Olivier Piot
Na França, a passeata de 1º de maio mostrou neste ano uma face inédita. Agitando faixas de diversas organizações, cerca de cinco mil trabalhadores “sem- documentos” dominaram o desfile. Malineses, senegaleses, marfinenses... Até então, estes rostos negros da África eram vistos apenas em reuniões reservadas aos estrangeiros. Mas de repente, eles se convidaram para a manifestação mais tradicional e simbólica da classe operária francesa.
Quem são esses milhares de homens e mulheres que reivindicam sua regularização, entre os quais cerca de seiscentos, apoiados pela central sindical CGT, promoveram recentemente greves em uma dúzia de empresas na Île-de-France [1]? Empregados em setores como hotelaria, restaurantes, construção civil, segurança, limpeza, agricultura, ou trabalhando como empregados domésticos, cozinheiros, sucateiros etc., eles têm como denominador comum o fato de serem todos assalariados. Dispõem de contratos e constam de folhas de pagamento, pagam seus impostos e suas contribuições salariais. Têm em comum também o método para conseguir isso. “Os patrões não controlam a contratação”, revela Konaté, um trabalhador malinês da construção. “Basta mostrar os documentos de um primo ou de um amigo ou até documentos falsos, comprados por 500 ou mesmo 300 euros”.
Como aceitam tal situação? “Somente por razões de sobrevivência. De um modo ou de outro, um grande número de estrangeiros trabalha. As poucas centenas de grevistas da Île-de-France representam a linha de frente de milhares de outros”, explica Jean-Claude Amara, responsável pela associação de defesa de direitos Droits Devant!. Segundo dados de certas associações – como o GISTI, o Cimade e o UCIJ –, existem atualmente na França de 300 a 600 mil trabalhadores sem documentos.
Embora os salários declarados por esses trabalhadores (entre 1000 e 1400 euros por mês) aproximem-se do SMIC (Salaire Minimum Interprofessionnel de Croissance – Salário Mínimo Interprofissional de Crescimento) [2], eles escondem um número expressivo de horas extras não remuneradas. A ponto de certos trabalhadores sem-documentos estimarem trabalhar por 3,80 euros a hora, durante semanas que podem atingir 60 horas. “O patronato sabe bem que os trabalhadores estrangeiros são obrigados a aceitar condições de trabalho que os franceses não aceitariam, observa Gérard Filoche, inspetor do trabalho. Horas não remuneradas, demissões abusivas, não-pagamento de demissões e indenizações, trabalho de fim-de-semana e noturno: estamos em setores em que o direito de trabalho é totalmente desprezado.”
Hipocrisia: os sem-papéis têm registro nas empresas, pagam impostos, contribuem com fundos sociais. Mas são mantidos sob constante ameaça, para que aceitem condições de trabalho aviltantes
A Delegação Interministerial de Luta contra o Trabalho Ilegal (Dilti) estima que a proporção de infrações caracterizadas como “emprego de estrangeiros sem autorização de trabalho” quase dobrou na França, entre 2004 e 2006 (de 8,4% para 14,8%). Segundo uma pesquisa realizada no setor de hotelaria e restaurantes, casos de trabalho ilegal foram constatados em 25% dos 7 123 restaurantes investigados e a proporção passa a 61% na Île-de-France [3]. “Nós vivemos a pura lógica da flexibilidade e da rentabilidade, conclui Gérard Filoche. “E a globalização, desta vez, não tem nada a ver com isso, pois os setores implicados são sustentados por grupos franceses, que investem em território nacional, sem concorrência internacional”.
Para Jean-Claude Amara, essa “exploração vergonhosa” repousa na “hipocrisia geral”: “o Estado recebe os impostos dos sem-documentos, os fundos sociais beneficiam-se com suas contribuições salariais e os patrões utilizam seus braços com perfeito conhecimento de causa”. Vários empregadores, sob o foco dos holofotes, declararam ignorar que alguns de seus empregados tivessem documentos falsos. “Isso pode valer aqui ou ali, para alguns pequenos patrões isolados”, reconhece Patrick Soulinac, dirigente da CGT em Lyon. “Mas a grande maioria sabe muito bem. Nós temos dossiês nos quais um mesmo trabalhador aparece nas folhas de pagamento com até quatro nomes diferentes”.
Francine Blanche, secretária da CGT, estima que essa tendência ultrapassa a noção de “escravidão moderna”. Os trabalhadores sem-documentos, explica ela, são “os deslocados de empresas não deslocáveis” [4]. Como não é possível deslocar um restaurante, um canteiro de obras ou um posto de vigia para países onde se praticam salários vis, o patronato recria, em solo europeu as condições de um mercado de trabalho de baixo custo, recrutando trabalhadores fragilizados por seu “status” de sem-documentos. Esta lógica do “deslocamento sem mudar de lugar” camufla um “trabalho clandestino” que caracteriza uma minoria não desprezível dos assalariados franceses.
O recurso a esses “deslocados” aumenta e se diversifica. Um novo mecanismo é a chamada Prestação Transnacional de Serviços (PTS). Consiste em utilizar, na França, trabalhadores assalariados por empresas estrangeiras, que os enviam para realizar um serviço. Em sua pesquisa sobre as condições de trabalho no setor da construção e obras públicas, Nicolas Jounin menciona empresas polonesas, portuguesas e de outras nacionalidades que enviam mão-de-obra para trabalhar na França [5]. E a especialista em ciências sociais e políticas Béatrice Mesini aponta o caso de imigrantes equatorianos, regularizados na Espanha e enviados para a França como trabalhadores agrícolas temporários [6]. Para os patrões, essa forma de “subcontratação transnacional” apresenta várias vantagens: o custo da mão-de-obra é menor; os salários são pagos pelo empregador estrangeiro, que, em seu país, recolhe encargos sociais geralmente mais baixos; e o trabalhador não tem necessidade de documentos franceses para trabalhar na França.
Após quase vinte anos, as lutas dos imigrantes estão num novo patamar. E um regulamento baixado por Sarkozy abriu a brecha que faltava para a deflagração das greves atuais
Se essas mudanças profundas acontecem em certos setores da economia francesa há vários anos, por que a mobilização dos sem-documentos só ocorreu em 2008? “É uma questão de maturidade, comenta Violaine Carrère, coordenadora de pesquisas do GISTI. “Após a luta dos estrangeiros, aos quais foi negado o direito de asilo na metade dos anos 1980, nós vivemos as ocupações das igrejas (Saint Bernard etc.) no final dos anos 1990”, recorda. “Esses dois movimentos permitiram substituir a imagem do ‘imigrante clandestino’ pela noção de ‘trabalhador sem-papéis’, semelhante à de ‘sem-teto’ ou ‘sem-trabalho’. No verão de 2006, o movimento conduzido pela Rede Educação sem Fronteiras (RESF) permitiu aos estrangeiros não serem mais vistos como silhuetas anônimas e inquietantes. A luta contra a expulsão das crianças das escolas deu rostos, nomes e histórias aos estrangeiros. Com a mobilização dos trabalhadores sem-documentos, os franceses deram-se conta de que os estrangeiros trabalham e quitam todas as suas obrigações como assalariados”.
Um outro fator explica esta última transformação da luta dos imigrantes por seus direitos. “No verão de 2006, os novos regulamentos do governo mudaram a situação”, observa Raymond Chauveau, secretário-geral da CGT em Massy e iniciador do movimento. Ao suprimir, em 1974, o direito ao título de estadia baseado no trabalho, o Estado francês incitou os estrangeiros a procurarem a regularização por meio do recurso ao direito de asilo, às situações familiares (1978) ou ao status de estudantes (1993). Há dois anos, foi reintroduzida a possibilidade de se obter um visto de estadia (permissão para morar e trabalhar na França) com base no trabalho (a lei relativa à imigração e à integração, de 24 de julho de 2006). Nicolas Sarkozy contava vincular esse direito à sua doutrina de “imigração selecionada”. Ele então fixou imediatamente em 26 mil a cota de imigrantes a serem expulsos em 2008 (cerca de mil a mais que em 2007) e anunciou o aumento dos centros de detenção.
Em julho de 2007, o cerco se fechou. Um decreto do governo obrigou os empregadores a indicar seus empregados sem-documentos, sob pena de multa de 15 mil euros e cinco anos de prisão. O texto criou comoção. Mas, desta vez, no meio patronal. “Eu vi chegarem pequenos empresários assustados nos postos da organização Droits Devant!”, comenta Jean-Claude Amara. De seu lado, a CGT registrou as queixas de milhares de sem-documentos demitidos das empresas. Em 20 de novembro de 2007, a Lei Hortefeux (relativa ao controle da imigração, à integração e ao asilo) indicou uma lista de 150 serviços ditos “sob pressão” (aqueles onde há poucos candidatos às vagas). Ela foi seguida por uma circular, de dezembro de 2007, que limitou a somente 30 os serviços reservados aos imigrantes de países não pertencentes à União Européia. Enfim, uma nova circular, de janeiro de 2008, precisou, preto no branco, que a regularização era possível, a partir da apresentação das folhas de pagamento dos assalariados empregados nos serviços “sob pressão”.
O governo esperava que o patronato, pressionado pelo decreto de julho de 2007, apresentasse, ele próprio, os relatórios exigidos. Mas a CGT e o Droits Devant! aproveitaram a a brecha. Em fevereiro último, uma greve foi organizada em um restaurante parisiense. Sete cozinheiros foram regularizados. No final de abril, o sindicato entrou com mil pedidos de regularização nos departamentos da Île-de-France. Dez dias mais tarde, cerca de cem grevistas obtiveram ganho de causa.
Pego no contapé, o governo ensaia endurecer. Mas a França já não pode prescindir dos imigrantes, e suas lutas podem conquistar uma política menos arbitrária de regularizações
Ou seja, esse movimento incomoda. Não apenas o governo, que pensava ter resolvido o assunto da imigração. Mas também uma parte da CGT, pressionada pela mobilização e acusada por um grupo de sem-documentos de só ter entregue mil pedidos de regularização.
Os sem-documentos são determinados. “Nós não temos muita coisa a perder”, observa Bamba, grevista da empresa Millenium, de Igny. “Ao participar de reuniões ou fazer greve, nós sabemos o risco que corremos. Todo sem-papéis que sai da sombra se expõe e pode ser expulso a qualquer momento. Mas há anos saímos de casa, todos os dias, com medo de sermos presos e mandados de volta para nosso país. Então, à luta!”
Como era de esperar, a política em relação aos estrangeiros endureceu com Sarkozy. Hostil a qualquer forma de “regularização maciça”, o governo fechou-se em sua posição: os pedidos de regularização serão tratados “caso a caso”, em prejuízo dos que protestam e de alguns responsáveis de federações patronais. Mas essa posição não ajudará Sarkozy a sair do impasse. “É uma regra que alimenta o arbítrio mais impreciso, explica Patrick Peugeot, dirigente da Cimade. “Diante das necessidades reais da economia francesa, o Estado deverá, cedo ou tarde, optar pela regularização sobre critérios transparentes” [7].
[1] A Província de Île-de-France é uma das 26 regiões administrativas da França. Nela se localiza a cidade de Paris.
[2] O SMIC é, na França, a remuneração mínima que a lei garante ao trabalhador. Em 1º de maio de 2008, o SMIC subiu para 8,63 euros por hora (valor bruto), ou 1308,88 euros por mês (valor bruto sobre uma base de 35 horas semanais).
[3] “Trabalho não declarado em hotéis e restaurantes”, Acoss-Urssaff, Paris, 16 de agosto de 2007.
[4] L’Humanité, 16 de abril de 2008.
[5] Nicolas Jounin, Chantier interdit au public, Paris, La découverte, 2008.
[6] Béatrice Mesini, “Gestion de la main d’oeuvre et segmentation statuaire des saisonniers migrants dans l’agriculture européenne”, Londres, Simpósio do JIST, no prelo.
[7] Em 17 de abril de 2008, André Daguin, presidente da União da Indústria Hoteleira, pediu a regularização de cinqüenta mil sem-documentos.
Fonte: Le Monde Diplomatique.
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