Crime de lesa esperança.
Todos os povos procedem a revisões de seus muitos períodos históricos. Rever o passado com os olhos do presente. É prática sadia. Permite afastar inúmeras conclusões tiradas sob efeito de emoções imediatas.
O calor dos debates e as circunstâncias presentes, quando os acontecimentos ocorrem, não permitem a captação plena das personalidades em cena.
As figuras carismáticas e os discursos inflamados contra erros políticos e administrativos, em determinados momentos, impedem reflexão. Todas as pessoas se tornam heróis e figuras símbolo.
Durante vários anos, particularmente no período pós 1968, surgiram na cena política brasileira personagens que, pela sua audácia e coragem cívica, mereceram o respeito de toda a cidadania.
Não importava o ângulo de visão do observador. Este sempre respeitava aquelas figuras impávidas que, com a palavra, ações e atitudes, se colocavam contra o regime de exceção implantado no país.
Criaram uma literatura expressiva. Uma música de combate duradoura. Cenas teatrais emocionantes. Conferiram exemplos de persistência e abnegação. Foram exemplo para milhões de jovens e adultos.
Alguns sofreram exílio e tortura. Outros a inaceitável perda da nacionalidade, mediante a imposição da hedionda pena de banimento. Tornaram-se apátridas por desejarem uma pátria respeitada.
Tantos são os nomes de oposição neste período da História que, arrolá-los, seria tarefa árdua. Desnecessária, além do mais. Alguns poderiam ser esquecidos. Outros comporem a galeria dos sem méritos.
Quem viveu os últimos quarenta anos cruzou, muitas vezes, com estes atores políticos de emblemáticos dos movimentos de época. A presença destas personagens políticas impunha respeito. Eram heróis vivos.
Quantas vezes se ouviram exposições arrebatadas. Cuidadosamente proferidas em pequenos recintos. Ou então em debates realizados nos interior de aparelhos clandestinos.
Era a consciência profunda da cidadania que se pronunciava. Merecia silêncio e reflexão. Mulheres e homens expunham-se para evitar que os valores da liberdade e da participação fenecessem.
Toda esta gente - mesmo que eventualmente esquecida - integra o patrimônio cívico de nossa sociedade. Soube resistir e oferecer o melhor de suas consciências para a preservação de valores cívicos maiores.
Foi assim nos anos mais amargos. Conservou-se, assim, quando se iniciou o processo de abertura democrática. Timidamente as primeiras vozes surgiram em público e expuseram-se perante grupos sociais.
Depois, foram os movimentos cívicos de maior extensão, como o da Anistia e das Diretas Já. Nas praças, as vozes antes clandestinas tornaram-se públicas. Atingiram multidões mediante o uso paulatino do rádio e da televisão.
Os primeiros debates, por meio da mídia eletrônica, causaram perplexicidade. As audiências eram expressivas e as exibições ao vivo, o que impedia edições manipuladas.
Depois vieram as primeiras eleições diretas para governador. Uma vibração incontida. Os perseguidos de ontem tornaram-se candidatos. Foram os favoritos do voto popular.
Nos primeiros pleitos, a explosão de votos para as oposições ao regime autoritário mostrou-se avassaladora. Surpreendeu os analistas. Levou intranqüilidade ao sistema de poder.
A cada pleito mais favoráveis às oposições se mostravam os resultados eleitorais. Aqueles que haviam lutado pelo retorno à democracia eram os vencedores. O povo saudava os clandestinos de ontem com o voto. Aclamados como heróis.
O tempo passou. Os quadros administrativos foram preenchidos pelos vencedores de eleições livres. Como acontece em qualquer democracia. As esperanças populares eram intensas. As expectativas imensas.
A tragédia aconteceu. Com o passar dos anos, muitos daqueles combatentes da democracia decepcionaram. Passaram a figurar nos espaços policiais dos veículos de comunicação.
O sentimento pequeno burguês de posse e propriedade mostrou-se mais forte. As ideologias e as doutrinas foram soterradas pela volúpia de poder. A ganância superou princípios e ideais.
A perda é imensa. A frustração da cidadania atinge a perplexidade. Os impolutos das praças públicas tornaram-se peculatários, no interior dos gabinetes governamentais, ou corruptos no cotidiano.
A sociedade não merecia esta agressão. Os falsos heróis não podiam agredir as esperanças tão fortemente lançadas sobre seus ombros. Praticaram o pior dos crimes: o de lesa esperança.
Cláudio Lembo é advogado e professor universitário. Foi vice-governador do Estado de São Paulo de 2003 a março de 2006, quando assumiu como governador.
Fonte: Terra Magazine.
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