Escrito por Virgílio Arraes.
De quando em quando, a inexorabilidade da história surpreende: há menos de dez anos, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), conduzida de maneira impetuosa pelos Estados Unidos, terminou de fatiar a Iugoslávia, descrente desde o fim da Guerra Fria das benesses ofertadas pela adoção irrestrita do neoliberalismo. Após semanas de bombardeios, Belgrado finalmente ajoelhou-se sem contar com o conforto sequer diplomático de Moscou, ainda entorpecida pela sua proximidade – considerada ainda benéfica - com os países ocidentais.
Com o fim da bipolaridade e conseqüente fragmentação da União Soviética, o Ocidente passou a aproximar-se dos países emergentes do Cáucaso, como Azerbaijão, Cazaquistão e Turcomenistão, em função do promissor potencial energético da região, ainda que contrariasse a Rússia, incapaz, porém, de ir além de resmungos. Na virada do milênio, houve uma reviravolta no Kremlin, com o grupo de Vladimir Putin ascendendo ao poder.
Logo depois, nos Estados Unidos, após um conturbado processo na apuração presidencial, George Bush foi alçado ao cargo. Se o ataque terrorista a Nova York em setembro de 2001 proporcionar-lhe-ia de modo involuntário a oportunidade para reforçar-se politicamente, ela seria desperdiçada na inoportuna investida ao Iraque, no início de 2003.
Enquanto isso, a corrosão política da gestão Bush providenciou maior desenvoltura para outras potências, entre as quais, a Rússia, em processo de recuperação dos desastrosos efeitos ocasionados pela abertura desmedida de sua economia nos anos 90.
A resignação apresentada no tocante à conformação de suas linhas fronteiriças na Europa não repercutiu com a mesma intensidade em seus limites na Ásia, onde a insatisfação do Kremlin, embora contida na época de Boris Yeltsin, nunca arrefeceu. Faltaria a oportunidade para materializá-la.
Graças à desastrosa movimentação militar de Tbilisi na Ossétia do Sul a partir do dia 8 de agosto, os russos puderam reapresentar-se ao mundo como potência bélica de primeira ordem ao efetivar a primeira ocupação de outro país, sem restrição material de ordem alguma, a datar da invasão ao Afeganistão no longínquo 1979.
Desde a dissolução da União Soviética, Moscou registra um posicionamento russófobo na Geórgia. Em 1989, o parlamento proibiu o bilingüismo na administração pública, em prejuízo do russo, até então a língua franca na área caucasiana.
Diligências de nacionalização do território foram executadas, com o objetivo de constranger a minoria russa e conseqüentemente expulsá-la para o seu próprio país. À primeira vista, pode-se visualizar um paralelo com o Kosovom, na antiga Iugoslávia, porém, em momento algum a segurança dos países-membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte foi posta em perigo.
No caso osseto, o seu território faz limite com a Rússia, tornando-se uma questão de segurança nacional, por também ele abrigar uma população majoritariamente de origem russa. Além do mais, há a possibilidade de a população osseta decidir, por exemplo, por um plebiscito, a sua separação da Geórgia e posterior incorporação a Moscou.
A razão por que a Geórgia decidiu de maneira tão incauta investir contra a Ossétia do Sul não está clara. Um dos motivos poderia relacionar-se com a possibilidade de levar o litígio para o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, onde se poderia requisitar a presença temporária de tropas onusianas e assim conter a presença política do Kremlin.
Outra justificativa poderia ser apressar o seu ingresso na OTAN, de maneira que pudesse receber, em pouco tempo, tropas multinacionais e, por conseguinte, impedir definitivamente a aspiração da Rússia de vetar a entrada de países com ela fronteiriços.
A reação imoderada de Moscou – para os ocidentais e, naturalmente, para os georgianos - anulou as duas possibilidades e ocasionou o desnorteamento na manifestação dos Estados Unidos, limitados, no primeiro momento, a fazer uma comparação esdrúxula com um período da Guerra Fria, ao evocar a invasão da Tchecoslováquia em 1968.
Destaque-se que na dissolução, em julho de 1991, do Pacto de Varsóvia, formado para opor-se à aliança militar ocidental, estava implícito o posicionamento de que não haveria a expansão da OTAN. Em menos de 15 anos, entrementes, ela atrairia Polônia, Hungria e República Tcheca em1999 e Letônia, Lituânia, Estônia, Eslovênia, Eslováquia, Romênia e Bulgária em 2004. Para o presente ano, aguardavam-se Ucrânia e Geórgia, esta fora da Europa!
Somada à presença, desde 2002, da entidade no Afeganistão, não houve dúvidas para o Kremlin de que o Ocidente providencia-lhe simultaneamente um cerco militar - ao ainda pressionar Varsóvia e Praga para recepcionar um sistema de defesa de mísseis balísticos - e um garrote econômico, ao assegurar para si o acesso ao gás da região. Assim, a desastrada ação georgiana desembocou no despertar encolerizado do urso russo.
Virgílio Arraes é professor de Relações Internacionais na UnB.
Fonte: Correio da Cidadania.
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