Eu que trabalhei a minha vida inteira com o café, desde a produção até sua exportação, produto este por muitos chamado de "ouro verde", me vi induzido a publicar tal matéria, ainda mais que conheço muito bem tal região.Inicialmente como funcionário do antigo Instituto Brasileiro do Café (IBC) e depois como empregado da INTERBRÁS (Petrobrás Comércio Internacional), tive oportunidade de conhecer todas as etapas da produção cafeeira. Comecei trabalhando anos em trabalho de campo, visitando centenas de propriedades cafeeiras nos estados do Paraná, Minas Gerais e Espírito Santo. Nessas propriedades fazia pesquisas de safra e de custo de produção. Pude conhecer a realidade do campo e observar como os trabalhadores rurais são, na maioria dos casos, explorados e tratados como cidadãos de segunda categoria. Foi nas lavouras de café que surgiu a figura dos "bóias frias", contingente de trabalhadores sem nenhum direito trabalhista, muitas vezes oriundo de outros estados, recrutados por um "gato" e apresentados aos donos da terra. São recrutados principalmente para trabalhar durante o período de colheita, que vai na maioria dos casos, de maio a setembro. Foi dessa minha experiência que veio minha admiração pelo Movimento dos Sem Terra (MST). Já na Petrobrás Comércio Internacional, pude observar o jogo sujo e pesado dos oligopólios e oligopsônios, muito bem representados pelas multinacionais dos grandes países consumidores. A cidade de Carmo de Minas, citada na matéria, fica a mais ou menos 10 km de São Lourenço, estância hidro-mineral situada no chamado Circuito da Águas.
Carlos Dória.
Espetada na face mineira da Serra da Mantiqueira, Carmo de Minas exibe morros e picos de tirar o fôlego. Localizada a mais de 300 quilômetros de São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, a cidadezinha de 13 mil habitantes leva uma vida rural de traços arcaicos, pré-capitalistas, como as colônias de trabalhadores das fazendas. Carmo fica a uma boa distância da agitação dos grandes centros e, mineiramente, manifesta orgulho por esse isolamento. O morador da cidade grande é visto ali como um pobre-diabo engarrafado em congestionamentos e poluição. (Clique na foto ao lado para ver mais imagens)
A vila anda pimpona, toda orgulhosa do café que brota de suas terras, premiado no Brasil e no exterior. Está convencida de que o mundo acordou para a qualidade dos produtos locais. Nem por isso permite-se ficar tranqüila. A auto-estima em dia não afasta as intempéries climáticas e econômicas – o motivo da cara fechada de alguns produtores neste início de colheita. É trabalhoso lidar com a chuva e o sol, de modo a evitar que o café desande no terreiro. Os bancos, o dólar barato e o adubo caro tiram uma parcela importante da renda.
O sol levanta sob o mar de morros, esquenta o ar das madrugadas frias desta época do ano, dispersa o sereno, e isso é bom para o café. O dia corre lento e é de trabalho pesado nas lavouras. No fim da tarde, quando os tratores chegam à sede da fazenda, é hora de lavar o que foi colhido e peneirado, de separar os grãos verdes que dão café ruim. Descascada, a semente do café maduro vai ainda úmida para o terreiro e faz o mineiro, contra a sua natureza, correr contra o relógio. Ocorre que as nuvens têm aparecido aqui e ali no céu de Carmo, encobrem a serra, ameaçam virar o tempo e, se chove no café espalhado no terreiro, o lote com potencial para brilhar nos melhores cafés de Tóquio ou de Nova York perderá pontos decisivos nos exames de laboratório e provas de xícara que o esperam.
A primeira secagem tem de ser rápida, para evitar que o café entre em fermentação e, por isso, é disposto numa camada fina, “rodado” com freqüência para arejar e tomar sol. A operação ainda durará 15 ou 20 dias, no terreiro e nos secadores, onde os grãos exalam um cheiro bom, intercalada por períodos de descanso. A peleja é diária e seguirá pelos próximos cinco ou seis meses, até a safra acabar. É hora de suar a camisa para evitar o pior dos mundos: ver o café vendido no mercado interno, em reais e sem direito ao prêmio pago pelas torrefações e cafeterias internacionais. O preço despenca e com ele a auto-estima do carmense, um dos patrimônios locais. (Clique aqui para ver mais imagens).
Nem sempre as coisas foram assim, e antes eram piores, recorda Ibraim Chaib de Souza, “sexta geração do Barão de Alfenas”, enquanto caminha pelo terreiro da Fazenda do Condado, uma das propriedades mais antigas da região, produtora de café desde o século XIX. Até dez anos atrás, não se falava em café de qualidade, especial ou gourmet, como hoje são chamados os lotes que se destacam e alcançam os melhores mercados. Era tudo café natural, aquele que sai diretamente do cafezal para o terreiro, sem a devida homogeneidade. Misturavam-se grãos verdes, verdoengos (quase maduros), cerejas (maduros) e bóias (ressecados), resultando num produto final de baixa qualidade.
Em Carmo, a altitude e as temperaturas mais baixas são mais um desafio, a retardar o amadurecimento. “A gente aqui tem o problema do grão verde”, conta Chaib, “e, como não havia estímulo ao produtor, a gente pegava o café e vendia tudo como commodity.”
Os novos tempos chegaram vindos de Trieste, importante porto italiano onde se encontra a sede da Illy Café, hoje uma gigante com faturamento anual de 350 milhões de dólares, resultante em boa medida da venda de café brasileiro beneficiado, responsável por mais da metade do faturamento da empresa nos 140 países em que atua. Fundada nos anos 1960 pelo empresário e químico Ernesto Illy, falecido em fevereiro deste ano aos 82 anos, a torrefação elevou o padrão do espresso consumido nos países ricos.
Da química do café aos cuidados no plantio e principalmente na pós-colheita, passando pelos equipamentos e xícaras exigidos por um paladar apurado, tudo o que dizia respeito ao café mobilizou a curiosidade científica de Illy. Teve seu “lance de gênio”, como dizem os entendidos, quando criou, em 1991, o Prêmio Brasil de Qualidade do Café para Espresso, neste ano em sua 18ª edição. Com o concurso, ele não precisava mais garimpar os melhores lotes, muitas vezes nas mãos de corretores, a exigir uma melhor remuneração. Abriu um canal direto com os produtores, interessadíssimos em entrar para o grupo de “fornecedores do doutor Ernesto”. “Precisamos de 50 grãos para produzir uma xícara de espresso”, disse Illy certa vez, “e de apenas um grão ruim para estragar todo o sabor. É como pôr um ovo estragado em uma omelete.”
A chegada de Illy logo movimentou os produtores. “Quando o fazendeiro fica sabendo que seu vizinho ganhou 30 mil dólares de prêmio e vendeu seu café por um preço melhor, percebe que vale a pena investir em qualidade. Daí a importância da Illy”, diz o engenheiro agrônomo Herculano Medina Filho, pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), instituição criada em 1887 por dom Pedro II para incentivar a produção cafeeira no País.
Com Ibraim Chaib não foi diferente. E sua hora chegou em 2005, quando um lote produzido na sua fazenda chamou a atenção dos provadores da cooperativa local. Foi classificado para participar do prêmio da Illy. “Faltava anunciar o primeiro colocado e nada de aparecer um produtor de Carmo – e éramos oito em 40. Quando anunciaram o segundo lugar, falei para a Marly (a esposa): viemos aqui só para o jantar mesmo.” Na cozinha da fazenda, onde a família recebe CartaCapital com um autêntico café da tarde mineiro, a emoção ainda é visível entre os presentes quando passam na tevê as imagens do vídeo caseiro da premiação, ocorrida em uma casa de eventos em São Paulo. O foco das imagens vai embora assim que o vencedor é anunciado e começa uma gritaria da comitiva de Carmo. “Foi uma das maiores emoções da minha vida”, diz Chaib ao rever as cenas.
Além de 30 mil dólares, Chaib viu o nome da sua propriedade correr o mundo graças ao prêmio, entregue por Ernesto Illy ao filho de Ibraim, Pedro, hoje com 30 anos. De volta à vida no campo faz pouco tempo, Pedro representa a nova geração do café. Estudou design na capital mineira, morou nos EUA e hoje é responsável por criar uma marca própria para o café. Com a mãe, abriu há dois anos uma microtorrefação, que torra, mói e embala o café. “Por enquanto estamos vendendo apenas em algumas cidades próximas, para pequenas cafeterias, quase sempre atendendo aos pedidos e de forma muito artesanal”, diz Pedro. Também abriram uma representação em Seattle, nos Estados Unidos, onde o café recebeu o nome de Carmo Nero, homenagem ao boxer da fazenda. É vendido por uma rede local de cafeterias em pacotes de meio quilo a 14 dólares.
Depois do Illy, outros prêmios foram criados no País, pela Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic), secretarias estaduais de agricultura e pela Associação Brasileira dos Cafés Especiais (BSCA, como é conhecida, sigla de seu nome em inglês). Filial da matriz norte-americana, a BSCA realiza anualmente o Cup of Excellence, em que são premiados e leiloados os melhores lotes produzidos no País. É tida como a copa do mundo dos cafés de qualidade, com campeonatos nacionais em mais de 20 países e um leilão com direito a disputas acirradas entre os compradores, quase todos estrangeiros ou exportadores.
Esses rallies fazem a alegria dos produtores, quando o preço de uma saca pode subir dez ou 20 vezes. Em 2006, uma saca chegou a ser vendida por mais de 14 mil reais – o felizardo produtor, Francisco Isidro Dias Pereira, da Fazenda Santa Inês, fica logo ali, a poucos quilômetros da Fazenda do Condado. O lote tinha 12 sacas de 60 quilos e o lucro apurado foi de 178 mil reais. O café saiu de lá e foi de navio para o Canadá, comprado pela rede local Caffé Artigiano. Vendido no mercado tradicional, o produtor consegue hoje 250 reais por saca, valor que pode subir a 350 reais no caso dos cafés de melhor qualidade. Entre um preço e outro, corretores, exportadores, redes de varejo e milhares de quilômetros de distância separam o fazendeiro do comprador endinheirado.
José Wagner Ribeiro Junqueira, da Fazenda Serra das Três Barras, ainda mostra uma cara enfezada quando ouve falar desses leilões e lembra o que viveu nos últimos meses.
Em 2007, um lote “redondinho” saiu da sua propriedade e tinha tudo para brilhar nos concursos. Muito bem avaliado pelos provadores da cooperativa, não fez feio quando chegou ao concurso que a Emater, ligada ao governo mineiro, criou há alguns anos. Tirou o primeiro lugar.
“Fomos premiados em Minas, mas não pudemos participar do concurso mais importante, o da BSCA, que não foi realizado no ano passado”, afirma o produtor. Perdeu a chance de ver um rally daqueles disputando seu lote. (Corre em Carmo que o concurso foi cancelado depois que se constatou o desvio de recursos na associação. A matriz norte-americana vetou a realização do concurso até que a situação financeira estivesse em ordem novamente.)
Restava apostar todas as fichas no prêmio nacional da Abic, do qual participam os cafés vencedores nas etapas estaduais. Para quem venceu em Minas, calculou o produtor, será barbada levar a disputa nacional. “O pessoal da Emater diz que houve um problema nos Correios. As nossas amostras chegaram fora do prazo e Minas não entrou no concurso”, resmunga. O jeito foi vender o lote para uma empresa de torrefação de Curitiba, especializada em cafés especiais, mas por um preço bem menor do que o do leilão da BSCA.
Na Fazenda Santa Inês, Chico Isidro dirige sua pequena caminhonete, seguindo as trilhas que levam às lavouras de bourbon amarelo e vermelho, duas variedades do café arábica de maior potencial, assim como a mundo novo e a catuaí, também presentes na região. A bourbon é uma variedade precoce e vai bem nas regiões mais altas, em que o clima tende a jogar para a frente a maturação. Mas também é mais sensível a doenças e variações climáticas, o que reduz a produtividade e espanta alguns produtores.
“Em Carmo, as condições edafoclimáticas, acho que é essa a palavra, são propícias ao café especial”, diz Chico Isidro, deixando entrever que o “palavrão” era coisa importante. Diz respeito ao regime de chuvas e sol, ao solo, topografia e insolação da região. “É o que os franceses chamam de terroir”, diria outro carmense mais adiante, em tom cauteloso, como se não tivesse certeza do que havia dito. Coisa de mineiro. Mais adiante mostra o novo terreiro da fazenda, construído a 1,2 mil metros de altitude para pegar mais sol e vento. Pode-se ver que os lotes são numerados e contam com uma fichinha que indica a data da colheita e as várias etapas de secagem e beneficiamento, dentro do princípio da rastreabilidade, uma das exigências do mercado internacional.
Uma das características das lavouras premiadas em Carmo está presente na Fazenda Santa Inês. O café é plantado nas encostas mais elevadas, voltadas para o Norte. “Daqui sai um café soalheiro de muito boa qualidade, com mais de 15 horas diárias de sol”, afirma João Soffe Meirelles, provador e classificador da Cooperativa Regional dos Cafeicultores do Vale do Rio Verde (Cocarive), que reúne 524 produtores locais, dos quais apenas 40 produzem café especial. “Outro fator importante são as ruas amplas para separar as fileiras de café. Assim as plantas recebem mais sol e ventilação, o que vai favorecer o amadurecimento”, afirma Meirelles, que em março ganhou o segundo lugar no prêmio nacional da Illy para provadores e classificadores.
Os provadores têm um papel importantíssimo na elaboração dos cafés de melhor qualidade. Provam as centenas de amostras enviadas das fazendas, as classificam e dão notas. Também são eles que recomendam aos produtores a mistura de determinados lotes e a evitar o contato de lotes heterogêneos, de modo a garantir a uniformidade da bebida. O provador também sugere a peneira que deve ser usada na separação dos grãos – são considerados especiais os cafés “peneira 16 acima”, ou seja, apenas os mais graúdos.
Na sede da Cocarive, em meio às obras do novo laboratório que está sendo construído, os produtores recordam com gosto a visita da comitiva da Universidade da Organização das Nações Unidas (ONU), sediada na França, que foi a Carmo em maio deste ano, conforme noticiou em manchete o Correio do Papagaio, o jornal semanal da cidade. Vieram conhecer o projeto de desenvolvimento regional sustentável, parceria da cooperativa com o Banco do Brasil.
A menina dos olhos dos produtores locais é uma iniciativa da Associação dos Produtores de Café da Mantiqueira (Aprocam), também sediada em Carmo. Com apoio da Cocarive, do Sebrae e da Secretaria Estadual de Agricultura de Minas Gerais, a Aprocam solicitou ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual o reconhecimento de uma indicação geográfica para a região. A idéia é que em um ou dois anos o café saia da associação com o selo Café da Mantiqueira, da mesma forma que acontece com os vinhos produzidos no Vale dos Vinhedos, no Rio Grande do Sul, ou com o café produzido no Cerrado mineiro, outra tradicional região produtora de café especial. O segundo passo da Aprocam será criar uma denominação de origem controlada, como acontece há séculos com os vinhos franceses. No Brasil, por conta da legislação precária, ainda não existe essa possibilidade.
A região de Carmo também precisa correr atrás das certificações, requisito cada vez mais exigido pelos compradores estrangeiros. São selos de garantia criados em geral por ONGs internacionais, segundo os quais o café produzido em uma determinada fazenda respeita a legislação ambiental e trabalhista. Dos 40 produtores de cafés especiais da Cocarive, apenas dois estão em processo de certificação. O real valorizado em relação ao dólar e o custo elevado dos insumos derivados do petróleo retardam esse investimento, cujo retorno em geral leva alguns anos. “Agora vamos investir na certificação de fair trade, para conseguir agregar mais valor ao produto”, diz Ralph Junqueira, presidente da Cocarive.
A falta desses certificados, contudo, não tem impedido o crescimento do negócio. Jacques Pereira Carneiro, sobrinho de Chico Isidro e também produtor, é o responsável por abrir novos mercados e atrair clientes. Com um primo, criou a Carmo Coffees, cuja sede, no Centro, mais parece um escritório de cidade grande. Ele retornou recentemente dos EUA, onde foi a uma feira e, no sábado 14 de junho, embarcou para a Dinamarca, onde também participará do campeonato de classificadores da associação local de cafés especiais. “Ainda vamos ao Japão e outros países europeus neste ano”, diz ele, enquanto mostra o laboratório de provas que criou em seu escritório “para atender os gringos que chegam no fim de semana, quando a cooperativa está fechada”.
Nas próximas semanas, os gringos chegarão aos poucos, em grupos pequenos. Eles vêm conhecer as propriedades e os fazendeiros, e, claro, sondar os vendedores. Um desses grupos chamou a atenção de Maria Lúcia Junqueira, casada com Chico Isidro, quando foi visitar a Santa Inês. “Era um grupo de japoneses fechados, muito cerimoniosos. E um deles, antes de tirar a foto do grão madurinho no pé, borrifava um pouco de água nas plantas. Aquilo brilhava que era uma beleza.” No próximo catálogo promocional da cooperativa, a idéia será devidamente incorporada.
Fonte: Revista Carta Capital.
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