Nesta entrevista o Vladimir faz menção a marcha dos 100.000, da qual ele foi o principal organizador. Estive presente e fico até arrepiado ao me lembrar dela. Digo aos meus filhos que não acredito que eles possam passar por uma experiência como essa. Foi uma manifestação inesquecível.
Publicada no site do José Dirceu.
Personagem dos mais marcantes no cenário nacional naquele ano, Vladimir Palmeira, então presidente da União Metropolitana de Estudantes (UME) estréia a seção Especial 1968 deste blog com um depoimento pessoal e político permeado por humor e por detalhes de situações que, vistas hoje, 40 anos depois, parecem surreais. Aqui ele lembra, por exemplo, que nas discussões pós-AI-5 entre as várias facções, grupos, frações e movimentos da esquerda à época, houve até quem "concluísse" que o Ato fora "uma medida de fraqueza da ditadura militar". O ato vigorou por mais de 10 anos e foi o mais forte e arbitrário instrumento de institucionalização e manutenção, por mais 17 (1968-1985) anos do regime dos generais, um verdadeiro golpe dentro do golpe de 1964. Nesta entrevista, o ex-líder estudantil, hoje um senhor de 63 anos, conta como, nascido em uma família conservadora - seu pai foi senador por Alagoas pela ARENA, o partido de sustentação dos governos autoritários - tornou-se um dos mais influentes quadros da esquerda no Brasil. O seu depoimento engloba, do início de sua militância no movimento estudantil ao futuro que prevê para o PT, a campanha do partido e de seu candidato à sucessão do presidente Lula em 2010.[ Zé Dirceu ] Qual a importância de 1968 para o Brasil? [ Vladimir Palmeira ] A importância de 68 se dá em todos os planos. No Brasil, o nosso movimento estudantil é de tradição sindical, embora no caso específico da UNE seja mais corporativo. A UNE é um grande sindicato dos estudantes. Desse ponto de vista, a nossa luta que comportava também a luta política contra a ditadura, obteve um grande sucesso que foi a manutenção do ensino e da universidade públicos e gratuitos. A ditadura não conseguiu privatizar as universidades. Isso provocou um impasse resolvido nos anos 70, com a multiplicação das escolas pagas de baixa qualidade. Em todo caso, ainda hoje, as universidades públicas têm nível de excelência, uma herança do nosso movimento.Apesar dos erros políticos que cometemos como militantes revolucionários, nós deixamos uma tradição de insubordinação, rebeldia e de pensamento crítico. Acabamos com aquela história de todos pensarem do mesmo jeito e de que quem pensasse de outro jeito era da política ou desprezível e deveria ser afastado. Nosso pensamento crítico permaneceu apesar do fracionamento do socialismo ao longo dos tempos. Esse fracionamento não se deveu à crítica, mas é um produto da deterioração do socialismo na União Soviética e na China. O socialismo tem que ser reconstruído nesse século em novas bases.Os teóricos franceses diziam que o homem é o que é, e que a sociedade evoluía por causa de duas coisas: uma boa, que é o sexo, e outra desagradável, a morte. Essa história do homem passar a ter 200 anos vai gerar problemas ligados à reprodução da humanidade e discussões filosóficas. Nobert Elias diz que o século XIX foi de síntese; o XX pragmático; e o XXI será de novas sínteses, da esquerda e da direita. O socialismo vai se reconstruir a partir desse século. Ele não pode ser reconstruído a partir do XIX, mas das condições desse século. O nosso pensamento crítico ajudou nisso, ao fazer o acerto de contas com o passado da própria esquerda. Essa é a grande contribuição que 68 deu para o mundo.O AI-5 foi uma readequaçãodo Estado brasileiro[ Zé Dirceu ] O AI-5, veio em função da luta do movimento estudantil e da resistência armada que começava, ou viria independente disso?[ Vladimir Palmeira ] Viria independente, mas nós servimos de pretexto. O AI-5 foi uma readequação do Estado brasileiro. Ao mesmo tempo em que o movimento estudantil era um fato novo, também era velho ao expressar o descontentamento da classe média com os golpistas de 64 que a traíram. Nós somos parte da última onda de 64. O AI-5 é a limpeza do alto do aparelho do Estado e o afastamento, sobretudo, de parte da direita, de gente do MDB, da Arena e de liberais das Forças Armadas que foram afastados, para a linha dura assumir. Era a ditadura pura e ansiada por esses setores que não tinham força política, mas tinham força militar. Foi mais uma arrumação e uma briga entre eles. O movimento estudantil e os primeiros atos armados ajudaram nisso porque havia o confronto e serviram, sobretudo, de pretexto. Mas na verdade, o AI-5 viria porque era uma disputa dentro das próprias Forças Armadas. [ Zé Dirceu ] Nós ouvimos durante quase 30 anos que o endurecimento do regime foi produto da “aventura” da luta armada.[ Vladimir Palmeira ] Coisa nenhuma. A luta armada foi o pretexto para essa readequação do Estado. Claro que os excessos que eles cometeram se devem à nossa presença porque havia enfrentamento e eles se sentiam justificados para fazer isso. O endurecimento do regime foi fruto de uma necessidade dele próprio.[ Zé Dirceu ] Quais as alterações que suas ações naquele ano causaram na sua vida pessoal, e que chegam até hoje? [ Vladimir Palmeira ] Não digo exatamente 68, mas aquela época mudou muito o nosso comportamento. Antes, nós namorávamos com meninas de “boa família” e saíamos com prostitutas para fazer sexo. Casávamos com uma dessas meninas e a traíamos ao longo dos tempos, mas com elas constituíamos família dentro da hipocrisia da sociedade burguesa. Houve um certo “liberou geral”. Nós passamos a ter relações afetivas e sexuais juntas, sem a separação entre afeto e sexo, que foi muito importante para a minha realização como pessoa. Esse foi o lado positivo.O negativo é que a repressão tornava muito instáveis essas nossas relações pessoais.. Eu era casado com a Ana Maria e fui preso. Ela ficou fora da cadeia e eu até pedi, “vai embora, me deixa aqui”. Se eu passasse onze anos preso, não teria sentido. Ela ficou, mas na realidade, um pouco do meu relacionamento com ela acabou ali. Mesmo que eu a tenha encontrado depois, as condições eram outras. A repressão provocava instabilidade à nossa vida emocional. Isso prosseguiu no exílio. Obrigavam um quadro (político)a ir para um país e outro quadro ia para outro lugar. Casamentos eram dissolvidos pela ação política. Nossa vida afetiva é muitomelhor do que a dos nossos paisMas eu acredito que o lado positivo compensa o negativo. Jovem, eu nunca imaginei que poderia ter relações afetuosas e sexualmente realizáveis desse jeito. Fugia do meu horizonte em 64, 65. Mudei muito naquela época e para melhor. Garanto que a nossa vida afetiva é muito melhor do que a dos nossos pais. Você via uma família tradicional de classe média numa relação completamente hipócrita, onde a mulher era extremamente subjugada. O homem vivia nos prostíbulos, mantendo casos e amantes, relações desajustadas que certamente influenciavam a educação dos filhos. A família percebeu isso. Descobriu-se que aquela vida era uma tremenda hipocrisia. Já as nossas relações permitiram uma vida mais aberta, que resistiu ao conservadorismo predominante até hoje. Apesar da ampla liberdade sexual, há um certo conservadorismo moral. Boa parte da nossa geração se orgulha muito desse tipo de relações diferentes que manteve.[ Zé Dirceu ] Como você analisa a opção que nós fizemos pela luta armada? [ Vladimir Palmeira ] Eu acredito que foi um erro. Eu já achava naquela época. Enquanto estive solto, o meu grupo político não fez ação armada. Eu dizia que assaltar banco não era luta, era ação armada. Eu não era contra assalto a banco para financiar a revolução, mas acreditava na revolução como um movimento de massas, que poderia se transformar num movimento armado, com respaldo na população. A nossa esquerda foi formada muito na negação do reformismo, que, por vezes, ficou pouco concreta. Nós começamos no movimento estudantil de que jeito? “Nós não vamos fazer o que o Partidão fazia antes”. Negamos tudo o que o Partidão fazia e isso foi um erro. Em 65, por exemplo, na minha escola, nós fizemos o CACO livre, recusando participar do centro acadêmico oficial. Foi um erro porque devíamos entrar no centro oficial para não deixar a direita se apoderar. Fizemos na escola o boicote e um ano depois voltamos atrás.[ Zé Dirceu ] A direita geralmente ganhava.O Partidão não fez, errou,nós temos que fazer.[ Vladimir Palmeira ] Claro. Começamos a fazer certas coisas porque o Partidão não fazia. O problema foi que as condições concretas mudaram e nós continuávamos naquilo: “o que eles não fizeram, nós vamos fazer agora”. Nós superamos amplamente isso no movimento estudantil. O nosso movimento foi uma beleza. Em 68 nós tínhamos em escala nacional, um movimento estudantil bastante maduro. Mas na política não alcançamos isso. A luta armada foi o quê? “O Partidão não fez, errou, nós temos que fazer”. Mas o Partidão não fez em condições concretas, bem fundamentadas. (64) era um golpe militar contra o governo constitucional, mas com amplo fermento de movimento operário e camponês. Nós fizemos sem movimento operário e camponês e com uma ditadura tremenda em cima de nós. Evidente que foi um erro. Não critico as ações armadas em si. Até para levantar fundos era preciso fazê-las, mas acho que foi um erro político ir para o confronto armado com o regime daquele jeito.No discurso do meu julgamento na Auditoria Militar no Rio, eu dizia que era a favor da luta armada, negava o poder aquele Tribunal para me julgar, porque era inconstitucional, e dizia ser a favor da guerra revolucionária. Mas luta armada não era assaltar banco. Eu me diferenciava daquilo que os outros estavam praticando. Na verdade, minha organização já estava fazendo dissidência e ação armada. O Franklin Martins fez outro discurso inteiramente novo apoiando os assaltos a bancos e as ações armadas, e isso prevaleceu no Rio.Em Cuba, eu fiz intervenções defendendo a posição da minha organização. Muitos historiadores dizem: o Vladimir traduzia bem a visão da esquerda armada. E eu sempre fui pela direita, nesse sentido. Briguei com os cubanos que privilegiavam esse tipo de ação e fiquei em minoria. Pouco a pouco, ganhei os velhos militantes, o pessoal da antiga DI (dissidência do PCB) que virou MR-8 , para sair daquele furo que era a opção militarista. Inclusive, quando eles foram para Cuba, após o sequestro do embaixador alemão, foram contra a minha vontade. Eu dizia: “não vem, isso aqui é o desastre”. O Franklin dizia: “isso aqui é o Paraíso”. E a promessa de paraíso é uma maravilha. Tinha outros lugares para ir – a Argélia, Paris, a Suécia. Era muito melhor porque Cuba em matéria de comunicação com o mundo era um horror, salvo se você tivesse a linha oficial deles. Do contrário, ficava bloqueado. Os que chegaram, pouco a pouco, adquiriram uma visão crítica de Cuba, e viram que no Brasil o movimento se encaminhava para o desastre. Nós tiramos uma resolução lá de mandar um quadro político para o Brasil, para salvar a vida das pessoas porque nós [do movimento] seríamos destruídos. Eu disse: “vamos morrer todos. Nós somos quadros estratégicos, quadros políticos e no Brasil não tem mais isso”. Os que aqui ficaram foram presos, caíram um atrás do outro. Eu mantive a postura crítica. Mais tarde, passei a achar que politicamente foi um erro, embora tenha sido uma demonstração de heroísmo, de combatividade e resistência que merece elogios. Quem fez a luta armada deve ter orgulho por ter enfrentado a ditadura militar. A autocrítica vem depois, primeiro vem o orgulho. Ninguém lutava. Só quem lutava eram eles.Quem não fez luta armadanão deu saída para a criseQuem não fez luta armada não deu saída para a crise. O PC não fez, mas não deu saída nenhuma. Não se pode julgar a luta armada errada e esquecer que quem não a fez também não tinha saídas, alternativas. O PC começa a crescer depois de 74, quando a esquerda armada havia sido eliminada. Inclusive porque eles foram destruídos. Caiu o comitê central, tiveram dirigentes mortos. O que eles fizeram com rapidez foi entrar no MDB, mas nesse momento, o MR-8 já estava entrando também. Essa não era a minha posição em relação às eleições de 74. Estava no exílio e tinha posição mais crítica. Nessas questões sempre fui adepto do voto nulo, o que, a partir de 78, era um erro. Mas aqui o pessoal participou e já elegeu parlamentares de esquerda desde 74. Não houve alternativa. Na verdade, a esquerda estava despreparada porque o debate que ela tinha era extremamente linear e insistia nesse ponto: “vamos fazer o que o Partidão não fez”. E o Partidão dizia: “vocês são malucos”. Quando veio o AI-5, houve um debate de todo mundo – inclusive a esquerda pacifista - sobre as condições concretas do país e havia gente que afirmava que era um ato de fraqueza da ditadura militar. [ Zé Dirceu ] Nós fizemos um diagnóstico correto da ditadura no sentido de que ela iria reestruturar o Estado brasileiro, faria uma reforma autoritária do capitalismo. Mas não avaliamos corretamente as conseqüências disso. Pelo contrário, julgamos ser apenas a briga de um quartel general dividido, golpistas que não tinham uma estratégia para o país. Mas eles tinham quadros excelentes.[ Vladimir Palmeira ] É, nós os subestimamos totalmente.[ Zé Dirceu ] A época em que vivemos foi um período de grandes transformações culturais. Eu sempre digo que se não fosse o AI-5, nós teríamos uma segunda Semana de Arte Moderna no Brasil, tal a ebulição que havia nas universidades, na classe média, na intelectualidade e entre os artistas do país.[ Vladimir Palmeira ] Claro. O AI-5 atrapalhou duas coisas fundamentais: a questão cultural e a formação política. O pessoal do movimento estudantil ficou prisioneiro daquele negócio e acabou caindo na ação. Culturalmente, era um momento de grande efervescência, tão notável que você pega hoje as grandes figuras da cultura brasileira e são ainda todas daquela época. Claro que apareceram pessoas interessantes nas décadas posteriores de 70, 80, 90, mas ainda hoje na música você vê Chico Buarque (fez músicas admiráveis com certa carga de protesto), Caetano, Gil, Paulinho da Viola. No cinema, o Glauber Rocha, um gênio, abriu os olhos de toda aquela geração para o que deveria fazer. Sem dúvida nenhuma, marchávamos para um movimento cultural maior, e talvez, até o aparecimento de novos talentos teria sido mais efetivo. Em todo caso, nas grandes expressões da cultura brasileira, foram eles que ficaram. É indiscutível, no entanto, que perdemos. Se você notar o teatro com aquela estética toda que o Zé Celso fazia, aquilo tudo foi cortado. [ Zé Dirceu ] Você teve a oportunidade de viver na Europa. Nós acompanhamos o movimento estudantil lá. Qual a influência desse movimento no Brasil?[ Vladimir Palmeira ] Foi nula. Eu insisto em duas coisas erradas: uma é o esquecimento da luta do Calabouço. Agora, o governo federal inaugura uma estátua em homenagem ao Edson Luiz (estudante assassinado pela repressão em 68). É um passo de iniciativa da Comissão de Direitos Humanos e o Elinor Brito (líder da luta do Calabouço em 68) é expressão disso. Ele foi uma grande liderança daquela época, mas bastante esquecida porque ele não era secundarista e nem universitário. Não era da UNE e nem da UBES. A influência norte-americanafoi decisivaA outra é não reconhecer a influência norte-americana, decisiva em tudo o que se fez no Brasil. Não a influência do imperialismo norte-americano, mas das lutas nos EUA. A luta lá contra o Vietnã marcou muito o movimento estudantil. Eu cansei de fazer comícios e passeatas em solidariedade aos vietcongs. Isso foi importado não no sentido de servilidade, mas porque os estudantes americanos lutaram contra a guerra e foram os primeiros a levantar isso. Depois o feminismo, que não veio da Europa, mas dos EUA. Também a luta dos negros. Eu tinha um companheiro, um OPP meu – “organização pára – partidária” – que cercava a nossa organização. Nas discussões sobre foco ou não, movimentos de massa, ele defendia a insurreição urbana baseada no exemplo da luta dos negros norte-americanos. Nós nos renovamos em uma série de outros aspectos, com base nos EUA. Foi a propaganda importada de lá que descobriu o poder jovem, uma invenção da imprensa. O jovem começa a ser um segmento do mercado publicitário nessa época. Antes disso, a propaganda era para todos. De repente, o jovem emergiu por influência americana e porque tinha uma juventude brasileira se mexendo. Não podia ser só imitação dos EUA. Mas sem dúvidas nenhuma, importamos muita coisa dos movimentos dos EUA, centro da nossa preocupação, inclusive, no combate ao imperialismo.No dia 28 de março de 68, no enterro do Edson Luiz, nós botamos cem mil pessoas. Uma demonstração popular enorme. O maio francês veio depois. O movimento estudantil aqui já botava dezenas de milhares de pessoas na rua em grandes cidades - Rio, SP, BH, Recife, Goiânia, Salvador. Claro, a partir de maio adquiriu outro tom, começaram a dizer que a revolução estudantil era internacional. O maio francês trouxe um alento maior. O movimento estudantil da França foi o que mais pressionou o poder, porque os sindicatos se puseram em marcha e ameaçaram a estabilidade do regime. As lutas que travamos resultavam de uma escolha entre duas propostas no conselho da UNE: uma de que o centro tático fosse a luta contra a ditadura militar; outra que fosse a luta contra a política educacional do governo.Ganhamos com a versão da luta contra a política educacional e partimos para as escolas, para discutir currículo, professor, democratização da universidade, reforma universitária. A passeata dos 100 mil teve um ar de confronto com a ditadura. Mas ela começou pela luta por mais verbas e vagas na universidade, se bem que nunca deixamos de gritar “Abaixo a Ditadura Militar”, em passeata alguma. O primeiro confronto que tivemos aqui - a quarta-feira sangrenta, série de confrontos que desaguou nos 100 mil - foi a ocupação do MEC para mostrar que nós queríamos dialogar com o governo sobre as questões da universidade. Claro, a partir de Maio 68 todo esse movimento recebeu influência. No Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, tinha um setor anarquista, um grupo de cinco que, a partir de maio, levava uma bandeira preta, a única coisa que eu vi mesmo de expressão de influência do movimento francês. Além das grandes frases dos franceses, como as do Daniel Cohn-Bendit, e aquele negócio de “É proibido proibir”. A grande influência foi mesmo dos EUA. Régis Debray nãoconhece nada de CubaPara a linha geral do movimento, na esquerda revolucionária, foi a Revolução Cubana que influenciou decisivamente. Primeiro, pelo mito do Che Guevara que nós tínhamos já antes do maio francês. Che era adorado. O curioso é que a esquerda brasileira nunca repetiu o que houve em Cuba. Ela dizia “vamos assaltar bancos para financiar o foco”, mas como nunca acumulou dinheiro suficiente, assaltar bancos virou ação. Fazia propaganda armada, mas nunca se chegou sequer a ser como um foco cubano, embora a motivação original de se pegar em armas foi montada na concepção. Geraríamos o foco guerrilheiro e as massas adeririam, uma - concepção que está em A Revolução na revolução, o livro do Régis Debray).[ Zé Dirceu ] O foco foi concebido pela ALN e pelo Carlos Marighella. Depois a ALN e o Molipo tentaram implantá-lo em Goiás, em algumas regiões, mandando pessoas para lá. Evoluiria para uma coluna guerrilheira, que no fundo é um foco. Mas nunca foi além de levar armas, comprar propriedade e levar umas cinco ou seis pessoas. Nunca passou disso.[ Vladimir Palmeira ] É tudo uma baboseira, sabe por quê? Porque o Régis Debray não conhece nada de Cuba.[ Zé Dirceu ] Nem da América Latina.[ Vladimir Palmeira ] No dia em que Fidel iria desembarcar, naquela aventura, havia uma insurreição popular com cinco mil militantes, na segunda cidade mais importante de Cuba, Santiago. Transposta para o Brasil, equivaleria a uma insurreição no Rio. Só que o barco do Fidel atrasou dois ou três dias. A insurreição foi derrubada nesse período, e ao desembarcar Fidel estava vendido. Mesmo assim, ele tinha contato no campo. Não foi chegar e botar os caras sem nenhum contato. São essas são bobagens que Debray exacerbou. Existia em Cuba uma tradição de guerrilha rural, desde que o país ficou independente. Debray fez um manual que descaracterizava a história da Revolução Cubana. Nem a revolução foi como ele disse – que tinha uma certa dose de aventura. Fidel era um cara excessivamente voluntarioso, mas contava com uma base política e de apoio enormes. Não tinha nada a ver com aquilo que tentamos fazer aqui. Imagina, você chegar numa cidade como o Rio e fazer uma insurreição por três dias. O livro do Debray prejudicou muito. A questão da luta armada devia ser tratada de forma mais séria. Quem daria a vida hoje para eleger um deputado?[ Zé Dirceu ] Qual a sua avaliação do movimento estudantil hoje?[ Vladimir Palmeira ] Muito ruim, mas não cobro como faz a velharia, por exemplo, esse negócio de dizer que a geração de hoje é alienada. Não acho isso. A geração de hoje é adaptada ao seu tempo. O que ela faz hoje? Trabalho cultural. O César Benjamim sobre a questão da política dizia: “nós dávamos a vida por um mundo novo”. Quem daria a vida hoje para eleger um deputado? Na situação concreta, a geração é diferente hoje. Ela atua mais no campo cultural, porque a política é cinzenta e chata. Quem faz política tem que ter uma paciência de Jó. Todos os partidos aparelham. Você pega o diretório para passar a limpo o seu partido ou a sua tendência, como no PT, uma federação de tendências. Pior, os centros acadêmicos imitam o passado. Quando pensam em movimento, pensam em 68. E não pode ser assim.A luta pelo impeachment do Collor foi inteiramente diferente das travadas em 68. O Lindberg Farias liderou uma das maiores manifestações da história do movimento estudantil, a partir da espontaneidade da massa. Falta aos partidos reflexão. Quando eu discuto o que é prefeitura e governos estaduais – mais importante do que Presidência da República porque esta está mais distante da base - não há nenhuma reflexão dos estudantes. Eles não se perguntam: o que nós podemos fazer para o nosso estado ou para a nossa cidade? Não há nenhuma reflexão sobre a escola. [ Zé Dirceu ] Aliás, no Brasil a gente não tem um debate sobre o papel da universidade no país.[ Vladimir Palmeira ] O que eles (da universidade) fazem no geral? Obras sociais. A UFRJ tem um trabalho de assistência dentária. Mas qual a função da universidade como animadora cultural, como centro de discussões ideológicas? E como sócia do governo do Estado e da prefeitura na política social? O movimento estudantil é um pastiche do movimento do passadoO movimento estudantil não reflete a instituição. Nas greves por salários, os professores da rede municipal e estadual, por exemplo, tem a população contra eles. Não têm ligação com a comunidade, com os pais, porque não colocam a escola no papel dela na sociedade. O movimento estudantil é muito ruim por isso, é um pastiche do movimento do passado. O movimento estudantil não se reciclou. Um erro também dos partidos políticos e dos candidatos que não têm essas respostas. [ Zé Dirceu ] Como nós dois, filhos de políticos conservadores, chegamos ao movimento estudantil, à esquerda armada e ao socialismo?[ Vladimir Palmeira ] Os caminhos da nossa geração foram diferentes. Os meus confrontos pessoais se deram muito em torno da religião e da moral da classe média. Nós podemos dizer que ela é burguesa, mas ela é diferente. O que me fez chegar à esquerda foi o choque com a hipocrisia da sociedade burguesa, inclusive da nossa estrutura familiar. Hipocrisia que hoje, como historiador, eu compreendo, não é uma questão de maldade. Eles tinham um discurso de igualdade, parte da ideologia burguesa abstrata, mas quando eu levava um amigo negro em casa, ele comia na cozinha e não na sala. Eu me lembro de um dia ter perguntado: “Mamãe, por que sempre que fulano vem aqui ocorre isso?” Ela dava uma desculpa qualquer e negava ser racista. Então, fui vendo que aquilo não correspondia à realidade que eles transmitiam. Eu tinha o questionamento religioso que abre toda uma discussão. A sociedade é injusta. Por que Deus permite? Isso me marcava muito, incomodava e me fez começar a lutar contra as injustiças da sociedade. Pesou a educação familiar. Meu pai era um liberal político e advogado penalista. Eu desde criança quis ser penalista para defender os inocentes. Fui fazer Direito. Juntou a formação infantil e de adolescente à crise religiosa, e isso me levou para a esquerda.Em 61, eu era de direita; em 62 passei a ser de esquerda. Em 64, na universidade já era esquerda. Em 65, entrei no PCB escalado para constituir uma fração para destruí-lo e criar outro, um partido revolucionário. Quando entrei houve uma briga, congelaram-se os recrutamentos, e foi uma confusão geral porque eu comecei a fazer uma fração na fração. “Não, Vladimir já tem muita...” Então, já entrei contra o PCB. Tanto que ao entrar na universidade, achavam que eu iria para a AP, porque eu era mais radical, defendia a luta armada. Mas a AP tinha uns esquerdismos que não me satisfaziam.O último ato do meu pai foi assinar um protesto contra o AI-5[ Zé Dirceu ] Seu pai era usineiro?[ Vladimir Palmeira ] Não, era advogado e senador da ala liberal da Arena, mas exerceu um grande papel no pós-guerra, quando fundou a primeira cooperativa dos usineiros e plantadores de cana de Alagoas. Antes fora de esquerda, do Partido Socialista Alagoano e depois foi para a direita. A norma naquela época era essa: vira homem, começa a trabalhar, vai para a direita. De certa forma, 68 é inovação porque deu a primeira geração de esquerda no Brasil. Mas na do meu pai, o cara que ficava na esquerda, era mal visto. A exceção das exceções era você ficar comunista. Na minha formação, o meu pai sempre foi muito liberal. Sempre com boas leituras e debate de idéias. Nunca recebi repressão em casa. Claro, o meu pai tentou me cooptar. Na primeira vez que a polícia foi na minha casa, falou comigo pedindo que eu me formasse antes. “Você não pode ser qualquer um”. Eu de uma forma horrorosa, disse a Papai, “eu e Ana Maria somos soldados da revolução”. Um negócio triste, mas era verdade. Ele deve ter rido muito de noite.[ Zé Dirceu ] 66, 67, houve o problema dos excedentes também. Os que passavam no vestibular e não tinham vagas. Atingiam 5,5, quando a nota mínima era 5, mas como não tinha vagas, ficavam fora. A ditadura resolveu esse problema com escola paga de má qualidade. Foi o que formou a geração que viria depois de nós. Os excedentes foram lideranças novas.[ Vladimir Palmeira ] Em 68, antes das passeatas, quando sentiu que a situação estava apertada, papai me ofereceu estudo na Europa. Eu não quis ir porque a DI começara a se dividir. Eu não podia sair. Papai era muito tolerante. Já minha mãe era mais preocupava, ela insistia que eu estava acabando com a carreira do meu pai. Dizia que ele estava para ser ministro da Educação e pedia para eu me calar senão ele não seria ministro. O último ato dele como senador foi assinar um protesto contra o AI-5. Estava morrendo, mas assinou. Quando fui preso, em 68, ele fez um discurso. Disse que se orgulhava como pai, que sofria muito, mas que apoiava o governo. Foi muito coerente. Naquele discurso dizia que não se devia tratar o jovem na porrada. [ Zé Dirceu ] Meu pai era civilista da ala do Bilac Pinto. Rompeu com o golpe na hora que a ditadura cortou o Carlos Lacerda, o Magalhães Pinto etc. Uma ala da UDN se descolou e foi para a Frente Ampla, a união do JK, do Jango e do Lacerda. A ditadura acabou a Frente por decreto. Qual o balanço que você faz das conquistas da esquerda no Brasil e na América Latina?[ Vladimir Palmeira ] A esquerda brasileira, bem ou mal, participou do processo de distensão democrática (aqui no Brasil dirigida pelo Golbery do Couto e Silva). Antes, participou da luta armada e do movimento estudantil. Depois, na chamada luta democrática, (a esquerda) foi fundamental para podermos ter eleições diretas, chegar à Constituinte. Esta não foi o que queríamos, mas foi razoável. Garantiu uma série de direitos trabalhistas e uma posição de apoio ao capital nacional, que depois, no governo FHC cortaram. Para mim é muito insatisfatório do ponto de vista do que eu queria e quero. No Brasil hoje não tem revolução à vista. O que se coloca é trabalhos por reformas. O governo Lula tem uma política independente em relação aos EUA, boa e positiva. Joga um papel contra os excessos do camarada da Venezuela (Hugo Chávez). O governo também está redistribuindo renda, uma coisa excepcional que a Europa só fez no pós-guerra com dinheiro americano. Nós estamos pagando com o nosso dinheiro e nosso recurso uma distribuição de renda que veio para ficar. Eu quero eleger um sucessor do Lula, mas quanto mais tempo essa distribuição de renda se dê, mais se consolida uma posição menos subalterna dos trabalhadores e dos mais pobres na sociedade. Devemos conduzir a campanha no sentido da superação do governo LulaEu não concordo 100% com o governo. O Brasil ainda tem uma estrutura limitada. Uma crise mais forte pode colocá-lo não como emergente, mas como subdesenvolvido. Temos que dar um salto em política industrial e de serviços, sem o quê, vamos continuar dependendo do resto do mundo. Nosso avanço tecnológico é muito limitado, o processo brasileiro é uma piada, não tem investimento e essa questão não é tratada com a devida seriedade. O Brasil tem que entrar nos setores de alta tecnologia – avançar em micro eletrônica, softwares, biotecnologia, energia atômica e pesquisa aeroespacial. O Brasil está dez anos atrasado em biotecnologia, em pesquisas de células tronco. O Estado tem que induzir isso. Na sucessão presidencial, devemos conduzir a campanha no sentido da superação do governo Lula, no bom sentido. Melhorar o governo Lula. Mostrar à população que ele fez muita coisa, temos que manter as conquistas e avançar. O PT infelizmente discute muito abstratamente. É preciso que as forças vivas, muita gente graduada, dirigente petista, que só pensa na briga imediata com o PSDB, em CPIs e tal, levante as forças vivas do partido e as congregue em torno desse projeto. Se não nos organizarmos ficaremos prisioneiros do que já fizemos. Nós precisamos ter discurso para adiante. Esse é o grande problema que atravessamos.O PT tem que superar isso, quebrar esse negócio das tendências antigas, porque a sociedade exige coisas diferentes. Ficam as mesmas tendências brigando sobre os mesmos pontos, enquanto a vida passa e nós não damos alternativas às grandes questões do país. Tudo isso envolve, evidentemente, a discussão da reforma política. Nós não vamos fazê-la hoje, mas temos que lutar para ela, olhar para o futuro.
Um comentário:
Eu também estava lá! Junto com uns colegas da PUC, de mãos dadas, sentando no chão da Rio Branco com a Presidente Vargas, e da Cinelândia. A parte final da entrevista do Wladimir é tudo o que eu tb. penso e até já escrevi a respeito. Não sei por que o Wladimir assumiu aquele personagem meio estranho quando se candidatou a governador. Uma lástima!!
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