O empresário nos porões da ditadura
Uma bela surpresa, tanto pela forma quanto pelo conteúdo, o documentário Cidadão Boilesen, que estreou neste fim de semana, é desde já uma referência obrigatória na filmografia sobre os anos de chumbo do regime militar. Mais que apenas a história do personagem complexo, ambíguo, boa-praça e maligno, que foi o industrial Henning Boilesen, entusiasta e apoiador ativo da repressão política e da tortura, o longa-metragem joga luz sobre a até hoje pouco comentada colaboração do empresariado com a ditadura.
Dinamarquês que veio para o Brasil com uma mão na frente e outra atrás, Henning Albert Boilesen teve uma ascensão meteórica em sua carreira profissional, até se tornar presidente do grupo Ultra, conglomerado famoso pela rede de eletrodomésticos Ultralar e pela distribuidora de gás de cozinha Ultragaz. Anticomunista radical, Boilesen empenhou-se pessoalmente na arrecadação de fundos entre empresários para financiar a Operação Bandeirantes (Oban), criada pelos militares para eliminar a guerrilha urbana, que reagia ao endurecimento do regime, depois da decretação do AI-5.
O filme, dirigido por Chaim Litewski, faz um inventário minucioso, e ao mesmo tempo criativo – além das tradicionais entrevistas, recorre a trechos de filmes, linguagem de quadrinhos e leituras de uma peça teatral – para reconstituir a trajetória e o perfil psicológico de Boilesen. Sua equipe vai à Dinamarca, onde uma funcionária da escola em que o industrial estudou mostra um episódio revelador. Professores já notavam traços de sadismo em Boilesen, ao registrarem em boletim a extrema satisfação com que ele via os colegas serem punidos após uma diatribe. Na vida adulta, suas convicções políticas somadas a esse prazer mórbido levariam o empresário a sofisticar os métodos de tortura do DOI-Codi. Boilesen inventou e forneceu aos carrascos uma máquina capaz de controlar, com teclados, a intensidade dos choques elétricos. O instrumento, em sua homenagem, foi batizado de pianola Boilesen.
Com tanto envolvimento nos porões da ditadura, o executivo ficaria marcado como o inimigo número 1 dos guerrilheiros, numa lista prioritária que incluía Pery Igel (dono do grupo Ultra) e Sebastião Camargo (fundador da empreiteira Camargo Corrêa). Estes tiveram mais sorte. Já o dinamarquês foi fuzilado, em 15 de abril de 1971, por militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Durante o depoimento no filme, o hoje professor de música Carlos Eugênio Paz, que pertencia à ALN, assume que era o elemento Alpha, ou seja, o líder da colérica ação de justiçamento. Boilesen levou 19 tiros e ficou com o rosto desfigurado.
A variedade dos depoimentos de amigos, inimigos e testemunhas enriquece o perfil de Henning Boilesen, tido pelos mais chegados como uma pessoa sedutora, de liderança natural. No Brasil autoritário e miscigenado, que ele admirava, Boilesen, segundo um entrevistado, teria encontrado um verdadeiro “banquete” para saciar seus instintos mais primitivos, o que na Dinamarca teria sido barrado pelo sistema.
Para além das elucubrações, entretanto, um dos momentos importantes é quando o personagem é deixado em segundo plano e se faz uma análise sobre as estreitas ligações do empresariado brasileiro com a ditadura. Boilesen não era o maior colaborador, e sim o mais entusiasta. Os depoimentos mostram como sua capacidade de liderança arregimentou apoiadores da alta burguesia, que temiam uma revolução comunista ao estilo de Cuba. Seu papel era de ponte e servia aos interesses dos militares, que pressionavam os empresários a porem a mão no bolso e ajudarem financeiramente. Menos porque faltasse dinheiro ao governo, como pontua em seu depoimento o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e mais porque os militares buscavam apoio político. As doações eram uma forma de selar este comprometimento entre a elite empresarial e um regime cada vez mais autoritário. Nem todos os procurados aderiram. Pelo menos dois se recusaram: Antônio Ermírio de Moraes e José Mindlin, que conta como foi assediado por Boilesen. A tese de fundo, contudo, ainda resiste: a de que o regime de 1964 foi não apenas militar mas civil-militar, pela aliança com o empresariado – cujos membros mais sádicos teriam chegado até a pagar entrada para assistir às sessões de tortura.
Fonte: JB online
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