Do Incra
O Natal vai ser muito diferente esse ano para a agricultora Josélia dos Santos, 44 anos, e seus 13 filhos. Nascida no alto sertão sergipano, dona Josélia se criou no campo e nunca saiu da região onde vive. “Sou da roça, é o que sei fazer e me orgulho disso”, diz, sem esconder a emoção daquele dia 11 de dezembro de 2009. Ali ela sorria um sorriso há mais de nove anos contido pela realidade.
Apesar da tradição camponesa, dona Josélia nunca teve liberdade de acesso a terra. Ela e uma centena de outras famílias de trabalhadores rurais tinham motivos de sobra para estarem excitados naquela tarde de sexta-feira, na fazenda Guia, 2,4 mil hectares, localizada entre os municípios de Nossa Senhora da Glória e Nossa Senhora Aparecida, a pouco mais de 120 km de Aracaju. Era ali o fim de uma trajetória dura contra o latifúndio.
“Aqui, estamos desapropriando uma das últimas grandes fazendas improdutivas da região do alto sertão”, confirmava o procurador regional do Incra em Sergipe, Marcos Bispo, logo após ler o ato judicial de imissão de posse. Orgulhosa, dona Josélia fazia pose com parte de sua família para tirar fotos e marcar eternamente aquele momento. Ela deu a luz sete meninos e seis meninas. Dois deles já falecidos, alguns outros casados e vivendo na cidade e o restante acompanhando a matriarca. “Vou criá-los aqui comigo, vão estudar e viver na roça, somos todos da roça mesmo”, ria enquanto cortejava o caçula de quatro anos que abria espaço entre os mais irmãos mais velhos para poder se aproximar da mãe.
Por todo lado que se olhava, das crianças brincando pelo terreiro a turma da batucada que contava em verso as conquista da terra, o sentimento que pairava no ar era o de superação. “Companheiros, hoje eu me recordo dos momentos mais difíceis nesses nove anos de luta pela reforma agrária aqui na região, quando quase houve o massacre de nós todos”, desabafava emocionado Roberto Araújo, integrante do Movimento dos Sem Terra (MST) no estado e vice-prefeito do município de Poço Redondo. Ele se referia ao dia 30 de outubro de 2001, quando já contavam oito meses de ocupação na área. Eram por volta de 22 horas no momento em que as 100 famílias de sem-terra acampadas foram surpreendidas pelos disparos das armas de 15 pistoleiros. Desesperados, saíram correndo de seus barracos de lona e palha. Uma menina de treze anos levou um tiro no pé. Por sorte, nada de mais grave foi registrado. “Quando voltamos, tudo tinha virado cinza e pó, os capangas puseram fogo em tudo e teve gente que ficou só com a roupa do corpo, perderam até os documentos”, relembra Roberto, que no dia seguinte entregou as cápsulas de bala à polícia de Glória. Nunca foi investigada a autoria dos disparos, sequer quem teria sido o mandante. “Depois desse episódio, muitas pessoas esmoreceram e foram embora, mas a gente sabia que só com união, organização e luta é que poderíamos superar aquela situação”, projetava o sem-terra.
Não à toa, o acampamento havia sido batizado de Carlos Marighela. Como o revolucionário, os trabalhadores depositaram na resistência o caminho para a liberdade que, nesse caso, era a própria liberdade da terra e da possibilidade de nela produzir.
Solidariedade
Na tarde ensolarada daquela feliz sexta-feira, ainda havia espaço reservado para homenagear aqueles que se solidarizaram diretamente com a luta dos camponeses do Sergipe. Na modesta mesa composta para receber algumas autoridades, dona Geni Florentina Alencar foi convidada para ser aplaudida efusivamente. Em 1985, 213 famílias de sem-terra haviam sido expulsas de uma ocupação na fazenda Barra da Onça, em Poço Redondo, mas continuaram sendo perseguidas pela polícia, mesmo ocupando a beira da estrada. Sem ter para onde ir, coube ao marido de dona Geni, já falecido, tomar uma decisão seminal para a vida daqueles trabalhadores. “Estou em casa preparando a comida”, narra dona Geni, “quando meu marido me chega dizendo: ‘fiz uma coisa sem sua autoridade. O MST está aqui em nosso terreno’”. Pois é para eles ficarem aqui mesmo, responderia de imediato a agricultora que, dali em diante, teria resistido corajosamente às diversas ameaças de retaliações em razão da solidariedade com a vida daqueles camponeses.
Roberto Araújo, que tinha sete anos na época, não consegue conter as lágrimas ao apresentar dona Geni: “Ela salvou a vida de muita gente e ajudou na continuidade da luta, pois muitos que lá estiveram hoje estão aqui comemorando a criação do assentamento Adão Pretto”, exclamou.
Por Reforma Agrária
O assentamento que será criado na fazenda Guia já nascerá grande. Está entre as três maiores desapropriações do ano, figurando como o 13º maior do estado. “Hoje aqui foi cumprida, de fato, a Constituição Federal, pois terra deve ser destinada a quem verdadeiramente precisa trabalhar e produzir”, destacou a procuradora-geral do Incra, Gilda Diniz dos Santos.
O batismo também já foi feito. O futuro assentamento Adão Pretto, com capacidade para abrigar mais de 90 famílias, é um homenagem a memória do deputado gaúcho, fundador do MST e um importante defensor da reforma agrária no Brasil. Adão Preto, lutador social, imortaliza também a trajetória de luta dos camponeses sergipanos.
A obtenção da fazenda Guia consolida ainda um período de importantes desapropriações de terras no estado. Em novembro, o Incra já havia tomado posse da fazenda Sabão, em Indiaroba, em uma área de mais de 1,5 mil hectares. Considerando o tamanho de Sergipe, são duas grandes áreas destinadas a reforma agrária nos últimos dois meses, beneficiando mais de 200 famílias. No total, Sergipe possui hoje 184 projetos de assentamento onde vivem 8.866 famílias.
Sobre o futuro? Dona Josélia sorri com a pergunta, sabendo que agora poderá por em prática tudo o que sempre sonhou: “Vamos plantar arroz, milho e feijão para o povo da cidade, que precisa dos alimentos da roça”.
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