Tendo em vista a existência desde o início da década de 60, do complexo industrial-militar nos Estados Unidos, grande estimulador do belicismo americano, o porrete pode ter diminuido de tamanho, porém continua existindo.
José de Souza Castro, do Tamos com Raiva.
Manchete da Folha de S. Paulo, ontem, na pág. A16: "Política dos EUA para latinos está obsoleta, diz documento". Li com interesse. Não faz muito tempo, citei o presidente Franklin D. Roosevelt como autor da frase sobre um dos mais sanguinários ditadores latino-americanos, Anastásio Somoza Garcia, que reinou sobre a Nicarágua de 1937 até ser assassinado por um poeta em setembro de 1956. "Somoza may be a son of a bitch, but he’s our son of a bitch", teria dito FDR. Mais tarde, historiadores sustentaram que essa definição de "nosso filho da puta" não se referia a Somoza, mas ao ditador Rafael Trujillo, da República Dominicana. Pouco importa. O que interessa é que Roosevelt, um herói americano – ele tirou o país da grande recessão capitalista iniciada com a quebra das bolsas no final da década de 20 e o conduziu à vitória na II Guerra Mundial –, seguiu à risca a política do Big Stick (grande porrete) instituída por um antecessor, Theodore Roosevelt, que governou os Estados Unidos entre 1901 e 1909. Essa expressão descreve o estilo de diplomacia orientada pela Doutrina Monroe, resumida na mensagem do presidente James Monroe ao Congresso dos Estados Unidos, em 1823: "Julgamos propícia esta ocasião para afirmar, como um princípio que afeta os direitos e interesses dos Estados Unidos, que os continentes americanos, em virtude da condição livre e independente que adquiriram e conservam, não podem mais ser considerados, no futuro, como suscetíveis de colonização por nenhuma potência européia". Ou seja, a América para os americanos...do Norte – mais especificamente, dos Estados Unidos, porque Monroe, é claro, não estava pensando na existência do México e do Canadá ao escrever aquilo. As intenções dessa diplomacia eram proteger os interesses econômicos dos Estados Unidos na América Latina, o que acabou levando à expansão da marinha americana e ao maior envolvimento do país nas questões internacionais. Os americanos se sentiam como sendo a polícia do mundo, para protegê-lo da ameaça comunista. Sobretudo em seu grande e bobo quintal, que começa na fronteira com o México e vai até a Patagônia. O grande porrete caía ali sem dó nem piedade, brandido pelas milícias dos ditadores colocados no poder pelo patrão do norte e apoiados pelos capitalistas locais. Nos bons tempos – para os americanos – da ditadura militar no Brasil, tivemos um chanceler, Juracy Magalhães, que dizia: "O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". No dia 4 deste mês, lemos na Folha uma entrevista de um ex-adido militar francês no Brasil, o general Paul Aussaresses, hoje com 89 anos, considerado "a memória viva dos atropelos aos direitos humanos praticados durante a ditadura brasileira (1964-1985)". Ex-agente do serviço secreto da França, veterano das guerras do Vietnã e da Argélia, Aussaresses colaborou com o regime militar no Brasil, ensinando aos oficiais técnicas de tortura e também de combate à guerrilha naquela época. Tinha sido professor de técnicas de torturas em academias militares dos Estados Unidos, desenvolvidas por ele na luta contra argelianos que lutavam para se libertar da França. Em certo ponto da entrevista, ele disse que o Brasil participou do movimento militar para derrubar, em 1973, um presidente chileno eleito democraticamente, Salvador Allende: FOLHA - O senhor chegou ao Brasil em outubro de 1973, pouco depois do golpe militar do Chile. O Brasil participou ativamente no golpe contra Allende? AUSSARESSES - Que pergunta! Você pensaria que sou um idiota se não estivesse a par. Claro que o Brasil participou! FOLHA - O senhor conta no livro. Gostaria que repetisse. O Brasil enviou aviões e armas? AUSSARESSES - Mas claro, armas e aviões. FOLHA - E enviou oficiais também? AUSSARESSES - Sim, claro. As armas não sei dizer exatamente quais. Mas os brasileiros enviaram aviões franceses com projéteis fabricados na França pela sociedade Thomson-Brandtà FOLHA - Para a qual trabalhou depois, quando saiu do Exército. AUSSARESSES - Exatamente. Bom, até aí é história. Mas, quais foram os sábios que descobriram agora que a política dos Estados Unidos para seu quintal está obsoleta? São sumidades como a ex- representante de Comércio dos EUA Charlene Barshefsky e o ex-chefe do Comando Sul das Forças Armadas americanas, general James T. Hill, que se reuniram num painel de especialistas coordenado pelo Council on Foreign Relations, com sede em Washington. Eles redigiram um estudo intitulado "Relações EUA-América Latina – uma nova diretriz para uma nova realidade", a ser apresentado ao futuro governo americano. Entre outras coisas, recomendam que os Estados Unidos aprofundem suas relações com o Brasil – para eles, a cooperação em energia alternativa é uma "oportunidade única" – e com o México. Que acabem com o embargo econômico contra Cuba, precedido da eliminação de outras restrições, mostrando principalmente aos jovens cubanos que os americanos querem uma relação respeitosa com a ilha. (Como sabem, desde que a máfia americana transformou Havana num bordel para americanos endinheirados, no tempo do ditador Fulgêncio Batista, em meados do século passado, esse respeito não existe.) Aconselham a Casa Branca a manter canais diplomáticos com a Venezuela, evitando duelos diretos com Hugo Chávez. E que haja uma nova política migratória, "sem expulsão de ilegais, com ajustes no programa de trabalhadores estrangeiros e incentivo a programas temporários", conforme resume a Folha de S. Paulo. Enfim, um documento cheio de boas intenções. Mas, como disse – não estou bem certo, já li a "Divina Comédia" há tanto tempo –, Dante Alighieri, o inferno está cheio de boas intenções. Há dias, na Carta Maior, Gilson Caroni Filho escreveu: Ao anunciar a reativação da Quarta Frota, desativada há 58 anos, para "patrulhar os mares da América Latina", a marinha estadunidense encena, em versão farsesca, a sina do capitão magistralmente criado por Wilhelm Richard Wagner, em 1841. A diferença é que se o "Holandês voador" navegava eternamente por conta de maldição que só um amor redimiria, o que move os militares norte-americanos – e seus "navios fantasmas" – é a necessidade de retomar o controle de uma região que, por décadas, foi seu quintal seguro. A nova constelação de governos latino-americanos que, assumindo posições contrárias às do governo dos Estados Unidos, opõe-se à concessão de bases para as forças militares do Império, é o mar revolto a ser vencido. Se o personagem wagneriano tinha em “Senta” sua possibilidade de redenção, ao governo americano resta apenas Uribe como promessa de rendição. Convém atentar para o que disse Alejandro Sánchez, funcionário de organismo de investigação do governo Bush: "Nos últimos anos os Estados Unidos se concentraram no Iraque e Afeganistão. Agora estão tentando voltar para a América Latina". Bem, logo estaremos livres desse Bush. Mas, o que levou esses sábios a repensarem a política do porrete? É que, nos últimos 20 anos, dizem eles, "a América Latina mudou: houve crescimento, com relativa estabilidade econômica, e a região tornou-se importante fornecedora de energia, minérios e alimentos, o que promoveu seus laços com Europa e Ásia, em especial". Laços – eis a palavra-chave. A América Latina não se amarra mais apenas aos Estados Unidos, embora continue sendo um importante mercado para eles. Em 2006, as exportações americanas para a região somaram US$ 223 bilhões. Não é de se jogar fora. Mas há outros dados. Em recente seminário para um grupo seleto de empresários e altos executivos, o dirigente no Brasil de um dos maiores bancos europeus mostrou que a situação mudou muito. Segundo ele, em 2006, metade das operações de compra na América Latina foi feita por empresas latino-americanas. Antes, as grandes operações eram feitas por uma empresa européia ou americana. Os investimentos da América Latina no exterior subiram 115% em 2006 e chegaram a US$ 41 bilhões, enquanto os investimentos recebidos pela região cresceram 1,5%, atingindo US$ 72 bilhões. Resumindo, o quintal havia sido limpo a duras penas pelos moradores e não era o mesmo dos tempos de Roosevelt. Desde 2002, os preços médios de exportação do Chile cresceram cerca de 160%, os do Brasil 60%, os da Argentina e México em torno 40%. O mercado consumidor interno ficou mais forte. Além disso, o continente é rico num bem escasso e cada vez mais valorizado, a água doce. E já produz mais alimentos do que consome, o que é uma grande vantagem, quando, pelo quarto ano consecutivo, a produção mundial está abaixo das reservas estratégicas calculadas pela FAO para alimentação no mundo. Enquanto isso, os Estados Unidos, que em 1945 tinham perto de 47% do PIB mundial, estão hoje com 23 ou 25%. Ou seja, o tamanho do porrete encolheu. Hoje já tem até quem ouse pedir que não mais sejam chamados de americanos os que nascem nos Estados Unidos, pois americanos somos todos nós nascidos nas três Américas, mas estadunidenses ou, simplesmente, useanos (de USA, ou EUA em inglês). Nada como uma chacoalhada nas crenças estabelecidas, para mudar um pouco as coisas que, de fato, precisam ser mudadas.
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