quinta-feira, 12 de junho de 2008

CUBA - Para Dirceu, desbloqueio é imprescindível.

Entrevista publicada na Folha de São Paulo.

Ex-ministro diz que país precisa manter independência, liberar o mercado agrícola e o trabalho autônomo.
Priscila Pastre-Rossi.

Colega de Fidel Castro, 81, o ex-deputado e ex-ministro da Casa Civil (cassado em 2005, após suspeitas de envolvimento no esquema do mensalão) José Dirceu, 62, não passa muito tempo sem ir a Cuba, para onde foi depois de ter sido preso pela ditadura militar. Boa parte do período do exílio na ilha-de 1969 a 1979- ele passou no Brasil, vivendo clandestinamente. Mas os anos vividos em Cuba foram o bastante para conhecer pessoalmente o ditador Fidel Castro, estudar e trabalhar. Dirceu passou meses em treinamento militar, foi funcionário de gráfica e projetista de cinema em Havana. Os detalhes da sua história em Cuba, ele guarda para revelar em um livro, ainda só nos planos. Em entrevista à Folha, avalia a transição do poder para Raúl Castro e indica lugares emblemáticos na ilha.
FOLHA ] Do tempo que o senhor morou em Havana, poderia citar um lugar marcante e que não deve ficar de fora de um roteiro na cidade?
[ ZÉ DIRCEU ] Sem dúvida, o hotel Nacional [fundado em 1930 e, há dez anos, declarado monumento nacional]. É um dos prédios mais bonitos de Havana e fica bem no centro. Vale fazer uma refeição lá. Eu ia pouco porque a minha vida não permitia, eu não tinha tempo. Outra coisa que não pode faltar é passear no Malecón, pelas ruas de Havana Velha, que têm muitos lugares intocados. Pelo menos para quem gosta da história de Havana...Ainda mais agora, que ela está todinha restaurada pela Habaguanex [estatal ligada ao patrimônio histórico da cidade, que vem transformando prédios antigos em hotéis, restaurantes e lojas]. Hoje, Havana tem quase 20 hotéis e vários resorts. Mudou completamente.[ FOLHA ] As agências de turismo colocam cada vez mais Cuba em destaque. Seria uma "corrida a Cuba" de quem acha que o socialismo pode acabar na ilha? Um clima de "preciso ver antes que acabe?"
[ ZÉ DIRCEU ] Acho que não. O que existe é um interesse natural tanto de quem apóia quanto de quem não apóia o sistema implantado no país. Mas acho que é mais um interesse histórico. O lugar está intocado há 50 anos. É uma coisa maravilhosa.Você tem lá cidades históricas, como Santiago de Cuba - que acho tão maravilhosa quanto Salvador -, praias como Varadero. E não é uma viagem cara. Há hotéis em várias categorias de preço. Há turismo de pesca, passeio de barco, ecológico... E é bem organizado. Tem hotel de quatro, cinco estrelas, como em qualquer país do mundo.[ FOLHA ] O senhor fez uma relação entre Santiago de Cuba e Salvador. Há muito em comum nas culturas brasileira e cubana?
[ ZÉ DIRCEU ] Tenho um amigo baiano que brinca que Santiago de Cuba faz parte da Bahia! Nós temos a mesma origem afro. Os cubanos foram colonizados pelos espanhóis. Nós, pelos portugueses. Mas acredito que essa identidade étnica, racial, é muito forte. A comida cubana é uma mistura da mineira com a baiana. Ué... É arroz com feijão, é carne de porco, é mandioca...É a nossa comida. É o frango que nós comemos, a cabidela. E tem a macumba, né? O candomblé. A "santeria", como eles chamam. Se um dia você vir fotos dos guerrilheiros, pode observar: todos traziam amuletos.[ FOLHA ] Há liberdade religiosa?[ ZÉ DIRCEU ] Total. Cuba soube preservar sua identidade cultural.[ FOLHA ] Qual é a sua bebida preferida em Cuba? Mojito ou daiquiri?[ ZÉ DIRCEU ] (Rindo) Pouca gente sabe disso, mas até os 35 anos eu quase não bebia nada. Mas a bebida que eu aprecio até hoje é o rum. Falando nisso, os hotéis de Cuba preparam muita caipirinha. Só não pode falar "pinga" porque lá tem outro significado (risos) [é sinônimo de pênis].Mas pode pedir pra preparar com cachaça, aguardente, que eles sabem o que é. Tem uma cachaça razoável que é produzida lá. Na minha última visita a Cuba, como o bar estava sem "erva buena" [hortelã, para o mojito], experimentei a caipirinha. Essa nossa identidade cultural é muito forte. Eles têm uma paixão pelo Brasil.[ FOLHA ] Quando vai para Havana, onde gosta de se hospedar?[ ZÉ DIRCEU ] O ideal é mesmo o hotel Nacional, mas também indico o Meliá Havana . Agora, tem uns hotéis de oito, dez quartos, em uns prédios antigos, com pátio espanhol, bem lá dentro de Havana Velha, que valem a pena.[ FOLHA ] Um bom passeio deve ter quantos dias, no mínimo?[ ZÉ DIRCEU ] Três dias em Havana e três em Varadero. Ah, vale conhecer Santiago também.[ FOLHA ] Em uma entrevista à "Playboy" em 1985, Fidel já dizia que seu sucessor seria o irmão Raúl. A transição ocorreu no tempo certo? [ ZÉ DIRCEU ] Veja bem, o Fidel já tinha passado o governo para o Raúl desde que ele caiu [referindo-se à queda que Fidel sofreu em 2004, quando quebrou um dos ossos do joelho esquerdo e feriu um braço]. Agora ele passou pela segunda vez.[ FOLHA ] Qual será o maior desafio?[ ZÉ DIRCEU ] A idéia dos Estados Unidos de dominar Cuba é real, é um fato, entendeu? Os EUA fazem represália a países e empresas que façam negócios com Cuba e impedem investimentos em energia, gás e petróleo.Então, a primeira coisa que importa para Cuba é manter a independência. Depois vêm as reformas. É preciso liberar o mercado agrícola, melhorar os salários, permitir a prestação de serviços por particulares e o trabalho autônomo. Isso tudo vai ter reflexo no turismo e na prestação de serviços. E tem outra coisa... Esse congresso GLS foi muito importante [referindo-se a uma espécie de "parada gay" promovida em Havana no último mês de maio]. Imagina o avanço que isso representa para uma sociedade que era tão machista.[ FOLHA ] Abrir mais o país ao continente ameaça o modelo socialista?
[ ZÉ DIRCEU ] Se vai dar para manter o regime ou não, não se pode dizer. A minha avaliação é que quanto mais eles mudarem, mais eles vão poder manter as coisas boas que eles conquistaram: uma sociedade igualitária, segurança social com baixíssima violência e baixíssima miséria. Tudo isso apesar da escassez. A sociedade tem dificuldades de acesso a bens e insumos.[ FOLHA ] Em seu blog, o senhor ressalta esses pontos e outros que considera conquistas do governo cubano. Em resposta, a maioria dos seus leitores postam comentários anticastristas. A que o senhor acha que se deve essa antipatia?[ ZÉ DIRCEU ] Muitas pessoas desconhecem as conquistas da revolução. É evidente que a nossa experiência com a democracia resiste ao fato de Cuba ter um partido único e a falta de eleições. Mas não se pode esquecer das conquistas sociais. Não estou dizendo que Cuba não seja um país deficitário. Tem problemas, não ignoro isso.[ FOLHA ] E qual é o maior problema?[ ZÉ DIRCEU ] A estatização dos serviços, na década de 60, foi um grande erro. Devia ter trabalho autônomo em Cuba. As opções eram poucas no cenário da Guerra Fria, mas esse problema deveria ter sido revisto.[ FOLHA ] Qual é o papel do Brasil nessa fase de transição de Cuba?[ ZÉ DIRCEU ] Acho que o Brasil tem um papel muito importante, com a Argentina e a Venezuela, para investir, aumentar o comércio, negociar. E os EUA têm de suspender o bloqueio. Porque não há nenhuma razão para ele existir. Tem de voltar a migração legal e liberar as remessas de recursos. O Partido Democrata tem isso como política oficial. Todo mundo está investindo em Cuba. Só os americanos que não. Você sabe que Cuba já compra US$ 500 mil dos EUA por ano. É uma legislação especial, uma linha de crédito, mas também é para dar vazão ao excesso de produção.A maioria não quer mais o embargo, nem a maior parte dos cubanos nos EUA. Eles querem separar as questões políticas da questão das relações.[ FOLHA ] O senhor esteve com Fidel antes de ele ficar doente. Como é sua relação com ele?[ ZÉ DIRCEU ] Minha relação com Fidel começou por meio do Guevara [referindo-se ao intelectual e fundador do Instituto de Cinema Cubano Alfredo Guevara], que não tem nada a ver com o Che. Eu e Guevara nos conhecemos em 68, no Brasil, e ele me esperou em Cuba. Também já encontrei Fidel como integrante do governo e como dirigente do PT. Sou um devedor, jamais vou deixar de ser solidário e de apoiar Cuba.[ FOLHA ] Poderia nos contar seu momento mais marcante naquele país? [ ZÉ DIRCEU ] Um dos momentos mais importantes foi a visita do presidente Lula, que acompanhei como ministro-chefe da Casa Civil [lembrando da ida do presidente à ilha em 2003, quando a equipe foi recebida por Fidel no aeroporto]. Saiu na imprensa que eu até chorei.Me emocionei pela recordação e memória de meus companheiros que morreram, por eles não estarem lá para ver.[ FOLHA ] Atualmente o senhor vai lá a passeio ou para algum trabalho?[ ZÉ DIRCEU ] Não fico muito tempo sem ir a Cuba. Mas agora vou mais para passear. Estive lá recentemente com o Fernando Morais, para pesquisar. Pensamos em fazer uma biografia. Mas ainda não sabemos no que vai resultar ao certo.Frases José Dirceu:Temos a mesma origem afro. A comida cubana é uma mistura da mineira com a baiana. É arroz com feijão, é carne de porco, é mandioca. E tem a macumba, o candomblé. A "santeria'.Os hotéis de Cuba preparam muita caipirinha. Só não pode falar "pinga" porque lá tem outro significado (risos). Mas pode pedir pra preparar com cachaça, aguardente, que eles sabem o que é. Tem uma cachaça razoável produzida lá.É preciso liberar o mercado agrícola, melhorar os salários, permitir a prestação de serviços por particulares e o trabalho autônomo. Isso tudo vai ter reflexo no turismo e na prestação de serviços para a populaçãoA estatização dos serviços foi um grande erro. Foi feito na década de 60. Devia ter trabalho autônomo em Cuba. As opções eram poucas no cenário da Guerra Fria, mas isso deveria ter sido revistoAcho que o Brasil tem um papel muito importante, para investir, aumentar o comércio, negociar. E os EUA têm de suspender o bloqueio. Porque não há nenhuma razão pra ele existir.

Nenhum comentário: