sexta-feira, 30 de maio de 2008

ANOS DE CHUMBO VI - Entrevista de Ricardo Zarattini.

"Engenheiro de profissão, subversivo por vocação"É com a frase acima que se autodefine Ricardo Zarattini, um militante, literalmente, velho de guerra que começou em 1954, aos 16 anos, sua luta contra o "imperialismo" e pelas riquezas nacionais na campanha "O petróleo é nosso", pela criação da Petrobras. Um dos 15 presos políticos trocados pelo embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick - sequestrado em 1969 - e, com uma resistência admirável, passou por diversas prisões, pelo exílio, a clandestinidade, torturas, e só encontrou a liberdade definitiva em 1979, com a anistia.Liderou movimentos trabalhistas do campo, na Zona da Mata canavieira (PE), numa época em que os trabalhadores rurais eram quase escravos, e também na cidade com uma grande mobilização de trabalhadores da Scania, que se espalhou por outras empresas paulistas. Integrou inúmeras organizações de esquerda, participou da luta armada e foi um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), incorporado como tendência ao PT quando da fundação da legenda.Chamado de "Professor", quando preso no Quartel Dias Cardoso, em 1968, no Recife, ensinou matemática e português a cabos e sargentos e, graças à colaboração deles, fugiu da prisão. "Dom Helder Câmara me ajudou. Fiquei escondido no Convento das Dorotéias em Pernambuco até voltar para São Paulo"Esteve ao lado Gregório Bezerra, Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, figuras emblemáticas da militância contra o regime militar. Irmão do ator Carlos Zara, recebeu apoio de artistas, intelectuais e políticos que também buscavam a democracia nos tempos sombrios da ditadura.Quem imagina que Ricardo Zarattini está cansado, engana-se. Hoje, aos 73 anos, esse nacionalista pontua a luta contra o imperialismo como norte de toda a sua trajetória. "As pessoas podem não saber dos crimes dos EUA no passado, mas têm conhecimento da invasão do Afeganistão e do Iraque, onde esse país mostrou toda a sua bestialidade, crueldade e desumanidade."Em 2006, lançou a biografia "Zarattini, a paixão revolucionária", escrita por José Luiz Del Roio – livro de referência tanto pelos detalhes de sua vida e militância, como pelo aprofundado retrato político do Brasil da década de 50 à Lei da Anistia, em 1979.[Especial 68] Vamos começar traçando sua longa história de militância política. Fale um pouco sobre toda essa trajetória. [Zarattini] Eu tenho minha vida dedicada à luta contra o imperialismo norte-americano. Esse sempre foi o norte da minha política. Nunca tive paixão por esse ou aquele partido, essa ou aquela ou organização. O que sempre me guiou foi a luta contra o imperialismo norte-americano, que é, sem dúvida nenhuma, o inimigo número um dos povos de todo o mundo. As pessoas podem não saber dos crimes que o imperialismo cometeu no passado, mas tomaram conhecimento da invasão do Afeganistão e, agora, da invasão do Iraque, onde os Estados Unidos mostraram toda a sua bestialidade, crueldade e desumanidade. E, veja só: por incrível que pareça, essa coisa se voltou até contra o povo americano que hoje tem uma lei patriota, a coisa mais fascista que existe. Iguala-se à Lei de Segurança Nacional que nós tínhamos durante a ditadura. A pessoa pode ser presa, censurada ou ter seus telefones grampeados sem nenhuma ordem judicial. Veja o que eles fazem em Guantánamo (Cuba), onde têm um grande número de presos e que a própria Suprema Corte dos EUA não considera aquilo sub-judice dela. Minha trajetória sempre foi norteada por essa idéia de combate ao imperialismo norte-americano.Petróleo, capital e tecnologiaeram“coisas de comunista”[Especial 68] Você começou cedo, com a campanha do “Petróleo é nosso”. Qual era a visão da época sobre esse potencial energético brasileiro?[Zarattini] Comecei minha vida política com a luta do “Petróleo é nosso”, quando eu tinha 16 anos. Fiz essa campanha na época e um jornalista muito famoso, o Assis Chateaubriand – foi ao colégio onde eu era secundarista em Campinas, o Colégio Culto à Ciência, e disse: “olha, vocês aí, tentem uma palestra aqui”. Todos nós fomos assistir. O diretor obrigava porque ele também era um entreguista. E o Chateaubriand dizia: “Vocês estão enganados, o Brasil não tem petróleo. Se tivesse, não teria dinheiro para explorá-lo e, se tivesse capital, não teria técnica para isso. E se tivesse petróleo, capital e técnica, é uma coisa comunista”. Hoje em dia, o Brasil tem toda uma tecnologia de ponta em exploração de petróleo em alto mar, mas o que lhe reproduzo era o que o Assis Chateaubriand falava e divulgava. A mídia é anti-BrasilOs Diários Associados (conglomerado de comunicações do Chateaubriand) eram o que hoje é a Rede Globo e suas associadas. Aliás, a Globo persiste em sua campanha de ser sempre anti-país, anti-Brasil. A imprensa conservadora sempre foi assim. Ela sempre está contra e procura fazer uma oposição clara a todo o governo que defende o país e faz alguma coisa pelo povo. Foi assim com Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck, com João Goulart, e está sendo assim com o Lula, que na minha avaliação é um dos maiores estadista que esse país já teve. Comecei minha trajetória por aí e tive minha primeira prisão, inclusive. [Especial 68] Você também atuou no movimento estudantil? [Zarattini] Antes de 64, participei ativamente da União Estadual dos Estudantes (UEE) de São Paulo, onde fui vice-presidente para problemas nacionais. Era uma importante posição na diretoria. Depois, assumi a presidência da UEE. Participei de todos os congressos da UNE e não exerci cargos nela porque me casei quando ainda estudava na Politécnica. Então, tinha, passei a ter certas obrigações. Nessa trajetória, e dentro dessa visão de que a soberania do país luta contra o imperialismo, é que eu me engajei, ainda estudante, na vice-presidência da UEE para problemas nacionais. Estatais são questão de segurança nacional[Especial 68] Qual sua militância política no governo democrático de Juscelino? [Zarattini] Nós tivemos o governo JK, que sofreu tanto quanto Getúlio Vargas. Com o Getúlio, fizemos uma campanha de apoio no pior momento que ele sofreu, justamente a perseguição da UDN, a União Democrática Nacional. Ela criou a expressão e dizia que o Getúlio estava num mar de lama. Era essa coisa do Carlos Lacerda. Na verdade, Getúlio foi combatido pelas forças do atraso, exatamente pelo que ele estava fazendo: criou a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), assinou a lei 2004 de criação da Petrobrás e contribuiu para a sua aprovação. Depois, criou a Vale do Rio Doce, minérios, que era a área de maior interesse dos grandes monopólios. Criou todo um sistema de empresas estatais.Uma coisa importantíssima hoje, mas que na época pouca gente notou, é que nós batalhamos muito contra a privatização da Ultrafértil e de toda área estatal de fertilizantes. Os fertilizantes se tornaram, hoje, um monopólio privado e se importam, ainda, muitos insumos para fabricação. O fertilizante é básico para a segurança alimentar porque sem eles não se tem uma agricultura.Imperialismo foi transformadoem neoliberalismoO imperialismo dizia que ia salvar o Brasil, o mundo e mudou de nome para neoliberalismo, que é a mesma coisa. Voltando um pouco, nós fizemos a campanha do marechal Lott (Henrique Dulffes Baptista Teixeira Lott), que era quem Juscelino indicava como candidato. Infelizmente, houve grandes dificuldades, porque naquela época havia surgido um demagogo chamado Jânio Quadros, que dizia que ia acabar com a corrupção. Inventou uma vassoura para varrer a corrupção, mas não varreu coisa nenhuma. Foi um dos governos mais corruptos da história. E enfrentávamos o Carlos Lacerda que combatia duramente quem? O Getúlio, o Juscelino. E uma parte das Forças Armadas, infelizmente, foi ganha por essas idéias equivocadas.Combateram e derrubaram o Jango, que continuava com essa luta (de Getúlio Vargas) e, não contentes com isso, cassaram o Juscelino. Felizmente isso não foi em todas as Forças Armadas. Havia vários oficiais nacionalistas, democráticos - o próprio marechal Lott - que eram contra o entreguismo. Mas, também, foram todos cassados. A ditadura prendeu o Juscelino, mandou-o para o exílio e, na volta – até hoje uma coisa, realmente, não esclarecida – veio a morte, tanto dele como depois do João Goulart, este ainda no exílio. Em qualquer tipo de abertura política, eles seriam eleitos por estrondosa maioria de votos. [Especial 68] Você também suspeita da morte do Getúlio?[Zarattini] Não sou eu que suspeito. Houve até um seriado na Rede Globo que levantou essa suspeita. Ainda hoje isso é uma coisa que não foi esclarecida o suficiente. Participação ativa nomovimento trabalhista rural[Especial 68] Onde você estava em 1964?[Zarattini] No nordeste exercendo minha profissão de engenheiro. E já tinha participado de toda a mobilização, que existia e era muito forte, intensa, dos assalariados da zona rural canavieira. [Especial 68] Você participou do movimento das Ligas Camponesas, do deputado Francisco Julião?[Zarattini] Não. Nós batalhamos muito e fomos vitoriosos, durante o período que antecedeu o Jango presidente, o período do parlamentarismo do primeiro-ministro Tancredo Neves. Conseguimos a formação dos primeiros sindicados rurais do Brasil. Tivemos uma grande conquista em termos de lei, o Estatuto do Trabalhador Rural. Depois, a ditadura cassou, extinguiu, porque a ditadura serviu ao imperialismo norte-americano e aos seus aliados. O grande e tradicional latifúndio sempre esteve contra o Estatuto, porque sempre esteve contra qualquer governo voltado o trabalhador rural. Participamos ativamente para conquistar a legalidade. Legalizamos os primeiros sindicatos rurais. Foi uma grande conquista e que se espalhou pelo Brasil inteiro. Militância a partir do golpe militar de 64[Especial 68] Você foi preso em 31 março, dia oficial do golpe de 1º de abril de 64? [Zarattini] Não. Antes de 64 eu já tinha feito vários contatos em Pernambuco, tínhamos todo um trabalho com o sindicalismo rural e fomos encontrar outros companheiros. Estávamos desarvorados porque o golpe atingiu uma maioria de organizações que estavam completamente despreparadas para enfrentá-lo, inclusive despreparadas para reagir. Não havia entre nós, à exceção de Brizola, uma visão de tentar uma resistência. Foi tentada, mas de uma forma muito frágil, muito desarticulada. O grande partido de esquerda da época, o Partidão, não tinha nenhuma visão. Na ditadura, divergências e resistência nas organizações de esquerda[Especial 68] Você foi filiado, quadro do fez parte do PCB, o Partido Comunista Brasileiro?[Zarattini] Nessa época fiz, mas divergia, internamente. Na visão marxista do PCB pouca gente via possibilidade do golpe cessar. Havia muita divergência entre as diversas organizações quanto às formas de resistência. Muita gente achava que era possível a luta armada de imediato. Isso nós tentamos fazer lá (no Nordeste) por dois, dois anos e meio. E aí, fui preso no dia 10 de dezembro, três dias antes do AI-5. [Especial 68] Você estava no Rio, em junho de 1968, na Passeata dos Cem Mil?[Zarattini] Não. Só passei pelo Rio na ocasião. Mas a grande divergência que existia na época - e isso é muito importante contextualizar - é que a maioria das organizações de resistência armada à ditadura não viam o papel que o imperialismo norte-americano exerceu. Elas acreditavam que era possível ir do capitalismo para o socialismo sem fazer uma passagem, sem vencer a luta da dominação imperialista norte-americana. Era essa a grande divergência da época. Havia os que pensavam de forma diferente, como eu. Achavam que era necessário fazer uma luta direta contra o imperialismo e só depois, no êxito desta é que se abririam as perspectivas de instalação do socialismo em nosso país. Luta armada, prisões e tortura[Especial 68] Em1968, você estava em qual organização da luta armada, a Ação Libertadora Nacional?[Zarattini] Não, eu estava no PCBR, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, no Nordeste. Tive reuniões com o (Carlos) Lamarca quando ele ainda era um oficial da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Não fiz parte da VPR, mas conheci todos os seus dirigentes que eram, na maioria, sargentos. Eu discutia muito com eles porque o pessoal de algumas organizações não queria ver a questão antiimperialista da forma como eu via. A visão deles era “vamos fazer a revolução socialista de imediato”, o que eu sabia ser impossível antes de vencer o imperialismo. Depois de preso, eu tinha contato com o Lamarca, com o pessoal dos sargentos, da VPR, tínhamos contato com toda a ALN porque, particularmente esta era formada, basicamente, por um agrupamento comunista de São Paulo. Essa divergência não impediu que a gente desenvolvesse várias atividades conjuntas. [Especial 68] Onde você ficou todo o ano de 68, o de maior agitação da resistência à ditadura?[Zarattini] Estava no Nordeste. Fui preso e torturado num quartel militar, o Dias Cardoso. Depois, fui retirado e levado para uma base da aeronáutica, onde fui, novamente, muito torturado. Um sargento me pegou e disse: “já que você é engenheiro, vou pegar você e amarrar num espeto de prova (pilar de concreto para prova de peso e resistência para construção de uma obra). Vamos te amarrar e jogar em alto mar”. O Exército não era todoformado por torturadores[Especial 68] Nessa época, recém-editado o AI-5, torturava-se já em todo o Brasil ? [Zarattini] A tortura foi aprendida, ou melhor, ensinada pelos EUA, por agentes norte-americanos. Mas o Exército brasileiro não era todo formado por torturadores, como se passa idéia até hoje. Havia muitos oficiais nacionalistas e democráticos que foram cassados, outros presos. Fizemos muita pressão e conseguimosabrir parte dos arquivos da ditadura [Especial 68] Não foram todos, nem era uma política oficial das forças Armadas, mas fica essa imagem porque até hoje elas não querem apurar quem fez o que, não querem denunciar quem fez a tortura. Você não acha que é em função disso que acabam ficando com essa imagem diante de toda a população?[Zarattini] Não, isso também é responsabilidade da imprensa. Vocês (da imprensa) tem que arcar com as conseqüências de não esclarecer quais são as posições. Vários oficiais contrários à tortura, foram punidos. (O general presidente Ernesto) Geisel foi adepto da tortura e depois mudou a posição devido às pressões populares. Entrou em antagonismo com seu ministro do Exército, o general Sylvio Frota, que queria que continuasse toda aquela linha de tortura. Essas posições dependem da política em geral. A classe média de 68, particularmente não entendia no passado e até hoje não entende. As opiniões de militares e de religiosos são muito influenciadas pela luta de classes, pela mobilização popular. Em 68, existia uma grande mobilização, como foi o maio de Paris e tudo o mais. Em Medelín, na Colômbia, aconteceu o 1º Congresso Episcopal para a Teologia da Libertação e nós temos representantes dessa linha na Igreja Católica até agora. Passou aquela onda e veio o neoliberalismo, uma onda reacionária.

Em 2006, lança biografia[Especial 68] Essa generalização de que as Forças Armadas torturaram não decorre, também, do fato de não serem reabertos militares e da repressão na ditadura, particularmente os relacionados à guerrilha do Araguaia?[Zarattini] Nós fizemos uma pressão muito grande no governo Lula e conseguimos abrir em parte. Não tudo o que nós queríamos, mas vamos chegar lá porque, se você comparar o primeiro mandato com o segundo, nós temos um ministro na Secretaria nacional dos Direitos Humanos, o Paulo Vanuchi, que é excelente. Houve avanços. [Especial 68] Mas como conseguir a abertura destes arquivos? [Zarattini] Nós temos que considerar que somos um país que passou pela escravidão e foi o último a sair dela, que tem oligarquias poderosas, várias que se uniram a essa força externa para manter o status-quo. Por isso eu insisto, é preciso derrotar essa força externa do imperialismo que tem muitas raízes – os grandes latifundiários, o latifúndio improdutivo, e mesmo o agronegócio. No Brasil, área para biocombustíveisnão chega a 1% das terras cultivadas[Especial 68] Você vê relação entre o imperialismo e as campanhas contra o etanol, contra o biocombustível produzido no Brasil?[Zarattini] Nessa questão do etanol, vocês acham que ele acaba com os alimentos no Brasil? Claro que não. O que acaba com o alimento no Brasil não é o etanol, são outras coisas, aqui e no mundo. O etanol daqui é diferente do produzido a partir do milho nos EUA. Lá sim ele é uma ameaça porque são 28 milhões de litros de álcool produzidos. Aqui, nós produzimos o mesmo, mas não pegamos nem 1% das terras cultivadas do Brasil. Mas esse pessoal do agronegócio é influenciado por essa mentalidade. Agora é que eles estão vendo as dificuldades criadas pela União européia e pelos EUA para que o etanol tenha uma presença maior no mundo. E a campanha (contra o etanol) é difícil para o Brasil a União Européia e os EUA controlam o petróleo - a Shell é do Reino Unido. Agitos de 68 não se resumemà classe média carioca[Especial 68] Queremos que fale sobre você em 1968 e sobre aquele ano.[Zarattini] Bem, falando mais sobre 68, eu constato que tem uma coisa que a imprensa não divulga: ela colocado esse ano como algo feito só pela classe média do Rio de Janeiro. E não foi nada disso, ou não foi só isso. Nós tivemos greves operárias naquele ano, como em Contagem (MG) e em Osasco (SP). Tivemos greve de canavieiros. Houve não só assassinatos nos sindicatos rurais de Pernambuco, mas até suicídio de camponeses. Tinha sindicato rural dirigido por camponês que não entendia nada de comunismo, não sabia nada. Ele era um líder local, fora eleito dirigente e aí chegavam os militares dizendo “Você é comunista!”. Na cabeça dele era como se ele tivesse cometido uma falta grave contra Deus ou coisa do tipo. São esses fatos que ficam esquecidos e fica parecendo que tudo em 68 foi feito pela classe média do Rio. Você vê agora os livros sobre os 40 anos de 68 falando sobre a Passeata dos Cem Mil, do seqüestro do embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick. Não dizem, mas havia um apoio do povo à resistência à ditadura. Não era um apoio organizado, mas uma tentativa muito grande para mobilização, particularmente desses setores que eram mais explorados – os assalariados dos centros urbanos e os trabalhadores rurais. No quartel, matemática e portuguêscom “Professor” prisioneiro[Especial 68] Você foi preso dia 10 de dezembro, três dias antes do 13 de dezembro de 1968, data da decretação do AI-5 e ficou preso até o seqüestro em setembro de 1969 do Charles Burke Elbrick e a troca de 13 reféns presos políticos – entre os quais você e Zé Dirceu – pela libertação desse embaixador norte-americano? [Zarattini] Fui preso no dia 10 de dezembro e na cadeia um oficial chegou e avisou: “Vamos pegar você para jogar no mar”. A coisa que eu mais temo é morrer. Adoro a vida e quando entrei preso no quartel a coisa foi terrível. Ao meu lado e de outros presos andavam dois guardas de metralhadora embainhada. A gente não podia, não via chance de fugir. Mas eu fui fazendo amizade com os praças (soldados) e notei que entre eles havia policiais que queriam fazer curso para cabo, e entre estes os que queriam fazer curso para sargento. Eu tinha alguns conhecimentos de matemática e português e pensei em começar a dar aulas. Foi aí que eu fiquei conhecido no quartel pelo apelido “Professor”. Isso foi decisivo para que, no momento em que eu estava para ser levado, de novo, de volta para o quartel da Aeronáutica, já em 1969, eu conseguisse fugir.Fugi com a ajuda dos soldados e vim para São Paulo. Primeiro Dom Hélder Câmara (arcebispo de Recife e Olinda) me ajudou lá em Pernambuco. Fiquei um mês escondido no convento da ordem religiosa das Dorotéias até voltar para São Paulo. Parei na Bahia e o Carlos Marighella mandou me buscar lá. Aqui (em São Paulo) tive um encontro com ele, que me disse que eu tinha que sair do país. Ainda fui para o sul, mas o Mariguella avisou que eu seria preso e, de fato, fui novamente. Operação Bandeirantes:mais horrores da tortura[Especial 68] Então você não ficou preso ininterruptamente de 10 de dezembro, três dias antes do 13 de dezembro de 1968, data da decretação do AI-5 até o seqüestro em setembro de 1969 do Charles Burke Elbrick e a troca de 13 reféns presos políticos – entre os quais você e Zé Dirceu – pela libertação desse embaixador norte-americano? [Zarattini] Não. Fugi de Pernambuco e já em 1969 fui preso novamente em São Paulo. Com o seqüestro do embaixador norte-americano a repressão aumentou muito. Nós não tínhamos como enfrentar uma força tão grande, uma repressão com apoio internacional. Preso, fiquei na Operação Bandeirantes, a OBAN (antecessora do DOI-CODI), aqui em São Paulo, onde fui torturado, seguidamente, por 14 dias. Eu tinha que repetir sempre a mesma coisa, a mesma pergunta dos militares. Emagreci 17 quilos nesse período. A tortura era dia e noite, e eu contando sempre a mesma coisa. Nunca disse nada, nenhum endereço, nada. Fui muito feliz nisso. Eu não andava com nenhum papel, nada porque já tinha visto uma experiência por causa de anotações (as chamadas “cadernetas do Prestes”, papéis do secretário-geral do PCB, Luís Carlos Prestes, apreendidos em uma residência sua na Vila Mariana). Fui acusado no caso do famoso assalto ao cofre do Adhemar (cofre roubado da casa de sua companheira, Ana Capriglione, no Rio, com US$ 2 milhões, pela VPR e ALN, organizações da luta armada). Tinha um cara infiltrado que me acusou. Fui levado preso de São Paulo para o Rio, para mais torturas. Da prisão na Tijuca, eu saí com a libertação do embaixador.Saída da prisão após seqüestro ousado do embaixador Charles Elbrick [Especial 68] Como você foi incluído na lista dos 15 reféns presos políticos que seriam trocados pelo embaixador? [Zarattini] Foi o Joaquim Câmara Ferreira, o “Toledo” (codinome na cladestinidade e que morreu ao deixar o Aeroporto de Congonhas, quando retornou ao Brasila pós a anistia em 1979) que me colocou na lista. Eu me encontrava semanalmente com ele e algumas vezes me encontrei com o Mariguella. O “Toledo” estava no Rio quando surgiu a idéia do seqüestro. [Especial 68] Quando tiraram você da cadeia para levar ao aeroporto do Galeão te deram alguma explicação[Zarattini] Até isso foi uma tortura. Antes de seguirmos para o aeroporto – e quando fomos, não me disseram para onde íamos, para onde me levavam - dois coronéis conversaram comigo dizendo: “Olha, você é casado, tem dois filhos pequenos, é engenheiro, sua mulher é professora. Poxa! Você não pode estar nessa vida, precisa virar um homem trabalhador. Nós damos passaporte para você e sua família irem para a Alemanha, mas você tem que dizer aonde está o cofre do Adhemar”. Nesse momento, relaxei e achei estranho. Aí eles pararam de me espancar que era para eu sair da cadeia sem nenhum hematoma, nada. Aí eu entendi. Eles falaram: “Nós vamos mandar uma refeição para você, especial”. Foram embora e me deixaram algemado. Passou uma meia hora e chegou um peixe com molho de camarão e arroz. Eu estava com muita fome porque ali a gente não comia praticamente nada. Era um café com pão e olha lá. Fiquei uma hora e meia ali, algemado, vendo o prato esfriar sem poder comer. Aí, chegaram, chutaram a bandeja e avisaram que iam me levar. Fui para o camburão junto com o (jornalista) Flávio Tavares, que estava numa cela próxima.O Flávio me disse que ficou sabendo da nossa libertação por um rádio que havia perto da cela dele – nós não tínhamos nada disso na cadeia. Ele comentou que nós íamos ser libertados, mas o sargento que acompanhava não deixou a gente conversar mais dentro do camburão. Então eu só soube direito o que ocorria quando cheguei ao Galeão. Fui inicialmente para o México, depois para Cuba e o Chile. Em Cuba, o maior desejo de todos era voltar ao Brasil. Sai de lá em 1971 e fui para a Coréia do Norte, participar de um congresso. Depois para a China. Passei pela União Soviética, por Praga e aí fiquei um mês na Europa. Lá, foi escrito um documento muito importante, uma autocrítica necessária sobre os erros que (militantes da resistência) havíamos cometido. Viemos para o Chile e ali ficamos em 72, 73 quando veio o golpe que em 11 de setembro de 1973 derrubou o presidente socialista Salvador Allende. Fomos para a Argentina e daí entramos clandestinamente no Brasil. Zarattini autografa biografia: retrato pessoal e político Após terceira prisão, liberdade só foireconquistada em 1979, com a Lei da Anistia[Especial 68] E como foi essa sua volta ao Brasil? [Zarattini] Foi em 1974. Eu fui preso e torturado, pela terceira vez, em maio de 78 e fiquei no presídio militar do Barro Branco (que funcionou como presídio político na ditadura) até 79, quando sai depois da anistia. [Especial 68] E a história, a acusação de que você colocou a que explodiu no Aeroporto dos Guararapes, no Recife, contra o ministro da Guerra e já candidato a presidente da República na sucessão do marechal Castelo Branco, o general Costa e Silva ? [Zarattini] Eu não respondi a esse processo. Não participei do atentado, feito pela Ação Popular (AP). [Especial 68] Mas porque te envolveram no processo?[Zarattini] Porque tinha um delegado fascista ligado aos latifundiários, donos de grandes fazendas, e que sabia do meu trabalho lá em Pernambuco, antes e no pós-64. [Especial 68] Encontramos um depoimento seu publicado no site do Museu da Pessoa, onde você conta sua história de vida, e duas coisas me chamaram a atenção: uma é que você começou a trabalhar muito cedo, aos 13 anos, e a outra é gastava seu salário indo muito ao cinema, uma paixão sua. [Zarattini] Realmente, eu comecei muito cedo mesmo, trabalhando com um dirigente sindical que me influenciou contando muitas histórias. Foi com ele que eu iniciei minha luta na campanha “O petróleo é nosso”. Ele, eu e outros fomos presos. Meu pai e minha mãe ficaram malucos porque eu tinha 16 anos.Meu pai era ator e foi precursordo cinema no Ciclo de Campinas[Especial 68] Você gostava muito de cinema? [Zarattini] Meu pai foi precursor do cinema em Campinas e, inclusive, fez dois filmes como ator, com bastante sucesso. Um era “A carne”, do Júlio Ribeiro. Ele interpretava um velho. Para a época, era até um filme bastante pornográfico. Ele era um latifundiário. O outro foi uma espécie de faroeste chamado “Sofrer para gozar”. Era muito difícil passar um filme nacional, sem promoção e com essa distribuição, como é até hoje. As casas exibidoras têm, até hoje, ações controladas por quem? Por empresas vinculadas às distribuidoras de filmes norte-americanos. Para passar um filme nacional é muita luta sem que ele tenha uma certa promoção. Ainda temos até hoje em dia, principalmente nos cinemas dos shoppings, essa ligação. Na prisão, notícia sobre a morte do delegado Fleury[Especial 68] O segundo depoimento que achei interessante é de quando você recebeu a notícia sobre a morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury, num dia 1º de maio. O que te passou pela cabeça naquele momento?[Zarattini] Escrevi um depoimento, publicado numa revista alemã. Eu estava muito inspirado. Terminou o dia na prisão e eu o escrevi. Esse depoimento também está na minha biografia.Vida pessoal emilitância política[Especial 68] Como ficou a família, a mulher, os filhos, no meio dessa militância toda? Como toda essa perseguição alterou sua vida pessoal? [Zarattini] A vida pessoal se altera muito. Eu me separei, mas até hoje tenho um ótimo relacionamento com minha ex-mulher. [Especial 68] Falando sobre família, seu filho, Carlos Zarattini, acabou enveredando pela política também, hoje é deputado federal pelo PT. Você esperava isso depois dele ter acompanhado a sua trajetória, toda a perseguição que você sofreu? [Zarattini] Depois que eu voltei, clandestino em 1974, uns dois anos depois eu procurei minha família e consegui reencontrá-la. O Carlos tinha uns 14 anos e a Mônica (jornalista) tinha uns 12 quando nos reencontramos as primeiras vezes. Era muito difícil encontrá-los vivendo na clandestinidade. Mas, mesmo assim, o Carlos cresceu comtoda essa consciência e também entrou para a política. Foi líder sindical dos metroviários, secretário municipal de transportes na administração Marta Suplicy na prefeitura de São Paulo e hoje é deputado federal. Nos períodos Collor e FHC,novo embate contra privatizações[Especial 68] Falando sobre sua atuação política, mais recente, você foi forte opositor das privatizações durante os governos do Fernando Collor e do Fernando Henrique Cardoso. Como foi sua luta em defesa das estatais? [Zarattini] Longo e tenebroso inverno dos dois Fernandos (Collor e FHC)... Os dois fizeram a política do neoliberalismo e privatizaram a CSN, a Vale, fizeram toda uma política de desmonte. Batalhamos contra diversas privatizações e o Zé Dirceu, na época também deputado, esteve à frente dessa luta. Na ocasião, só se tinha o PT e o PDT, bastante brizolista, como partidos de oposição ao Fernando Collor e ao Fernando Henrique. Mas nós conseguimos segurar. O quê? Havia o presidente do Banco Central, Gustavo Franco, que queria privatizar a Petrobras, o Banco do Brasil (BB) e a Caixa Econômica Federal (CEF). Graças à resistência do PT essas empresas não foram privatizadas. Especulação e monopólio sãoresponsáveis pela alta dos alimentos[Especial 68] E todo esse alarme pela alta mundial dos preços de alimentos? É o aumento do consumo ou há algo mais?[Zarattini] O preço dos alimentos sobe e, aí, tenho uma divergência com o Lula. Não é só porque nós estamos comendo mais por causa do Bolsa Família, do crédito consignado, do aumento real de salário. Vários povos estão se alimentando mais, mas não é essa a razão. O motivo básico (da alta dos alimentos) é que há um monopólio internacional controlado, novamente, pelo imperialismo norte-americano e que fez esses preços irem para a estratosfera. Isso e mais a especulação de commodities, são os dois motivos principais. Então o Brasil, quando privatizou as estatais de fertilizantes cometeu um dos seus maiores erros.

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