terça-feira, 19 de janeiro de 2010

ECONOMIA - Brasil consome no presente e esquece longo prazo.

Márcio Holland: Mais um alerta para o governo Lula

O grande perigo da economia brasileira não é crescer a taxas próximas a 6% ao ano, mas sustentar este crescimento numa sociedade de curto prazo, que consome no presente e desconsidera o longo prazo.

Por João Villaverde, no jornal Valor Econômico, via Vermelho, via
Milton Hayek

Esta é a avaliação de Márcio Holland, professor da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP), que considera o ano de 2010 como a grande oportunidade para se realizar um debate acerca dos rumos da economia. Desde a década de 1980, diz Holland, que as condições econômicas não são tão favoráveis. “Nossa inflação está controlada, temos uma sociedade democrática, boa capacidade de diálogo interno e uma situação em que, independentemente de quem ganhar as eleições, a política econômica será parecida com a praticada hoje. São essas condições que nos dão tranquilidade para discutir sobre nossos rumos e escolhas.”

Doutor pela Unicamp, com pós-doutorado em Economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley, EUA), Holland critica a “primarização” da pauta exportadora, mais concentrada em produtos primários que em bens industriais de média e alta tecnologia. Para ele, os manufaturados de maior valor agregado perdem espaço também no mercado interno. “Não consumimos praticamente nada de tecnologia nacional. Pen drives, celulares, quase tudo já chega pronto, restando apenas ser montado”.

O economista avalia positivamente o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que deixa o Palácio do Planalto no fim do ano. Mas defende um debate sobre os rumos do crescimento sustentado no consumo das famílias e na diminuição do saldo comercial.

Abaixo, os principais trechos da entrevista:

Valor: Um crescimento forte em 2010, próximo a 6%, o preocupa?

Márcio Holland: É perfeitamente possível que a economia brasileira cresça a taxas superiores a 5% ou 5,5% ao ano nos próximos três ou quatro anos sem gerar pressões inflacionárias. Podemos crescer mesmo com déficit em conta corrente aumentando, com juros altos, câmbio valorizado, com grande carga tributária, aumento da dívida pública e dos gastos correntes e alguma melhora nos investimentos. Quer dizer, podemos manter este modelo de crescimento, com sucesso, no curto e médio prazos sem causar problemas de inflação, até porque os juros são altos e serão elevados, se for preciso. O problema não é crescer fortemente.

Valor: Qual é o problema então?

Holland: A questão está em crescer por muito tempo com este modelo. Temos de nos perguntar: que tipo de economia nós queremos ser? Se pegarmos dados do FMI, veremos que na década de 1950 nossas exportações representavam 2% do total exportado no mundo. Atualmente, estamos com 1%. Se for isso que queremos manter, então não há problema, basta tocar o jogo como está e continuaremos com a ilusão de que somos uma grande potência industrial.

Valor: Mas antes da crise o Brasil não alcançava recordes de exportações, em volume e quantidade?

Holland: Nossas exportações estão cada vez mais baseadas em produtos primários. No passado, 40 anos atrás, os bens primários e as manufaturas intensivas em produtos primários, como suco de laranja, por exemplo, respondiam por 75% de nossa pauta exportadora. Depois do PND II [Plano Nacional de Desenvolvimento II], na segunda metade dos anos 1970, começamos a alterar esse modelo.

Os primários chegaram a representar 44% de nossas exportações totais, em 2005, mas desde então eles têm aumentado sua participação. Hoje, representam cerca de 54% e estão crescendo. Nossa situação é até boa quando comparada com os outros países da América Latina, onde os primários respondem por quase 80% das exportações.

Valor: Mas parte das exportações de manufaturados não têm sido desviada para o mercado doméstico em expansão?


Holland: Sem dúvida. A direção do comércio exterior brasileiro mudou. Em 1990, pouco mais de 24% de nossas vendas externas eram para os Estados Unidos, onde a demanda é predominantemente por bens manufaturados. Em 2009, as exportações para os EUA bateram em 12%. No mesmo período, passamos de 1,98% exportado à China para 12,5% no ano passado. O grande problema está aí: 85% do que vendemos para os chineses são produtos primários, com pouquíssimo valor agregado. Estamos reposicionando nossas exportações para a China e para nosso mercado doméstico.

Valor: O mercado doméstico não garante o crescimento do setor industrial?

Holland: Mesmo para o mercado interno, boa parte das manufaturas é importada, fazemos apenas o trabalho de acabamento. Não consumimos praticamente nada de tecnologia nacional. Pen drives, celulares, quase tudo já chega pronto, restando apenas ser montado. Claro, os ganhos de qualidade industrial nos últimos anos é indiscutível. Mas quando se olha perante o resto do mundo, percebemos que estamos aquém do que poderíamos fazer.

Valor: Este é o nosso modelo de crescimento?


Holland: Vivemos o aumento da classe C brasileira, que durante a era Lula passou a constituir a maior parcela da população. Temos uma nova classe média, ganhando mais e consumindo mais, com carteira assinada e maior acesso à crédito. É uma sociedade acostumada com reajustes crescentes do salário mínimo, que cresceu 75% de 1990 até o ano passado. Uma classe que está pronta para consumir agora, no presente, daí essa explosão do consumo varejista. Nosso crescimento elevado é sustentado por essa nova classe média.

Valor: O crescimento forte do PIB, baseado no consumo das famílias, se sustenta?

Holland: Trata-se de uma sociedade de curto prazo, o que é um perigo para o longo prazo. Fazemos um discurso de grande potência internacional, de líder do G-20, mas estamos exportamos menos produtos manufaturados intensivos em tecnologia. Nos últimos dez anos, segundo dados do IBGE, os investimentos da indústria de média e alta intensidade tecnológica aumentaram 22%.

Já os investimentos em manufaturas minerais e agrícolas, de baixo valor agregado, cresceram 490%. As pessoas falam que os produtos naturais podem carregar tecnologia, e é verdade. Mas é possível comparar a tecnologia de uma máquina que corta cana a de uma câmera fotográfica ou de um chip de computador? É incomparável. E é este o padrão de sociedade que se perpetua, do Brasil virando uma grande fazenda, onde nosso exemplo de país é a Austrália.

Valor: Qual país poderíamos usar como exemplo, então?


Holland: Sou cético quanto a elegermos um paradigma. Não se repetem experiências como a China, que cresce fortemente há anos. A questão do câmbio, por exemplo, muito criticada como empecilho, não pode ser central no debate macroeconômico brasileiro.

Valor: Mas a moeda não está muito valorizada?

Holland: O câmbio não é o único fator a ser resolvido. A apreciação do real é um problema, sem dúvida. Mas o câmbio não resolve sozinho um problema estrutural, de modelo de crescimento. Entre 2005 e 2008, o real foi a moeda que mais se valorizou no mundo, tendo se apreciado 25% em relação ao dólar. Na outra ponta, África do Sul e Japão, tiveram, no mesmo período, as maiores desvalorizações, de 22% e 20% respectivamente. E o Brasil cresceu mais do que eles no período.

Quer dizer, dentro deste modelo, que privilegia o consumo interno, é plenamente possível crescer com câmbio valorizado. Talvez o que essa sociedade queira do câmbio valorizado sejam os produtos do exterior baratos. Não importa o custo do crédito ou quanto vale a taxa de juros básica da economia, porque ninguém se preocupa com isso. Tivemos uma demanda reprimida por mais de 20 anos sem crescimento, entre 1980 e o começo da década de 2000. Quando a sociedade passa a dispor dessa oportunidade de consumo, não vai abrir mão. Nenhum candidato à presidência fará discurso contra isso.

Valor: Como alterar a rota?

Holland: Não será por meio de políticas intervencionistas ou choques, como ocorria no passado. É preciso um plano estratégico que agregue diferentes setores da sociedade para pensar o médio e longo prazos. Politicamente, isso implica mobilizar o Congresso, as assembleias e câmaras para uma reforma política, o que obviamente vai exigir uma discussão popular. Não podemos perpetuar um modelo de crescimento que desconsidera o futuro. Para isso, precisamos de políticos esclarecidos, especialmente em tempos de mudanças climáticas e novas demandas sociais.

Valor: O aumento do déficit em conta corrente, que em proporção do PIB deve dobrar neste ano, alcançando 3%, o preocupa?


Holland: O déficit é financiável, esse que é o problema. Qual investidor, independentemente de sua natureza, não quer um mercado como o nosso? Teremos mais investimentos estrangeiros diretos com certeza. Mas esse tipo de investimento tem impacto negativo na conta corrente, uma vez que ele implica insumos importados e aumento nas remessas de lucros e dividendos no futuro. É amor e ódio, porque amplia nosso crescimento, mas também nosso déficit com o exterior.

Valor: Os EUA dos anos 1990, que cresceram com elevados déficits em conta corrente, moeda valorizada e forte consumo doméstico, poderiam ser nosso exemplo?

Holland: Os Estados Unidos cresceram dessa forma como sociedade desenvolvida. E o que ocorreu décadas mais tarde? Não vai dar certo. Se não deu certo com os ricos, não tem como dar certo com os pobres.

Valor: As eleições deste ano poderão ser um começo?

Holland: Vivemos o grande momento. Desde os anos 1980 não tivemos uma oportunidade para se refletir a economia brasileira como temos agora. Nossa inflação está controlada, temos uma sociedade democrática, boa capacidade de diálogo interno e uma situação em que, independentemente de quem ganhe as eleições, a política econômica será parecida com a praticada hoje. São essas condições que nos dão tranquilidade para discutir sobre nossos rumos e escolhas.

Valor: O que o sr. proporia como primeira pauta de debate eleitoral?

Holland: Não podemos perpetuar essa discussão centrada em Copom, metas de inflação e taxas de juros. Isso é algo errado e já deveríamos ter superado. Precisamos discutir se queremos continuar crescendo como uma economia primária exportadora.

Valor: Que saldo você faz do governo Lula?

Holland: Analisando com responsabilidade histórica, o saldo do governo é extremamente positivo. Imaginávamos, em 2002, uma nova Venezuela, que romperia contratos. Mas houve muita responsabilidade política. Tivemos grandes avanços na microestrutura, com melhora na distribuição de renda, formalização da mão de obra, aumento do emprego. Amadurecemos como sociedade. Estamos no ponto necessário para fazer uma grande discussão, sobre se vamos perpetuar o crescimento como está ocorrendo ou se mudaremos de rumo.

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