Ariel Palacios, no Estadão.
Era uma época exuberante para a ditadura militar que governava a Argentina havia dois anos. O país, em 1978, passava por um momento de efêmera prosperidade econômica, com dezenas de milhares de turistas argentinos dizendo “deme dos” (dê-me dois) nas lojas no exterior. Os argentinos teriam uma Miss Mundo, Silvana Suárez, eleita no mesmo ano, e festejavam o desempenho brilhante do tenista Guillermo Villas nas quadras - enquanto Carlos Reutemann exibia um desempenho de alto nível nas pistas da Fórmula 1. A Argentina ainda posava de potência militar regional e desafiava o Chile para uma guerra pelo Canal de Beagle. No mesmo ano, o país abrigava a Copa do Mundo de futebol - que, de quebra, venceria, para delírio de 25 milhões de argentinos.Nos porões da “guerra suja”, no entanto, o país acumulava mais de 20 mil desaparecidos políticos (seriam 30 mil até a queda da ditadura). Mais de 500 centros de detenção e tortura espalhavam-se por todo o país. As notícias sobre a inflação, o sucateamento da indústria, a fragilidade do sistema financeiro e os megaescândalos de corrupção eram censuradas pelo regime. Críticas à seleção também estavam proibidas. Expressar um mero “porém” à seleção implicava no desaparecimento assegurado. O país, tal como ocorreria anos depois durante a Guerra das Malvinas (1982), estava ofuscado pelos triunfos.Trinta anos depois, os argentinos começam a encarar a Copa de junho de 1978 com visão mais crítica. Na quarta-feira, organizações de defesa dos direitos humanos, políticos, intelectuais e jogadores de futebol liderarão diversas homenagens à memória dos mortos da ditadura durante a Copa. Uma das cerimônias será realizada no mesmo estádio onde ocorreu a final.“A Copa foi o primero símbolo de aprovação popular da ditadura. O general Jorge Rafael Videla, ditador na época, foi aplaudido pela multidão em estádios repletos. O gasto desvairado na organização não foi questionado (em vez dos US$ 70 milhões previstos, foram gastos US$ 700 milhões). As denúncias dos exilados e parentes dos desaparecidos foram encaradas como expressões de antipatriotismo”, explica ao Estado o jornalista Pablo Llonto, autor do recém-lançado livro A vergonha de todos, no qual descreve o fervor popular pelo evento no meio de um regime de terror. Com a conquista da Copa, Videla chegou ao auge do poder. No dia seguinte à final, uma multidão o ovacionou na Praça de Maio, homenagem praticamente reservada até então aos presidentes civis. Em 2002, durante uma entrevista, o último ditador do regime, o general Reynaldo Bignone (1982-83), declarou amargurado que a ditadura havia cometido um grave erro naquela ocasião: “Se tivéssemos convocado eleições naquela hora, teríamos vencido. E ainda hoje estaríamos sendo aplaudidos.”DILEMAGrupos de esquerda, exilados e setores da população que sofriam com a ditadura estavam divididos entre torcer a favor ou contra a seleção. Nas discussões, alguns argumentavam que a vitória favoreceria a ditadura. Parentes de desaparecidos também estavam divididos. A líder das Mães da Praça de Maio, Hebe de Bonafini, relata: “Enquanto estava na cozinha chorando o desaparecimento de meu filho, meu marido, na sala, gritava os gols.”Há 30 anos, Graciela Daleo, hoje catedrática de Direitos Humanos da Universidade de Buenos Aires, era uma desaparecida da ditadura. Detida na Escola de Mecânica da Armada (Esma), escutava de sua cela os gritos da torcida argentina a dez quarteirões dali, no Estádio Monumental de Núñez. Na Esma estiveram presas 5 mil pessoas. Só 140 sobreviveram.“Quando ouvi gritos da torcida pela janela, pensei: se eles ganharam, nós perdemos”, relatou ao Estado. Logo depois, um dos mais cruéis torturadores da “guerra suja”, o capitão Tigre Acosta, entrou na sala dos torturados, eufórico: “Ganhamos! Ganhamos!” Sem explicações, Graciela e outra prisioneira foram levadas por guardas para fora da cela e postas num carro com militares. O carro saiu pelas ruas, onde a multidão celebrava a vitória. “Milhares de pessoas dançavam e gritavam de alegria. Sempre havia sonhado com essas multidões, mas celebrando uma revolução social, não uma vitória na Copa”, disse ela. Olhando pela janela aberta do carro, Graciela chorou: “Se eu gritasse que era uma desaparecida, quem se importaria?” Após o tour, os torturadores a levaram para jantar numa churrascaria repleta de pessoas cantando jingles da Copa. De volta à Esma, foi posta na cela. Nas ruas, os portenhos festejaram até o raiar do dia. “Desde aquele momento, não quero saber nada, absolutamente nada sobre Copas”, diz.
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