Esta é a previdência que FHC e cia vinham advogando para o nosso país.
O receituário neoliberal dos anos 80 e 90 para a América Latina acaba de receber sua pá de cal no Chile, com a entrada em vigor das mudanças no sistema de previdência (aposentadorias e pensões), que visam a remediar os estragos provocados pela introdução do sistema privado, de capitalização individual, criado em 1981, em substituição à previdência pública, e imposto aos trabalhadores sob a ditadura do general Augusto Pinochet. Contrariamente às promessas aludidas das vantagens de se entregar o destino dos aposentados e pensionistas exclusivamente à iniciativa privada, o sistema previdenciário chileno frustrou os trabalhadores no essencial, ao não entregar o prometido, na mais cabal demonstração de que as lambanças da especulação financeira não se coadunam com os compromissos da seguridade social. O caso do Chile — país selecionado pelos mentores do neoliberalismo como laboratório das reformas anti-sociais que se pretendiam impingir aos trabalhadores de todo o mundo — tornou-se paradigmático tanto pelo caráter radical e truculento das mudanças — abandono do sistema tradicional de repartição coletiva, administrada pelo Estado, e a entrega dos fundos previdenciários, constituídos por contribuições dos trabalhadores, para a gestão de fundos privados — quanto pelo seu retumbante fracasso. Lembre-se de que tão radical era a proposta que nem sequer o presidente Reagan, nos EUA, ou a primeira-ministra Margareth Thatcher, na Grã-Bretanha — ambos porta-bandeiras neoliberais — ousaram propor tais reformas em seus respectivos países, por temerem a reação das classes trabalhadoras. De onde se pode retirar o primeiro corolário do receituário neoliberal — que devastou o pouco que havia de políticas sociais na América Latina e em outras partes — segundo o qual o que é bom para os países periféricos em matéria de “democracia de mercado” não é bom para os países centrais. Passados trinta anos de sua imposição aos trabalhadores chilenos, o resultado, agora admitido pela “Concertación” — a coalizão de centro- esquerda que governa o Chile — é o seguinte. As instituições financeiras privadas responsáveis pela gestão de tais fundos encheram-se de dinheiro, graças à sua operação em regime de oligopólio, com a eliminação da concorrência, mediante a concentração crescente, hoje reduzidas a menos de meia dúzia, concentração que redundou na cobrança de altíssimas taxas de administração e em resultados contábeis pífios ou decrescentes, quando não negativos. Como era de esperar de tal iniqüidade, gerada pelas estritas regras do livre mercado, os trabalhadores passaram a reagir, deles tomando distância, pelo abandono, pela impossibilidade de acesso (por desemprego) ou por desinteresse, frustrados no dilema entre receber valores insignificantes e permanecer fora do sistema, à falta de alternativa minimamente aceitável. Cumpriu-se assim o objetivo neoliberal, na área previdenciária, de assaltar o butim dos fundos previdenciários, mediante o desmantelamento da proteção social assegurada pelo Estado e a sua transferência para gestão privada, num mercado financeiro desregulamentado. É nesse contexto que intervém o governo de Michele Bachelet, empossado em março de 2006, com medidas destinadas a salvar o que restou do sistema previdenciário chileno. Após três décadas de sua introdução à força, o regime cobre somente 55% dos trabalhadores do mercado formal e assegura uma reposição média de 30% a 40% do último salário, segundo cálculos da Central Unitária dos Trabalhadores do Chile. Isso, porém, não diz tudo, pois o mais grave é que há um enorme contingente de inativos que recebe muito pouco ou nada no sistema de capitalização mas não é suficientemente pobre para cair na rede de proteção assistencial chilena. Com a reforma atual, todos os trabalhadores chilenos com mais de 65 anos de idade que estejam situados entre os 60% mais pobres receberão do Estado US$ 167,00 por mês, valor da chamada “aposentadoria solidária”. E, para incentivar a contribuição por parte daqueles que ousam questionar as virtudes do “livre mercado”, constituído pelo oligopólio dos poucos gestores privados, o governo oferece um complemento de aposentadoria a quem tiver contribuído com menos do que o suficiente para fazer jus ao benefício. A crise do sistema previdenciário chileno é produto da política neoliberal de estabilização, aplicada em todo o continente nos anos 80 e 90, por pressão de organismos multilaterais, como FMI e Banco Mundial, que operam sob o interesse hegemônico do capital financeiro dos países centrais. A crise social que disso resultou na maioria dos países periféricos – e que se estende para além dos sistemas previdenciários — atingindo grande parte da população, expressou-se na destruição quase total do sistema público de bem-estar social (educação, saúde, aposentadorias, pensões, etc.). E isso pode ser medido, segundo dados da Cepal, na redução em valores absolutos dos gastos em serviços sociais assim como na redução da participação relativa de tais gastos nos orçamentos governamentais. O impacto de tal contração nos gastos sociais revela-se em toda a sua intensidade ao se constatar que em tais países, diferentemente do que ocorre em países centrais, as políticas de seguridade social eram e são ainda incipientes, não cobrindo o conjunto da população. Assim, por exemplo, o sistema público de seguridade social, inspirado no sistema de Bismarck, na Alemanha, cobre em geral apenas os empregados do setor formal da economia, permanecendo de fora os grandes contingentes de trabalhadores informais. A diferença entre os países do centro e os da periferia, quanto à proteção social, é gritante, diferença que os neoliberais fazem questão de ignorar, em razão do caráter abstrato de seu receituário, que desconsidera diferenças contextuais, de tempo e de lugar. Enquanto nas economias capitalistas desenvolvidas construíram-se ao longo do século XX, especialmente a partir do segundo pós-guerra, experiências até então inéditas de avanços na proteção social e trabalhista, nos países periféricos não se completou o Estado de Bem-Estar Social pelo mesmo motivo por que as elites locais barraram os avanços da democracia. Nos países centrais, coube ao Estado no período um papel singular como participante do intenso processo de expansão econômica e do exitoso enfrentamento das iniqüidades geradas no interior dessas sociedades pelo próprio processo de crescimento. Aí predominaram as reformas de caráter socialdemocrata, em que a construção do Estado de Bem-Estar Social constitui-se na peça fundamental para o estabelecimento da cidadania regulamentada. No ar havia o “perigo vermelho” da então União Soviética – e a ação organizada dos sindicatos operários – a impulsionar as mudanças. Já nos países periféricos, o pequeno aparato social, construído no Brasil a partir da década de 30, passou a ser fortemente questionado desde a crise da dívida externa dos anos 80, quando se impôs o receituário neoliberal, mediante a anuência de nossos governantes (Collor e FHC). Assim, permanece atualmente o desafio de se construir uma democracia social, prioridade do governo Lula, calcada no programa do Partido dos Trabalhadores. Nos últimos 50 anos, identificam-se dois modelos básicos de seguridade social, claramente distintos quanto a princípios, doutrina e políticas. Um, chamado de repartição, baseia-se nos princípios de solidariedade, obrigatoriedade, transferência intergeracional e responsabilidade; o outro, chamado de privatista, assenta sobre a individualidade, a livre escolha e a descentralização. O primeiro corresponde à tradição do Estado do Bem-estar Social, que intervém no mercado para corrigir as iniqüidades sociais por ele geradas, como a exclusão recorrente, e promover e equidade e a igualdade, esta assumida como um valor acessível efetivamente a todos, mediante a provisão de condições sociais e econômicas, que assegurem a participação de cada um nos processos de decisão. O segundo é um corolário neoliberal, que enxerga no mercado o único e supremo soberano — acima da sociedade e do Estado, instituições junto às quais não se acomoda —, dotado das virtudes do equilíbrio automático e provedor da prosperidade geral. O sistema de repartição se baseia na contribuição de todos os atores implicados na relação laboral: o Estado, os empresários e os trabalhadores. Nele, a solidariedade se expressa na contribuição de empregadores e empregados. A obrigatoriedade implica que a solidariedade entre uns e outros se conceba como um direito dos trabalhadores consagrado em lei. A transferência intergerações implica que a seguridade social tem de ser assegurada de geração em geração, de modo que a geração dos que se retiram agora se beneficie da contribuição dos trabalhadores no passado, assim como os trabalhadores atuais somente poderão beneficiar-se se a geração seguinte mantiver as contribuições — eis aí o principio da solidariedade entre gerações. A responsabilidade social é aqui assumida como dever social do Estado, de assegurar também a proteção à pobreza, ao desemprego e aos desvalidos. Os fundos assim recolhidos vão formar um caixa único e são administrados pelo Estado, mediante a participação das partes interessadas. O sistema privatista, ou de capitalização individual, é parte do receituário neoliberal e se baseia no individualismo, na liberdade individual, na livre concorrência, na ausência da intervenção do Estado e na busca do lucro. A sua adoção — e mais freqüentemente, imposição — implica alterações substanciais na correlação de forças políticas, que exigiram, em mais de um caso, o recurso a um poder ditatorial. Foi mediante a ditadura de Pinochet, por exemplo, que se impôs aos trabalhadores do Chile um sistema de capitalização individual que eliminou a obrigatoriedade da cotização por parte do empregador, pondo fim ao princípio da solidariedade nas relações de trabalho. Ao mesmo tempo, a ditadura de Pinochet empenhou todo o poder de Estado para eximir o Estado da responsabilidade previdenciária, limitando seu papel ao de supervisor das empresas financeiras denominadas Administradoras de Fundos de Pensões (AFP), genuína expressão do capital financeiro internacional. Porém, cuidou, prudentemente, de fazer exceção aos militares chilenos, que permaneceram fora do sistema privado, dependentes como antes do Estado para as suas aposentadorias e pensões. No sistema de capitalização individual, não vigora o princípio da solidariedade nem o da responsabilidade social. De sua gestão não participam os trabalhadores e seu objetivo é unicamente o lucro. O custo administrativo de tais fundos é, teoricamente, tanto mais baixo quanto maior o número de participantes — uma verdade aritmética que não prevaleceu no caso chileno, em razão do conluio promovido entre os fundos, de impor aos contribuintes taxas altíssimas, resultantes do regime de oligopólio em que passaram a operar. Esse sistema se caracteriza ainda por não assegurar nenhuma transferência intergeneracional: as contribuições de cada depositante vão engrossar as contas individuais, que deveriam alimentar as retiradas quando da aposentadoria. Quando de sua criação, o argumento que as autoridades do regime utilizaram, fazendo eco às supostas vantagens brandidas pelo FMI, Banco Mundial e agentes financeiros internacionais, era que os fundos, assim constituídos, podem ser aplicados no mercado de capitais, dinamizando-o fortemente, fazendo crescer a poupança interna e fortalecendo a economia. Para os trabalhadores contribuintes, porém, depois de três décadas o resultado foi bem outro, como atesta o fracasso do experimento chileno e o conteúdo das reformas introduzidas pelo governo de Bachelet. Felizmente, o furacão neoliberal, que varreu o Brasil dos governos Collor e FHC, com seu projeto de desmantelamento do Estado, não chegou a produzir tamanho estrago entre nós, por encontrar resistência nos movimentos sociais organizados. Isso, porém, não é garantia de que estejamos imunes à tentação neocolonial de alguns retardatários do neoliberalismo moribundo. A despeito de seu descrédito, o receituário neoliberal mantém-se, ainda que bruxuleante, nas fileiras conservadoras e pode ser reconhecido nas práticas dos governos tucanos, em especial, no Estado de São Paulo. Daí a necessidade de não se baixar a guarda e manter a vigilância. Rui Falcão, 64 anos, advogado e jornalista, é deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores. Foi deputado federal, presidente do PT e secretário de governo na gestão Marta Suplicy
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