sábado, 21 de junho de 2008

CIA, transparência e "jóias da família".

Foi surpreendente a facilidade com que a mídia festejou, em meados do ano passado, feitos duvidosos como a súbita divulgação das "jóias da família" da CIA, a Agência Central de Espionagem dos EUA. Eram segredos de outro tempo (décadas de 1950, 1960 e 1970), com apenas uns poucos detalhes relevantes, aqui e ali, não revelados antes.

Ainda que seja sempre saudável recordar aquelas ações torpes o esforço de fato meritório em favor da transparência foi outro - o realizado em 1975 e 1976 pela comissão de investigação presidida pelo senador Frank Church, responsável por 14 relatórios que chocaram os americanos e o mundo. Ele devassou operações de espionagem, muitas delas ilegais, e abusos variados da CIA e demais órgãos da espionagem, inclusive o FBI.

A oportunidade escolhida pelo governo Bush para voltar ao assunto foi suspeita. Entre outras coisas, desviava a atenção da série de quatro reportagens publicadas na mesma época pelo "Washington Post", expondo o papel do atual vice Dick Cheney, com sua obsessão pelo sigilo e por ações ocultas que violam os direitos humanos e liberdades civis e ignoram a lei do país e tratados internacionais.


1964, Brother Sam, Pinochet

Bastava observar nas tais "jóias da família" a parte sobre o Brasil, destacada em nossa mídia na ocasião. Nada havia que não tivesse sido publicado antes. A maior parte do material referia-se a fatos e personagens do período imeditamente anterior e posterior ao golpe militar de 1964 - viabilizado pela promessa de ajuda, na forma da Operação Brother Sam, que abasteceria os golpistas com combustível e armas se necessário.

Tudo isso era sabido dos brasileiros desde que a escritora Phyllis Parker, que fez pesquisa sobre o episódio em projeto para a LBJ School of Public Affairs, de Austin, conseguiu levantar o sigilo sobre numerosos documentos da Biblioteca LBJ, que funciona na Universidade do Texas em Austin. Com base nos mesmos documentos o "Jornal do Brasil" publicou sua série de reportagens no final de 1976.

Já a comissão Church fez revelações chocantes sobre a ação da CIA na América do Sul - inclusive a suspeita de que Carlos Andrés Perez, então presidente da Venezuela, e outras figuras conspícuas tinham sido informantes da espionagem dos EUA. E ainda acrescentou detalhes sobre a participação da CIA na trama para matar o general René Schneider e abrir caminho ao golpe sangrento que derrubou Salvador Allende no Chile.


A política dos assassinatos

Coube também à comissão Church revelar pela primeira vez o envolvimento da espionagem americana na sucessão de planos para assassinar Fidel Castro - alguns encomendados até à Máfia. E ainda as conspirações para matar outros governantes estrangeiros, entre eles Patrice Lumumba (no antigo Congo belga), Ngo Dinh Diem (no Vietnã do Sul), Rafael Trujillo (na República Dominicana), etc.

Os americanos só ficaram horrorizados, no entanto, com a
revelação pelo painel do Senado sobre o extraordinário alcance da vigilância interna dentro dos EUA: violação de correspondência, grampeamento de telefones, etc. Graças às muitas descobertas da comissão Church, viriam depois a ordem presidencial para sustar assassinatos de governantes, leis restringindo abusos da espionagem e até a Lei da Liberdade de Informação (FOIA).

Celebrar tudo isso em 2007, quando o governo Bush já tinha restabelecido até a prática do assassinato de pessoas no exterior e tentava contornar, neutralizar ou revogar as leis resultantes das revelações da comissão Church em 1975-76 - ou seja, dando marcha-a-ré nos efeitos positivos - pareceu não só insólito, mas também cínico e ofensivo.

Church, primeiro senador a ser reeleito (duas vezes) na história do estado de Idaho, foi rotulado de antipatriota pelos conservadores, devido à sua ação corajosa. Nas primárias democratas de 1976 ele fracassou ao tentar a indicação presidencial. E logo desistiria da carreira política depois de ser transformado em alvo prioritário da direita. Não tinha mais mandato ao morrer de câncer em 1984.


E os relatórios escondidos?

Os esqueletos do armário que o governo Bush tentou requentar no ano passado pouco acrescentaram à façanha de Church há 33 anos. Ela foi possível em parte pelo clima favorável à transparência, em seguida a Watergate - o conjunto de escândalos que levou Richard Nixon à renúncia. Mas em 1981, com a mudança radical de rumo em meio à crise dos reféns do Irã, Ronald Reagan chegou à Casa Branca.

Como observou Amy Zegart - um especialista no assunto - na página online do "New York Times", aquela imundície do passado ainda era leitura interessante, mas sem se saber o que houve de errado a 11/9 não haverá melhor inteligência. A investigação da própria CIA sobre isso, concluída há três anos, continua guardada a sete chaves, embora reclamada pelos dois partidos na comissão de Inteligência do Senado.

Ironicamente, é a mesma comissão de Church - antes era temporária, hoje é permanente. Reformas radicais na CIA foram propostas depois do 11/9 pelo general Brent Scowcroft, assessor de Segurança Nacional de Bush I (o velho), em relatório encomendado por Bush II (o filho). O relatório foi engavetado pelo ex-chefe do Pentágono, Donald Rumsfeld. E a julgar pelas "jóias da família", disse Zegart, continuará escondido pelo menos até 2041.
Fonte: Tribuna da Imprensa.

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