domingo, 27 de dezembro de 2009

AMÉRICA LATINA - A memória em disputa no Chile e na América Latina.

No dia imediatamente posterior ao dia 17 de janeiro de 2010, a imprensa brasileira começará a comparar os resultados eleitorais do Chile com os números das pesquisas no Brasil. Se a vitória de Sebastián Piñera se confirmar, uma das observações mais repetidas será registrar o grande prestígio de Michele Bachelet, que atualmente tem o apoio de mais de 75 % da população, e sua incapacidade de transferir votos ao atual candidato do governo chileno, o ex-presidente Frei. E nenhuma palavra sobre o passado pinochetista de Piñera.

Quando encerramos a leitura da trilogia Memória do Fogo com o livro “O Século do Vento” (1) estamos familiarizados com o personagem Miguel Mármol. Trata-se de uma figura fascinante, um salvadorenho especialista na arte de renascer. O seu forte é resistir às investidas do poder. Cada ressurreição de Miguel é cercada por algum dos grandes eventos que ocorreram no século XX, na história latino-americana.

No Chile, durante as recentes eleições de dezembro, a história do país esteve presente, revelando seus protagonistas, contextualizando as escolhas dos candidatos. Um dos assuntos é lembrar a brutalidade do golpe militar pinochetista contra o médico da Unidade Popular, Salvador Allende. Depois de instalada a ditadura que levou adiante, com seus aliados da sociedade civil, a um circuito fechado, como lembra Naomi Klein (2), repassando à economia chilena os ensinamentos ou “verdades” do economista Milton Friedman aos seus obedientes alunos de Chicago.
Para esses ensinamentos, a premissa fundamental é a de que o livre mercado é um sistema cientifico perfeito, no qual os indivíduos, agindo em função de seus próprios interesses e desejos, criam o máximo benefício para todos.

Orlando Letellier foi assassinado, aos 44 anos, por se opor e escrever brilhantemente contra as escolhas de política econômica que seriam vistas como modelo no continente. Letellier se tornou perigoso porque previu que a política econômica também não prescindiria de brutalidade, pois necessitaria da manutenção dos campos de concentração em todo o país, com a matança de milhares de opositores; fuzilamentos em massa e da ameaça de sua continuidade, para se firmar e "dar certo"; se é que algum dia daria certo essa “íntima harmonia” entre o “livre mercado” e o terror ilimitado.

O candidato que lidera as pesquisas do segundo turno no Chile, Sebastián Piñera, com a possibilidade objetiva de vencer, é um personagem desse passado e pode ser definido da seguinte forma: “Piñera é a expressão do pinochetismo sobrevivente que seu physique du role berlusconiano não consegue esconder”.

Quando o auto declarado "vitorioso" terceiro colocado, Marco Enríquez-Ominami, que desistiu de indicar aos seus eleitores sua preferência política no segundo turno - disse: "A acusação feita pela ex-ministra de Pinochet é algo muito sério, mas concedo o benefício da dúvida, ao principal acusado”, a frase incluía a pretensão frustrada de ser um bem comportado candidato de esquerda com votos de centro para passar ao segundo turno no lugar do ex-presidente Eduardo Frei.

O acusado que recebia o benefício da dúvida de Enríquez-Ominami era o candidato da direita, Sebastián Piñera por fraudes que teria cometido contra bancos e o sistema financeiro chileno em plena ditadura nos anos oitenta.

A memória de que houve uma ordem de prisão contra Sebastián Piñera foi registrada por quem fora Ministra da Justiça de Augusto Pinochet: Monica Madariaga. Na oportunidade em que concedia uma entrevista para a televisão, afirmou que durante a ditadura de Pinochet, o Ministro Luis Correa Bulo emitiu um mandado de prisão que estava motivado por fraudes que Piñera teria cometido no Banco de Talca e por crimes contra a Lei Geral de Bancos.

A integrante do governo de Pinochet se referiu desta forma quando interrogada se o atual candidato havia estado preso. "Sim, Sebastián Piñera, o atual candidato. Liguei para o juiz que era o titular da causa e lhe disse: 'Olha, veio aqui o Pepe Pequeno (José Piñera), aquele que foi meu colega de ministério. Foi Ministro do Trabalho e Ministro de Minas. Acontece que o Pepe chegou e disse: "Monicazinha, o Tatan (Sebastián Piñera) está preso" (...). "Acontece que eu pedi ao juiz titular e ele me disse...olha todas as informações estão disponíveis para [lhe] conceder essa liberdade".

Acusado de ser favorecido para manter sua liberdade, Sebastián Piñera rebateu as lembranças da ministra declarando que “em primeiro lugar, neste caso (Banco de Talca), episódio do qual já se passaram quase 30 anos, a Suprema Corte decretou de forma unânime minha total e absoluta inocência; em segundo lugar também tenho a esclarecer que jamais tive problemas com informações privilegiadas”.

No dia imediatamente posterior ao dia 17 de janeiro de 2010, seremos nós, os brasileiros, os "Miguel Mármol" da América Latina. Nesse dia a imprensa brasileira começará a comparar os hoje prováveis resultados eleitorais do Chile com os números das pesquisas no Brasil.

Uma das observaçõesserá a de, provavelmente, registrar a exaustão o grande prestígio de Michele Bachelet, que atualmente tem o apoio de mais de 75 % da população. Neste caso, será ressaltada sua provável incapacidade de transferir votos ao atual candidato do governo chileno, o ex-presidente Frei.

Nesse dia, mais uma vez, nós vamos assistir ao silêncio que não compara banqueiros como Dantas com Piñera. Nem uma palavra sobre Letellier. Assim será, escondendo a história do Chile, não informará mais do que dois segundos e meio sobre o complicado processo eleitoral e imediatamente serão feitas comparações para derrotar a candidata de Lula antes das eleições.

Ficará evidente que as diferenças dos nossos países estão sendo apagadas para prestar serviços às escolhas feitas sem nenhum pudor sob o manto hipócrita da neutralidade eleitoral da imprensa pró-Serra? Estamos antecipando a resposta: não há como comparar. Os processos eleitorais e a história dos dois países deverão optar por resultados diferentes, exatamente, opostos.

Notas
(1) Século Do Vento, O (1998) MEMORIA DO FOGO, V.3 GALEANO, EDUARDO L&PM EDITORES.

(2) Doutrina Do Choque, A (2008) KLEIN, NAOMI / CURY, VANIA MARIA
NOVA FRONTEIRA

Fonte: Agência Carta Maior.

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