia, cúmplice do processo golpista desde o início. Quem me relatou o episódio agora, com detalhes preciosos que expõem o repúdio de Jango à indisiciplina que enfraquecia o governo na área militar e encantava os golpistas e a mídia, foi o coronel Juarez Mota - à época capitão e ajudante de ordens do presidente, além de amigo, hoje aposentado, 75 anos de idade, e vivendo em Porto Alegre.
Estava em marcha, claro, a operação destinada a desestabilizar o governo, da qual fazia parte o esforço para superdimensionar os movimentos dos sargentos e dos marinheiros (ainda que muitos tenham deles participado por ingenuidade, obviamente). Conforme o relato do coronel Juarez, o presidente não sabia que Anselmo planejava falar no Automóvel Clube, mas tinha consciência de que ele era agente infiltrado na esquerda.
“Quem o viu chegar foi o coronel Carlos Vilela, da Casa Militar”, conta o militar aposentado. “Como eu estava mais à frente, acompanhando o presidente, ele me chamou: ‘Está chegando o cabo Anselmo, o que faço¿’ O próprio Jango antecipou-se e deu a ordem: ‘Prende!’ Quando Anselmo começava a entrar, voltei com Vilela, que o segurou pelo ombro, enquanto eu punha a mão no pescoço. Os dois desviamos o cabo à força para outra sala, onde havia um sofá de dois lugares. Vilela mandou que ele se sentasse e comunicou: ‘Por ordem do presidente, o senhor está preso’. Em seguida Vilela foi chamar o coronel (Domingos) Ventura, comandante da Polícia do Exército. Ventura veio e trouxe a escolta para levar Anselmo preso para o quartel da PE.”
Para Juarez, aquela ordem firme de Jango deixou claro que não tinha dúvida sobre quem era Anselmo. Podemos concluir que a avaliação coincidia com a descrição de Cecil Borer, que o usava no DOPS como informante (conforme contou à “Folha” em 2001) juntamente com “a Marinha e os americanos”. O relato de Juarez é reforçado por Chuahy, que à época já era veemente também na crítica aos movimentos de sargentos e marinheiros, devido á manipulação oculta pela oposição direitista apoiada pela mídia. Vilela morreu em 2008. Tinha sido ajudante de ordens do general Zenóbio da Costa na II Guerra Mundial.
Juarez Mota continuou no Exército (aposentou-se como tenente-coronel) e nunca deixou de ser amigo de Jango, que conhecia praticamente desde criança. Natural de São Borja, também tinha relações de parentesco com o presidente Getúlio Vargas: seu avô era primo-irmão de Getúlio e a bisavó Zulmira Dorneles Morta era irmã de dona Cândida Dorneles Mota, mãe do presidente que se matou em 1954.
Fonte:Luis Nassif on line.
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