A Passeata dos Cem Mil e o "click" mágico de Evandro Teixeira.
Um dos momentos marcantes registrados por ele foi a Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968, no Rio, quando milhares se uniram contra a repressão, contra a ditadura e pela democracia. Donas de casa, artistas, intelectuais, políticos, freiras, professores e, principalmente, cidadãos comuns seguiram pelo centro do Rio, concentraram-se na Praça Marechal Floriano a partir das 10h00 e foram ocupando a Cinelândia.
Da sacada da Assembléia Legislativa do Rio, Evandro fez seu "click" mágico e registrou a foto que se tornaria uma das mais representativas da Passeata dos Cem Mil. Na época, a foto nem foi publicada, mas em 1983, quando Teixeira publicou seu primeiro livro Fotojornalismo, a designer Elayne Fonseca, responsável pela seleção das imagens, surpresa, acabou encontrando a si mesma no meio da multidão.
Depois desse acaso, várias outras pessoas também se localizaram e, somente há alguns anos, estimulado pelo jornalista italiano Giorgio Terruzzi, Teixeira começou o trabalho de pesquisa que resultou no belíssimo projeto-livro "1968 Destinos – Passeata dos Cem Mil", lançado em março deste ano.
No livro, 100 pessoas que se encontraram na foto-símbolo da passeata feita por Evandro voltaram à Cinelândia para uma nova fotografia e relataram, 40 anos depois, o que as levou para a manifestação e como suas vidas transcorreram a partir dali. Encontros, desencontros em milhares de destinos.
Na entrevista exclusiva concedida ao Especial 68, o profissional conta como a foto se transformou na mais emblemática imagem da Passeata dos Cem Mil, as coincidências que levaram à publicação de "1968 Destinos – Passeata dos Cem Mil", como era ser repórter-fotográrfico naquela época e as heranças de 1968 que chegam até hoje.
[Especial 68] – Como surgiu a idéia do livro "68 Destinos – Passeata dos 100 mil"?
[Evandro Teixeira] - Em 26 de junho de 1968, a minha obrigação, como fotógrafo do Jornal do Brasil, era ficar no pé do Vladimir Palmeira porque havia a notícia de que, naquele dia da Passeata dos Cem Mil, ele seria preso ou morto. Eu ficava de olho nele, mas estava sempre fotografando do alto, de baixo, e havia uma multidão impressionante de intelectuais, gente da maior importância, da Igreja quando apareceu uma faixa com os dizeres "Abaixo a ditadura, povo no poder".
Eu estava ao lado do Vladimir na escadaria da Câmara Municipal quando vi aquela faixa chegando e imaginei que a foto que eu queria era aquela. Na imagem é um detalhe na multidão. Não imaginava estar fotografando ali o que se tornou, hoje, o símbolo da Passeata dos Cem Mil. Eu estava com uma máquina fotográfica Leika, que te dá uma qualidade ótica maravilhosa e pode oferecer a perspectiva de pessoas no mesmo enquadramento.
Aquela foto não foi publicada, não sei se foi problema de censura ou se foi na correria da edição, mas não foi publicada. Na primeira página ficou a foto da multidão, e de todas as faixas. Quando fiz o meu primeiro livro de fotojornalismo, em 1983, escolhi esta foto para fazer parte da edição deste livro.
A designer Elayne Fernandes que tinha sido contratada para fazer o livro se achou na foto, também achou o marido dela, o arquiteto Ernandes Fernandes. Na época não se conheciam, e ela está na parte de baixo da foto.
Os dois estão na mesma foto. Casaram-se e depois se acharam na tal foto. E aí começou a estória da foto, da Elayne achando ex-colegas de designer e ele de arquitetura, muitos deles que hoje são amigos em comum.
Tive que dar cópias da imagem para muitos deles e aí começou: ".Evandro, achei fulano..".
[Especial 68] - Isto foi quando?
[Evandro Teixeira] Em 1983, surgiu a idéia. Um amigo, o fotógrafo italiano Giorgio Terruzzi , perguntou: "Essa foto é maravilhosa, por que você não constrói um projeto buscando estas pessoas?" Eu achei uma boa idéia.
Fizemos o projeto "68 Destinos" e construímos um site para que as pessoas se encontrassem. Com o projeto elaborado, colocamos um ícone no site e, clicando na imagem da Passeata dos Cem Mil, as pessoas podiam se buscar ali.
Paralelamente, levamos o projeto à Petrobras porque a idéia era fazer uma exposição e o livro. Publicamos reportagens contando a história do projeto e foram, ao todo, sete anos para a conclusão.
[Especial 68] Como foi o contato com essas pessoas?
[Evandro Teixeira] As pessoas foram se encontrando na foto e contando sua história. Catalogamos todo mundo e, como o projeto era "68 Destinos" em função do ano, queríamos 68 personagens. A medida que fazíamos contato eu ia até a Cinelândia para fotografar todo mundo.
Eu queria fazer com que revivêssemos aquele dia 26 de junho. Minha idéia era que a pessoa ficasse no mesmo lugar daquele dia, como se estivesse ouvindo novamente o Vladimir Palmeira. Eu levava a foto para que a pessoa se reencontrasse.
Quando o patrocínio saiu, eu já tinha umas 40 pessoas fotografadas. Pensei que 2008 iria chegar e eu não encontraria as 68 pessoas. Mas com o dinheiro do patrocínio liberado, publicamos matérias pagas sobre o projeto e aí estourou o número de gente procurando. No final de 2007, quando o livro tinha que ficar pronto, já tinhapassado aquele número e pensei: e agora?
Fizemos contato com a Petrobras perguntando se podíamos ultrapassar as 68 pessoas e chegar a 100 para fechar. Fomos autorizados e paramos nas 100 pessoas. Hoje, já são mais de 150 localizadas.
[Especial 68] Como os participantes foram definidos?
[Evandro Teixeira] Nós não escolhemos as pessoas pela melhor história, não. Quando chegamos às 100, paramos, fotografamos e a equipe deu continuidade colhendo os textos para finalizar o projeto. Um dos redatores entrevistava para saber as histórias.Fechamos o livro em dezembro do ano passado para ser lançado em 28 de março 2008, nos 40 anos da morte do estudante Edson Luís (assassinado no restaurante Calabouço, no Rio).
[Especial 68] E como era ser fotógrafo em 68?
[Evandro Teixeira] Foi uma época dura para trabalhar. Os jornalistas e o pessoal que escrevia eram massacrados, manipulados e acho que a fotografia teve um momento importante nessa história em que a gente conseguia superar, fugir e não ter o equipamento quebrado, tomado, destruído.
O importante é que nós conseguíamos manipular a imagem – manipular no sentido de construir um contraste especial, mais escuro, sujo para que os censores não pudessem analisar a foto porque era um tal deles dizerem: "Esses estudantes vagabundos, ficam dando trabalho para nós, para os senhores".
Quando uma imagem conseguia passar e no dia seguinte eles viam aquela foto, aí....eles vinham pra cima de nós, queriam prender, tinha que fugir.
[Especial 68] Você passou por situações desse tipo?
[Evandro Teixeira] Sim! Tem um fotógrafo do Jornal do Brasil, o Alberto Jacob, que teve até costelas quebradas. Foi torturado, quebrado, assim como tantos outros. Eu tive muita sorte. Levei muito "chega pra lá", coronhada, ameaça de prisão, mas eu sempre consegui. Posso dizer que tive muita sorte nesse sentido.
Em 1969, fomos censurados porque o Brasil tinha uma representação da Bienal Jovem de Paris e havia um pintor, o Antonio Manuel, que era considerado rebelde. Nós ganhamos a oportunidade de expor na bienal, eu com 10 fotografias, e o Antonio Manuel com suas pinturas. Ele pintava sobre páginas de jornal em preto e vermelho como se fosse sangue e teve seu trabalho censurado, foi preso, torturado. Eu também tive minhas fotos da época censuradas.
O Museu de Arte Moderna do Rio fez uma exposição de abertura para mostrar à imprensa os trabalhos vencedores dos representantes brasileiros na Bienal de Paris, e eu e o Antonio Manuel aparecemos na imprensa. No dia seguinte, lá no MAM, chegou um coronel informando que a mostra era subversiva e que não poderia viajar.
As obras foram tomadas, apreendidas e os jornais, censurados, não puderam noticiar nada, só dizer que a exposição estava suspensa. Disse por alto que a mostra tinha sido cancelada. Agora, o Museu de Arte Moderna me ligou querendo fazer uma mostra revivendo aquela época no o ano que vem.
O curador do perguntou se eu tinha alguma publicação da época. Eu tenho muita coisa de jornais estrangeiros e ele me disse que não estava achando nada. É claro que não ia achar nada, tudo foi censurado.
[Especial 68] E o trabalho do fotojornalismo, da reportagem, como ficou?
[Evandro Teixeira] Você vivia uma época difícil. Os repórteres eram massacrados, presos e a fotografia conseguiu, o material sobreviveu. Muitas vezes, o repórter fotográfico era massacrado na rua, seu equipamento era tomado, quebrado, destruído. Os militares abriam a máquina, quebravam. Tenho foto no livro daquilo que conseguimos salvar, regatar e mostrar.
Na missa de 7º do estudante Edson Luis foi um dia terrível no Rio. Tudo começava na Cinelândia e descia para a Candelária. A avenida Rio Branco era o palco e eles paravam em frente ao Jornal do Brasil. Como o JB começou a apoiar a causa dos estudantes, eles paravam ali para discursar em frente ao jornal e faziam barricada.
Tenho fotos de barricadas com estudantes jogando bolinhas de gude, a "arma" deles para derrubar a polícia.Neste dia, o jornal foi fechado a bala, a policia chegou rápido, lacrou o jornal, a radio JB. E na missa do Edson Luis foi uma loucura. A cavalaria arrebentou todo mundo na Candelária, foi um massacre total.
Por incrível que pareça, neste dia da Passeata dos Cem Mil todo mundo dizia: "vai ser uma carnificina". e, ao final, foi o dia mais tranqüilo que se viveu no Rio de Janeiro nesta época. Não houve absolutamente nada. Não havia carro de som, não havia megafone, nem havia microfone.
Vladimir Palmeira falava "no gogó", era um orador maravilhoso. Tenho foto dele trepado lá no pico de uma árvore. Achei engraçado, parecia um macaco, e ele falava muito bem, tinha uma voz maravilhosa. Acho que foi um dia glorioso, um dos dias mais bonitos que se pode viver naquela tormenta toda.
[Especial 68] Você viu uma série de coisas e preferiu trabalhar com imagens da ditadura. O que foi que te marcou mais?
[Evandro Teixeira] Presenciei muita coisa, muita barbaridade. Acho que o momento mais emocionante foi este dia dos Cem Mil, de ter participado com aquela gente toda. Foi o dia mais memorável que a gente viveu porque foi de protesto, um dia que se pode falar, berrar, se manifestar e nada aconteceu. Pudemos nos soltar e por isso acho que foi o dia mais importante.
[Especial 68] – Qual é a melhor e a pior herança de 68, hoje?
[EvandroTeixeira] Hoje, fazendo uma comparação principalmente com os estudantes, acho que o pessoal está um pouco acomodado, individualista, ninguém mais protesta. É cada um por si, mesmo os estudantes estão assim.
O Rio passou, recentemente, por uma época difícil com a dengue, que era o momento das pessoas irem às ruas, cobrar mais. Ninguém está nem aí. Há muito individualismo, não se protesta não se busca mais o seu direito.
Mas acho que o mais importante de tudo é que nós vivemos uma democracia plena. O importante é isso, viver com liberdade. O Brasil melhorou muito, vem crescendo muito, está bem melhor, apesar de muitas desgraças, como o tráfico de drogas no Rio.
Fonte:Blog do Zé Dirceu.
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