quinta-feira, 5 de junho de 2008

MEIO AMBIENTE- Lula e os novos missionários.

Haja floresta tropical para deglutir os milhões de toneladas de gás carbônico que são jogados anualmente pelos automóveis – esses sim, os vilões da história, e sem missionários suficientes, pelo menos no momento, para amaldiçoá-los enquanto ícone de um estilo preferencial e modelar de vida.
Biocombustíveis, etanol, Lula, Brasil, biodiversidade, floresta tropical, etc. Esses são assuntos que me lembra metáfora imortal de meu colega José Peralta, no curso de Letras da USP: “é uma faca de muitos gumes”.Mas o mais importante nesse rol está no etc. Ou seja, no que está sendo posto de lado. Pelo menos nas manchetes, nas declarações, e assim vai se impondo nos corações e mentes a serem conquistados.No passado nem tão remoto, o colonialismo e seu sucedâneo aperfeiçoado, o imperialismo, ia conquistando regiões, continentes, povos. E saqueando tudo. Ao seu lado, no seu bojo, contra ou a favor da maré, ia o trabalho missionário, “saqueando” as almas. Pus aquele “saqueando” entre aspas porque a palavra é muito forte. E merece que se façam algumas considerações. Em primeiro lugar, os missionários não achavam que estavam saqueando as almas. Ao contrário, achavam que estavam salvando-as. Eram caridosos. Um dos sermões mais brilhantes do Padre Vieira, dedicado à Virgem do Rosário, de predileção dos escravos na Bahia, é aquele em que ele justifica a escravidão porque só assim as almas dos “etíopes” (assim se dizia no século XVII) seriam salvas. Este sermão também é um dos mais contundentes na denúncia dos maus tratos impostos aos escravos pelos senhores. Vieira chega a dizer – perante a platéia de escravos e senhores que assistiam à prédica – que se aqueles estão salvando suas almas, estes as estão seguramente perdendo pelo modo bárbaro com que tratam seus trabalhadores.Ou seja, os missionários nem com tudo e nem sempre concordavam com o que viam. Houve casos heróicos, como os dos jesuítas que se bateram ao lado dos guaranis, contra os exércitos de Espanha, Portugal, contra a Ordem e contra a Santa Sé, nas missões dos Sete Povos, todos execrados no poema (brilhante, por sinal, leitura obrigatória) “O Uraguai”, de Basílio da Gama, através do personagem Lourenço Balda, que, parece, existiu mesmo. O grande Toussaint L’Ouverture, herói do Haiti, teve a cabeça feita não por algum enciclopedista francês, mas pelo livro sobre as Índias Ocidentais de um ex-padre francês, como consta no livro também imperdível de CLR James, “Os jacobinos negros” (Boitempo Editorial).Houve missionários que deram a vida para lutarem contra os desmandos do colonial-imperialismo, e isso deve ser respeitado. Mas no macro-sentido, houve um saque de almas, melhores que fossem as intenções. Por quê?Porque naqueles séculos o trabalho missionário, e depois os “missionários das modernidades” jogaram os povos e as culturas que iam conquistando para o passado. Eles povos e elas culturas eram um “pedaço do passado”, cujas almas deveriam ser trazidas para “o presente”, para que assim pudessem ter algum “futuro”. Ou seja, os “povos do passado”, por serem intrinsecamente anacrônicos (muitos jesuítas viam os nativos das Américas como adâmicos, isto é, no estado em que Adão estava ao ser expulso do paraíso), não tinham condições de administrar a própria vida, precisavam de tutela. Todos: seus caciques, seus xamãs, seus velhos, homens, mulheres e crianças. Não tinham condição de administrar seu futuro. Só o futuro? Não. O passado também.Porque junto ou depois dos missionários a corte de arqueólogos, antropólogos, historiadores, etc., saqueou o passado desses povos. Alguns por serem declarados “sem qualquer passado”, já que viviam nele, num passado da humanidade. Outros, por serem incapazes de cuidar do seu passado, e assim a sua “preservação” consistiu em “transferi-los” para os museus do “primeiro mundo”, onde são o gáudio dos visitantes. Na verdade, eles, esses povos, tiveram seu futuro saqueado, por serem declarados ineptos para as decisões.Hoje há algo análogo acontecendo. O presidente Lula veio a Roma, para o encontro da FAO sobre a crise mundial da fome, defender o etanol brasileiro. Só o etanol? Não. Ele veio defender a soberania brasileira. Só a brasileira? Não, por tabela, o conceito universal de soberania nacional como aplicável a todos os povos e nações, desde que respeitada a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, por exemplo, nem que seja como utopia a ser trabalhada. Mas muitos ambientalistas, e as declarações foram contundentes neste sentido durante a realização, na segunda quinzena de maio, da COP9, a IX Conferência da ONU sobre a Diversidade Biológica em Bonn, antiga capital da Alemanha Ocidental, erguem o dedo, ao lado de outros oficiais, execrando o Brasil Lula e tudo mais, para defender a “rain forest”, como as florestas tropicais são internacionalmente chamadas. E lamentam que o Brasil não se deixe guiar por balizas internacionalmente definidas.Há alguns graves equívocos nesta maneira de se conduzir em público – na internete, nas manchetes, onde for, se é que a intenção é levar o governo brasileiro, os brasileiros de um modo geral, a algum tipo de posição. É que esse modo de situar o problema desqualifica um governo legitimamente eleito como interlocutor. Parece que se define que, como a Amazônia (por exemplo) é um patrimônio mundial (e é), sua administração não pode ficar ao encargo desses “povos não confiáveis” e seus representantes legítimos. Há os ilegítimos, como se fez, depois de legitimamente lutar pela independência de seu país e por sua consolidação, Robert Mugabe do Zimbábwe. Mas até mesmo nas críticas que se fazem a ele, por querer se perpetuar no poder, de vez em quando aparece o travo de que seria bom se aquele pedaço de mundo voltasse a se chamar Rodésia. Não adianta querer lutar por algo brasileiro dizendo que não é brasileiro e desqualificando o país e o seu governo legítimo como interlocutor. Não é por aí, nem dentro nem fora do Brasil. Mas é o que inadvertidamente terminam fazendo essas declarações, sempre alardeadas com grande pompa e circunstância, de que o Brasil – e os brasileiros – não estão (e não estarão nunca) em condições de cuidar do problema e que têm soberania para tomar decisões. Esse é um problema de biodiversidade política, tanto quanto a floresta é um problema e uma solução para a biodiversidade em escala mundial.Um outro efeito perverso dessa autêntica dedação que vem sendo imposta ao Brasil, ao etanol da cana de açúcar e aos biocombustíveis de modo geral é o de estar jogando para debaixo do tapete, nas vitrines do mundo, o problema do mundo baseado nos combustíveis fósseis. O problema persiste. O aquecimento global vai devastando o planeta. Aqui mesmo nesta Berlim primaveril, onde o verão sequer começou, a atmosfera vem apresentado índices de umidade semelhante aos de Brasília de maio a setembro. E as temperaturas andam lá por cima dos 30 graus, a tal ponto que as aulas chegaram a ser suspensas.Até o ano passado, o petróleo fora eleito como o grande vilão da história. Hoje quase não se fala mais no assunto. Pelo menos não tanto quanto se deveria.Durante o encontro em Bonn, a primeira ministra alemã Ângela Merckel anunciou mais 500 milhões de euros até 2012 para a preservação das florestas tropicais, sob a forma de subsídios para os países que as preservarem. E sinalizou que a Alemanha deveria dar mais 500 milhões por ano a partir de 2013 para essa finalidade. O gesto – importante, sem dúvida – foi saudado como um dos únicos “avanços” da conferência, com menções de “já que o Brasil se obstinou em não aceitar a definição internacional de critérios para a preservação da Amazônia”. Ao mesmo tempo, vai indo para a vala comum do oblivion a discussão sobre a indústria automobilística, a emissão de CO2 pelos carros, a loucura que é dedar o biocombustível e de repente esquecer a questão do combustível fóssil – mas não apenas dele, mas sim do mundo absurdo de consumo e consumismo individualista que o capitalismo erigiu como forma modelar de vida, condenando todas as outras a uma forma de “passado” da humanidade, inclusive agora o socialismo que desabou recentemente. Aí está o X da questão. E o Y e o Z, talvez o alfabeto inteiro.Sim, é verdade, e o governo brasileiro tem que ter consciência disso, de nada vai adiantar produzir etanol de cana se for para potenciar a pobreza e a exploração dos canavieiros, que não anda tão distante quanto deveria do mundo descrito pelo padre Vieira. Mas também se deve ter consciência de que de nada vai adiantar fazer planos internacionais para preservar a “rain forest” se não se discutir e remodelar o padrão de consumo em escala mundial, o que inclui a Europa, a América do Norte, o Japão e a Austrália.Há bons sinais, entretanto. Declarações de autoridades da ONU e da FAO (ver a entrevista de Alexander Muller, da FAO, à revista Der Spiegel (www.spiegel.de/international) vêm dando a entender que é necessário estabelecer distinções e diferenças, e que o caso da produção de etanol a partir da cana de açúcar pelo Brasil não pode ser confundido com o da sua produção a partir do milho nos Estados Unidos e na Europa, bem como também não se pode esquecer que é urgente a pesquisa de fontes alternativas de energia, nem de que o consumo de derivados do petróleo não pode ser negligenciado como fator decisivo na alta dos preços dos alimentos.Mas há outros sinais desalentadores. Na última discussão do parlamento federal alemão sobre emissões de gás carbônico, pouco mais de dez por cento dos trezentos e tantos representantes compareceram. Ao discursar, o líder do Partido Verde teve de pedir aos seus próprios correligionários que prestassem atenção ao que ele estava dizendo, pois era importante. O lobby da indústria automobilística agradece. E haja floresta tropical para deglutir os milhões de toneladas de gás carbônico que são jogados anualmente pelos automóveis – esses sim, os vilões da história, e sem missionários suficientes, pelo menos no momento, para amaldiçoá-los enquanto ícone de um estilo preferencial e modelar de vida.
Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior.

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