Publicado no blog Correio da Cidadania.
Fala-se e escreve-se muito dos guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – quase sempre para os caluniar – e pouco das guerrilheiras. A maioria dos europeus ignora que milhares de mulheres combatem nas 60 frentes em que as FARC lutam naquele país. Conheci muitas em 2001, nas semanas vividas num acampamento amazônico da organização revolucionária. Como transmitir no breve espaço de uma crônica o que em mim ficou do contato com essas guerreiras de novo tipo?
Encontrei ali moças tão diferentes que seria redutor o esforço para esboçar o choque emocional provocado pelo descobrimento das combatentes das FARC. De comum entre elas apenas a coragem, a capacidade de adaptação a condições de vida duríssimas e uma confiança total na justiça da luta das FARC e na vitória final, sem data.
No meu acampamento somente uma não tinha companheiro. Apenas Eliana ultrapassara os 40. A maioria não atingira os 25 anos. A ética da guerrilha impunha normas que eram respeitadas. Se dois namorados pretendiam estabelecer uma relação amorosa informavam o comandante. A infidelidade não era tolerada pelo código da guerrilha. A pareja era autorizada a dormir na mesma caleta, o estrado-cama que, sob um toldo de plástico, na grande floresta fazia as vezes de casa. O regulamento proibia também que os guerrilheiros, homens ou mulheres, mantivessem relações sexuais com hóspedes das FARC.
Mas não havia moralismo. Se um casal decidia pôr termo à relação comunicava essa decisão ao comandante. O gesto consumava a separação.
As mulheres realizavam os mesmos trabalhos que os homens, desde o treino militar à abertura das latrinas. Iguais direitos, tarefas idênticas.
O cotidiano dos acampamentos não permitia a privacidade a que hoje estamos acostumados na vida diária. Na selva, infestada por transmissores de doenças perigosas, o banho diário é imprescindível à defesa da saúde. As mulheres banhavam-se no rio ao lado dos homens, numa atmosfera de camaradagem e respeito que me impressionou. As normas do pudor, tal como as conhecemos, não podiam funcionar ali. Mas nunca, nem nos olhares nem nas palavras, testemunhei atitude da qual transparecesse um comportamento machista.
Elas, tal como eles, tinham diferentes origens sociais. Algumas tinham vindo de grandes cidades, outras dos llanos ou dos vales quentes, outras ainda das terras frias da cordilheira. A origem social transparecia mais no diálogo do que no comportamento, porque raparigas de famílias camponesas haviam adquirido uma sólida formação ideológica. Para surpresa minha, quase todas eram bonitas.
Na Aula – o lugar onde à noite o coletivo da guerrilha se reunia para assistir a palestras e debater o tema com o professor convidado – tive a oportunidade de falar mais demoradamente com algumas que mal conhecia, como a Adriana e a Jenny.
Um exército de heróis
O meu trabalho exigiu contatos muito freqüentes com quatro: a Glória, a Eliana, a Yurleni e a Isabel.
Glória era a secretária sem título do comandante Raul Reyes. De origem pequeno- burguesa, adquirira uma formação marxista ampla, pouco comum. Era a responsável pelos computadores e pelas transmissões por rádio, serviços instalados num "escritório", que se diferenciava das caletas apenas pela sua maior dimensão. Enviava mensagens codificadas e decifrava as recebidas. A sua intimidade com o mundo da informática fazia de mim um aprendiz bisonho.
Era muito bonita e nem o uniforme lhe afetava a feminilidade. Foi durante as lentas viagens para El Caguan, através de uma estrada imprevisível que rompia as matas da região – ela guiava carros pesados como uma profissional -, que do seu passado soube aquilo que me contou. O suficiente para eu entrever nela uma personagem de novela que irradiava uma intensa alegria de viver.
Em Eliana encontrei uma revolucionária de outro tipo. Responsável pela intendência, ocupava-se com zelo de tudo o que se relacionava com o abastecimento do acampamento. A sua beleza não era física. De meia idade, entroncada, brusca nos movimentos, alcançara o grau de subcomandante e o seu currículo de combatente dissipava dúvidas sobre os méritos da guerrilheira. Era de poucas falas, mas ao volante de um caminhão, respondia com rapidez e segurança às perguntas que eu formulava sobre a história das FARC e a organização do acampamento.
Yurleni, a rancheira, projetava a imagem de uma jovem camponesa desinibida, faladora, com uma espontaneidade tocante. Passava o dia na cozinha preparando as refeições dos convidados. Quando apreciávamos um prato de caça ou uma especialidade colombiana, reagia tão efusivamente que até comunicava o fato ao seu papagaio palrador, empoleirado num arbusto, ao lado do galão de água no terreiro por onde deambulavam galinhas e o quati, mascote da guerrilha. Yurleni tinha um companheiro, John, e dizia ser mais feliz do que algum dia pudera imaginar. Menina, tinha uma obsessão: ser soldado. Mas acabou nas FARC quando percebeu que era mentira o que delas contavam e que a guerrilha era, essa sim, um exército de heróis, como outro não existia.
Em Isabel, a historiadora, descobri uma romântica. Foi a ideologia, absorvida na universidade, que a empurrou para as FARC. Encontrava-se no umbral de uma vida de comodidades, já com um mestrado e trabalhando numa organização internacional que lhe garantia um salário mensal de quase 2000 dólares quando....
Ela hesitava ao chegar aí e eu interrompia, tentando descer às raízes da opção que a fizera mudar de rumo. "O tempo de reflexão foi breve", respondia. "Eu sentia um nojo crescente pelo tipo de vida que se abria para mim. Não queria ser triturada pelo sistema. O apelo foi irresistível. Ajudada por amigos, vim para as FARC, que eu admirava sem as conhecer...".
Comovida admiração
Isabel mantinha longas conversas comigo. Os temas ideológicos fascinavam-na e encontrou em mim um interlocutor. Após um ano, sentia-se ainda uma iniciada. Cumpria exemplarmente todas as tarefas, verifiquei que atirava muito bem, mas a insegurança atormentava-a.
A beleza de Isabel chamava a atenção pela suavidade. Tinha uma pele muito branca, uns olhos enormes, luminosos e um corpo onde tudo parecia certo pela forma e a proporção. Do conjunto desprendia-se irrealidade.
Um dia perguntei-lhe porque, sendo tão bela, não tinha companheiro.
Levou tempo a responder. "Sabe, isso me faz sofrer, mas não pelo que possas pensar. Alguns camaradas já me perguntaram por que os recusei. Pensam que é uma atitude de classe, mas o motivo é outro. Eu tenho uma idéia muito grande do amor e ainda não encontrei alguém que me abra ao amor"...
Naturalmente Gloria, Eliana, Jenny, Adriana, Yurleni e Isabel eram nomes de guerra. Desconheço os nomes reais.
Na sede das FARC, em San Vicente del Caguan, conheci outra guerrilheira, a Nora, da qual conservo nítida na memória a lembrança de alguém que me apareceu como símbolo das mulheres das FARC.
Ela estava então na legalidade relativa da época e por isso publiquei-lhe o retrato numa reportagem. O companheiro tinha caído em combate pouco antes.
Nora atendia na recepção todos os estrangeiros que chegavam à Zona Desmilitarizada. Apareciam ali muitos jornalistas que pretendiam entrevistas com os dirigentes mais destacados das FARC, incluindo Manuel Marulanda, o legendário Tirofijo, cuja morte fora anunciada vinte vezes por sucessivos governos. Era difícil a tarefa, mas Nora resolvia os problemas mais delicados. A voz e a doçura da guerrilheira desarmavam o protesto quando os visitantes não obtinham o que pretendiam. Fundia uma suavidade tocante numa firmeza de combatente veterana.
Fechava-se quando as minhas perguntas incidiam sobre o seu mundo interior. Nunca me falou do companheiro perdido, mas a palavra tristeza subia na minha memória quando a escutava. No dia em que me despedi dei-lhe um par de botas e uma lanterna. Indispensáveis na selva, não teriam mais utilidade para mim.
"Podem ser úteis para algum camarada", comentei, quase envergonhado.
Nora abraçou-me, sem uma palavra, e o seu ‘gracias, compañero’ chegou acompanhado do único sorriso que vi esboçar naqueles dias.
Hoje, quando leio ou escuto calúnias sobre as FARC, o meu pensamento viaja para as selvas e montanhas da Colômbia. No turbilhão de imagens que então me envolve, não é sem comovida admiração que revejo as guerrilheiras que ali conheci. Aquelas mulheres aparecem-me como símbolo da confiança na transformação revolucionária da vida.
Miguel Urbano Rodrigues é escritor, jornalista e membro do Partido Comunista Português.
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