Carlos Dória
Gente contra commodities: um ensinamento de Darwin
O que o lema “Por um Brasil Rural com gente” pode ter a ver com o que Darwin escreveu há 150 anos por ocasião de sua visita a Recife e Olinda? A metáfora darwinista sobre o mangue nos diz algo sobre o conflito atual entre gente e commodities. O mangue fala da vida que virá, como contradição ativa à morte que passou.
Katarina Peixoto
Um dos legados da visita de Charles Darwin ao Recife e Olinda nos anos 60 e 70 do século XIX, a bordo do H.MS. Beagle, é uma possível chave do significado desta I Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário. No “Diário das Investigações sobre a História Natural e Geologia dos países visitados durante a viagem ao redor do mundo pelo navio de Sua Majestade”, o naturalista inglês registra, metaforicamente, a geografia moral de um povo e, talvez se possa dizer, de um certo país em toda sua diversidade.Ao sair cidade de Olinda em retorno ao Recife, de barco, Darwin observou: “O canal pelo qual fomos e voltamos de Olinda ladeava-se de mangle, que surgia como floresta em miniatura, das margens lamacentas e gordurosas. O verde brilhante desses arbustos sempre me fez lembrar do mato viçoso de um cemitério; ambos se nutrem das exalações pútridas; um fala da morte que passou, outro, amiúde, da morte que virá”.
Passados quase 150 anos da passagem de Darwin por aqui, essa observação soa como uma espécie de diagnóstico, não apenas do Recife e do aterramento que lhe constituiu a alma e o corpo, mas de um país inteiro.
Diante dos quase 80 bilhões de reais que o governo federal disponibilizará para a safra 2008/09 do agronegócio empresarial brasileiro, a reflexão de Darwin pode nos ensinar algo. A crise mundial de preços e a ameaça das regras inflacionárias retomarem as diretrizes das economias nacionais podem ter ganhado mais um forte subsídio, com esse fortalecimento do mercado de commodities patrocinado. E, já que o argumento de que esse fortalecimento visa a incrementar a oferta de alimentos para demanda interna não se sustenta na experiência, a hipótese do fomento ao fetichismo que tem inflacionado o mercado de commodities se fortalece.
Darwin produziu, a despeito da leitura falsificada de seu pensamento, a metáfora adequada à descrição de que a via natural se nutre da morte. Os investimentos na agricultura familiar e a diversidade de políticas públicas promovidas pelo mesmo governo, porém, ultrapassam as limitações impostas pela conjuntura internacional da finança (e suas exigências de fome e barbárie), pelo menos para aqueles que, assim como Darwin, levam a realidade e não o fetiche, a sério.
A soma das políticas públicas realizadas pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário, na casa dos 13 bilhões de reais, tem também a característica, estranha ao agronegócio empresarial, de promover a independência, a autonomia e a geração de renda a custos relativamente modestos ao estado brasileiro.
Ao contrário do agronegócio empresarial, a agricultura familiar não precisa alegar que seu compromisso com o abastecimento interno é uma contrapartida aos subsídios ganhos. Como se sabe, é a agricultura familiar, não o mercado de papéis, o que alimenta, literalmente, o mercado interno. E nisso não há metáfora nem demagogia: a agricultura familiar responde por algo em torno de 70% dos alimentos consumidos no país, além de empregar mais que o agronegócio empresarial e de fomentar a relação de trabalho da terra e a consciência territorial (cujo símbolo maior é o fornecido pelas comunidades quilombolas).
Segurança alimentar, trabalho e consciência territorial e não índices – mágicos para o universo que circunda um ou pouquíssimos indivíduos – atribuídos a papéis supostamente correspondentes a colheitas subsidiadas por Estados (relativamente) sempre fortes, constituem a realidade, vale dizer, do campo e das cidades brasileiras, pelo menos de grande maioria delas.
É claro que há um conflito de interesses em jogo, hoje e no horizonte, e quem está levando mais do Estado (mesmo que suas contrapartidas não ultrapassem exigências imediatas de conjuntura). É como se, dada a desproporção dos subsídios concedidos pelo governo, restassem migalhas de outra política possível para a segurança alimentar e para o desenvolvimento rural do país. Migalhas da mesma ordem que aquelas que sobram para políticas públicas democratizantes; migalhas que condenariam as experiências governamentais de esquerda a vitórias cinzentas e contestadas, de ambos os lados. Mas o que é mesmo que está acontecendo do lado de cá, a ponto de chegar à condição de “contradizer”, isto é, de opor-se ativamente, aos 78 bilhões do agronegócio empresarial brasileiro?
Alguns minutos de caminhada no Centro de Convenções de Pernambuco fornece algumas pistas para uma resposta. Nos rostos marcados da morte que passou, de quilombolas, indígenas e agricultores organizados, nas demandas articuladas e objetivas por água, irrigação, financiamento de trator e linha de crédito para a produção de alimentos e para a refrigeração da produção de leite e queijo no agreste e no sertão, a resposta é que gente, e não commoditie, tem realidade, para além das migalhas alcançadas e bem aproveitadas, deve-se dizer.
E é a realidade, não papéis especulados com alto custo social e geopolítico, o que sempre sobrevive à conjuntura. A Conferência está só começando e é a primeira, mas numa conjuntura em que segurança alimentar é mais sólida que o agronegócio empresarial a contradição não se reduz a migalhas políticas.
O tema desta I Conferência é “Por um Brasil Rural com gente”; o que isso pode ter a ver com a metáfora darwinista, logo ele, tão caluniado pelos que não o leram? Há 150 anos e até há bem pouco tempo, o mangue era o lugar de toda sorte de dejetos humanos. Por cima dos esgotos a céu aberto que horrorizaram o naturalista inglês, o Recife foi parcialmente erguido, destruindo não apenas a morte que passou e que fedia, mas a vida que tem no mangue seu território.
No mangue as espécies se reproduzem, alimentam, desovam, protegem, sobrevivem e crescem. A contradição que se apresenta muito rica e diversificada, aqui, talvez possa ser expressa com a máxima da maguebit, o movimento musical mais importante das últimas décadas no país: “Sob o calçamento, está o mangue”. E é isso o que Darwin já tinha visto: amiúde, o mangue fala da vida. Aí está uma chave de leitura desta I Conferência, como contradição ativa à morte “que passou”.
Fonte: Agência Carta Maior.
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