Postado por Luiz Weis.
Um dia o jornal satírico americano The Onion [a cebola] publicou que um arquiteto havia criado um novo tipo de edifício em Washington. A novidade era a sua cúpula retrátil, como o teto dos carros conversíveis. Num dia de sol, a cúpula se abriria ao toque de um botão. Choveu, não tem problema. Outro toque, e a cúpula voltaria a fechar.
Na internet, levada a sério, a brincadeira andou de site em site até chegar à China, onde saiu em papel num jornal de Pequim. A partir daí foi reproduzida pelo Los Angeles Times, San Francisco Chronicle, a agência Reuters, a CNN, a revista Wired, reencarnando na internet em incontáveis blogues como exemplo da percepção que os chineses têm dos Estados Unidos: eles imaginam, foi o que se comentou, que os americanos não só rodam em carros conversíveis, mas vivem em prédios idem.
Custou até algum interneteiro rastrear a origem da notícia falsa – ou, no caso, até descascar a cebola -, demonstrando pela enésima vez com que facilidade e rapidez a desinformação se propaga, praticamente irrefreada, na galáxia global formada por milhões de blogues.
“Blogues criam notícias, e notícias podem assumir a forma de uma realidade textual que prevalece sobre a realidade debaixo dos nossos narizes”, escreve o historiador da cultura Robert Darnton [autor, entre outros estudos, de O massacre dos gatos e Os dentes falsos de George Washington, publicados no Brasil], na edição datada de 12 de junho da New York Review of Books [clique aqui para a íntegra do artigo].
Mas se fosse apenas mais um a se ocupar da ventania de distorções ou invenções dos fatos que sopra na blogosfera – como a balela, por ele reconstruída, das cúpulas conversíveis em Washington – não seria, quem sabe, o caso de trazê-lo para este espaço.
Ocorre que o tema - um dos - de Darnton é mais amplo. Trata-se do que ele chama “a instabilidade inerente dos textos”. No papel ou na tela, argumenta, a informação escrita [a “realidade textual”, como diz] em princípio deve merecer do leitor muito menos confiança do que os seus autores e editores querem fazer crer – até de boa fé.
À parte a adulteração proposital dos fatos de conhecimento do jornalista,“notícias sempre foram um artefato e nunca corresponderam exatamente ao que aconteceu de verdade”, pensa Darnton [itálicos acrescentados].
Por serem artefatos, os critérios a partir dos quais as notícias são manufaturadas – quando consideradas material jornalístico em potencial, depois apuradas, editadas e apresentadas graficamente – não passariam de “convenções arbitrárias”.
Convenções, claro que são, no sentido de padrões regulares. Por que arbitrárias, o historiador – que na mocidade foi setorista de jornal na chefia da polícia de Newark, Nova Jersey – não deixa claro.
Ele cita a disposição hierarquizada dos textos numa primeira página – a notícia mais importante no alto, à direita, as menos importantes abaixo da dobra etc. – como exemplo, literalmente o mais visível, do conjunto de procedimentos que “orientam o leitor” e “dão significado às notícias” num jornal.
“As próprias notícias”, elabora, “tomam a forma de narrativas compostas por profissionais conforme convenções aprendidas no curso do seu aprendizado”.
Uma delas, a organização das informações segundo o clássico modelo da “pirâmide invertida”, em cujo topo deve constar o essencial: quem, o que, quando, onde. [O presidente Lula disse ontem em Belém que...]. Outra, os códigos usados para distinguir as fontes anônimas em “altas” “as mais altas”.
O que o leva a concluir que “notícia não é o que aconteceu, mas história do que aconteceu”. A tal da “instabilidade inerente dos textos” começaria por aí.
“Naturalmente, muitos repórteres fazem o melhor que podem para ser precisos”, ressalva, “mas eles têm de se enquadrar nas convenções do seu ofício, e há sempre um lapso entre as palavras que escolhem e a natureza do acontecimento tal como foi vivido ou percebido por outros”. E sugere: “Perguntem a qualquer envolvido num fato relatado. Eles lhe dirão que não se reconhecem ou não reconhecem o evento na matéria que saiu no jornal.”
Darnton não deixa por menos. “Tendo aprendido a redigir notícias, eu agora desconfio de jornais como fontes de informação e me surpreendo frequentemente com os historiadores que os tomam como fontes primárias para saber o que realmente aconteceu. Penso que os jornais devem ser lidos antes para se saber sobre como os contemporâneos constroem os acontecimentos do que para adquirir conhecimento confiável sobre os mesmos acontecimentos.”
Não se sabe se o grande historiador se lembra disso cada vez que esquadrinha uma notícia. Em todo caso, a advertência evidentemente procede.
Mas ler é preciso. Até porque o “lapso” de que ele fala entre o fato ocorrido e a versão publicada pode variar imensamente de matéria para matéria, começando pelas inescapáveis limitações das palavras para descrever as coisas e desembocando na sua distorção – ou sonegação – deliberada.
O que Darnton quer, a rigor, navegando em águas profundas, é alertar para a necessidade de “repensar o próprio conceito de informação”.
Informações não deveriam ser entendidas “como se fossem lascas da realidade prontas para ser obtidas de jornais, arquivos e bibliotecas, mas como mensagens que são refeitas constantemente no processo de transmissão” [itálicos acrescentados].
O processo que converte um evento numa história é o fator decisivo – mais até do que as intenções dos que a contam e transmitem. É bom ter isso em vista para não se cair na armadilha de sempre culpar o mensageiro pelas mensagens que nos desagradam – embora ele possa ser culpado também por aquelas que nos agradam.
Palavras escritas que pretendem descrever e explicar os acontecimentos não formam, enfim, “documentos firmemente fixos”, mas “textos mutáveis”, reitera Darnton. “Se os estudarmos ceticamente, poderemos aprender como ler melhor nosso jornal diário” – ou, no mote do Observatório da Imprensa, não mais “ler jornal do mesmo jeito”.
Fonte: Observatório da Imprensa.
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