Em relação à punição de torturadores, o Brasil está muito aquém de países latino-americanos que passaram por ditaduras.
Tatiana Merlino
Enquanto no Brasil a reabertura da discussão sobre a possível punição de torturadores responsáveis por crimes durante a ditadura militar causa divergências dentro do governo federal e reações violentas dos militares, alguns dos países vizinhos vem dando o exemplo de que crimes de lesa humanidade são imprescritíveis e devem ser punidos.
Argentina, Chile e Uruguai estão colocando na cadeia agentes do Estado responsáveis por mortes, seqüestros e tortura. O Brasil, que foi responsável por exportar técnicas de tortura para demais ditaduras latino-americanas, não conseguiu responsabilizar agentes do Estado nem na área cível, quanto mais penalmente.
De acordo com o juiz espanhol Garzón, conhecido por ordenar a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet, em 1998, em Londres, Inglaterra, crimes de lesa-humanidade cometidos por agentes públicos durante a ditadura são de “impossível prescrição”, e nesses casos, a anistia não é passível de aplicação.
Garzón disse estar de acordo com a doutrina da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que prevê que as leis de anistia não podem impedir a investigação de crimes contra a humanidade.
Anulação de leis
Um dos exemplos dados pelo juiz espanhol é o da Argentina. Garzón, que esteve no Brasil para participar de eventos da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), elogiou a revogação das leis Obediência Devida e Ponto Final, em 2001, que impediam a punição dos crimes contra a humanidade cometidos pelo Estado argentino. Com a anulação dessas leis, ratificada em 2005 pela Corte Suprema, cerca de 2,5 mil militares tornaram-se passíveis de serem julgados por violações aos direitos humanos e assassinatos de aproximadamente 30 mil civis.
Uma comissão independente comprovou 11 mil casos, revelando os métodos usados na tortura. A lei de Obediência Devida perdoava os militares que cumpriam ordens ao participar da repressão e a lei do Ponto Final proibia a Justiça de aceitar novas denúncias de violações. Tais leis foram aprovadas sob pressão durante o governo do presidente Raúl Alfonsin.
Desde a revogação, torturadores e comandantes militares têm sido julgados e condenados. Durante o mandato do ex-presidente Néstor Kirchner (2003-07), a Justiça reabriu vários processos. Até o fim do ano passado, 263 militares e policiais foram presos ou processados pelos crimes cometidos durante a ditadura. outubro do ano passado, um tribunal argentino condenou à prisão perpétua o ex-capelão da igreja católica, Christian Von Wernich, acusado de “crimes de lesa humanidade, por genocídio” durante a ditadura. Entre os julgados, também estão incluídos os ex-ditadores Jorge Rafael Videla e Reynaldo Bignone, ambos em prisão domiciliar.
Prisão perpétua
Recentemente, a Justiça também condenou o general Luciano Benjamin Menéndez, ex-comandante do 3º Corpo de Exército, à prisão perpétua pelas torturas e mortes de quatro pessoas no campo de extermínio La Perla, durante o regime militar de 1976-83. Outros sete repressores também foram condenados a penas de 18 anos até prisão perpétua, por delitos similares aos de Menéndez. Eles também irão para prisões comuns.
No Peru, a lei de anistia também foi abolida por sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Barrios Altos, referente à morte de 15 pessoas por um esquadrão da morte ligado ao Exército peruano, em 1991, crime pelo qual o ex-ditador Alberto Fujimori (1990-2000) está sendo investigado. A sentença da corte considerou o Estado peruano responsável pela violação do direito à vida e à integridade pessoal derivada do massacre, assim como por haver anistiado tais delitos. De acordo com Garzón, o caso é um exemplo no âmbito internacional. “O Tribunal Europeu de Direitos Humanos diz que esses crimes não são prescritivos. Portanto, nesse sentido, eu me incluo entre os que consideram que uma lei de anistia local não pode impedir a investigação de crimes contra a humanidade”, disse.
Ocultação de cadáveres
O juiz espanhol lembrou que um dos argumentos utilizados para não se mexer nas leis de anistia é a possível fragilidade do sistema democrático. “[Mas] uma autêntica democracia tem que se arriscar para construir o futuro.” Garzon disse também que a ocultação de cadáveres de ex-militantes de esquerda é um crime continuado, que deve ser punido.
Além disso, Garzón defendeu a universalização dos direitos humanos, e afirmou que os crimes contra esses são universais. Assim, todos os Estados têm direito de investigá-los, e, se for o caso, prender seus autores. “As vítimas do Brasil não são só brasileiras. Assim, o Estado espanhol tem tanto direito de punir os seus autores quanto o Estado brasileiro”, disse.
O atraso do Brasil em rever sua lei de anistia foi apontado por Kathryn Sikkink, pesquisadora e de Ciências Políticas da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos,, em recente visita ao Brasil disse:“Esse processo vem se acelerando nos últimos dez anos”, referindo-se a países como Uruguai, Chile e Argentina, que revisaram a lei de anistia e puniram alguns responsáveis por violações aos direitos humanos.
Kathryn explicou que apesar de também haver lei de anistia em outros países da América Latina, eles encontraram formas de driblar a lei. “A lei de anistia não é intocável, como se mostra aqui”. De acordo com um estudo feito por ela, no qual analisou 100 países que passaram pela transição democrática, naqueles onde houve punição para os atos cometidos contra os direitos humanos, o grau de violência policial é menor. Já nos que não houve punição dos crimes praticados durante a ditadura, a sensação de impunidade e o desrespeito aos direitos humanos é maior.
Comissões de verdade
Um outro aspecto importante em relação às ditaduras latino-americanas, e que não aconteceu no Brasil, é que durante o período de transição para a democracia, países como Uruguai, Peru, Argentina e Chile criaram comissões oficiais de verdade. Para emitir a ordem de prisão ao ex-presidente Augusto Pinochet, pela morte e tortura de cidadãos espanhóis, Garzón utilizou o relatório da Comissão Chilena da Verdade, que funcionou de 1990 a 1991.
A ditadura militar no Chile durou 17 anos, de 11 de setembro de 1973 a 1990. Oficialmente deixou 3.197 mortos, entre eles, 1.192 desaparecidos, de acordo com Relatório Rettig, divulgado em 1991 pela Comissão de Verdade, Justiça e Reconciliação. Apesar de inúmeras tentativas de processar o ditador Augusto Pinochet, o general só foi preso quando o juiz espanhol Baltasar Garzón abriu um processo contra ele pelos crimes de genocídio, terrorismo e tortura. Pinochet foi preso em Londres, onde permaneceu 503 dias em prisão domiciliar. Morreu em 2006, e foi sepultado sem honras de Estado.
Em março deste ano, 24 oficiais e suboficiais da polícia política da ditadura de Augusto Pinochet foram condenados por crimes de seqüestro, homicídio e tortura de 31 militantes de esquerda, opositores à ditadura de Pinochet. Em maio, 98 ex-agentes da ditadura de Pinochet foram presos por violações aos direitos humanos.
Fonte: Brasil de Fato.
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