“O pedido de vista deve ser um movimento para reduzir a extensão da reserva”
por Michelle Amaral da Silva.
Para o professor da UNB José Geraldo de Sousa, o adiamento da decisão sobre a homologação das terras de Raposa Serra do Sol pode ser uma tentativa de conciliação entre o interesse dos arrozeiros e do governo do estado ao direito indígena
Para o professor da UNB José Geraldo de Sousa, o adiamento da decisão sobre a homologação das terras de Raposa Serra do Sol pode ser uma tentativa de conciliação entre o interesse dos arrozeiros e do governo do estado ao direito indígena
Há 30 anos, uma luta é travada em Roraima pelos indígenas da reserva de Raposa Serra do Sol. Quando finalmente conseguiram a homologação e demarcação do seu território, enfrentam uma nova luta. Agora não apenas contra os invasores não-índios de seu espaço de direito, mas também pelo questionamento feito por políticos locais em relação a esta demarcação. Depois de enfrentar a indiferença por parte do Exército, contarem com o apoio da Polícia Federal e serem ameaçados violentamente pelos arrozeiros que ocuparam um espaço de direito indígena, vêem o seu futuro ser decidido pelo Supremo Tribunal Federal.
O debate acerca da revisão da homologação das terras de Raposa Serra do Sol começou na quarta-feira(27), e, depois de receber o voto favorável a causa dos índios por parte do ministro Ayres Britto, um pedido de vista sobre o julgamento foi feito e a decisão foi adiada. Em entrevista, o professor da UNB José Geraldo de Sousa, que deu uma opinião sobre este episódio a partir do olhar do Direito Constitucional. “O pedido de vista deve ser um movimento para tentar abrir espaço para essas outras manifestações, ou seja, tentar reduzir a extensão da reserva em função da tentativa de compatibilização com os interesses dos arrozeiros e do desenvolvimento do estado proposto pelo governo estadual em detrimento dos direitos dos indígenas”, afirmou ele.
IHU On-Line - Como o senhor vê esse pedido de vista em relação ao julgamento da demarcação das terras de Raposa Serra do Sol?
José Geraldo de Sousa – Eu vejo como uma espécie de tensão que vai se manifestar no espaço do Supremo Tribunal Federal entre duas expectativas. De um lado, a expectativa que já veio à tona no voto do relator, ou seja, de respeitar a demarcação contínua segundo os valores que estão previstos na Constituição. Por outro lado, a expectativa em torno da possibilidade de que ainda haja, dentro da formação de entendimento do Supremo, um questionamento em torno da demarcação contínua. Algo como encontrar uma solução que contemple o desenvolvimento do estado de Roraima e o respeito às terras tradicionais dos indígenas. O pedido de vista deve ser um movimento para tentar abrir espaço para essas outras manifestações, ou seja, tentar reduzir a extensão da reserva em função da tentativa de compatibilização com os interesses dos arrozeiros e do desenvolvimento do estado proposto pelo governo estadual em detrimento dos direitos dos indígenas. Esse pedido de vista sinaliza isto.
De fato, este tema é daqueles que dividem a consciência do país em torno de como se vê, de como se reconhece e como orienta o seu próprio destino. Do ponto de vista do Direito, essa é uma oportunidade de vivenciarmos uma experiência de constitucionalismo multicultural, que é uma característica pouco explorada em nosso país, mas que, por conta da presença indígena em diferentes territórios da América do Sul – como na Bolívia, na Venezuela, no Peru, no Chile e no Brasil –, nos dá essa oportunidade de pensarmos uma outra maneira de conceber o direito que deve se inscrever no reconhecimento multicultural, pluralista etc. É uma oportunidade muito instigante e que deve ativar a sua inteligência e capacidade de oferecer respostas do ponto de vista do Direito Constitucional e da Ciência Política.
A Constituição Federal completa 20 anos em 2008. Quais os reflexos dela no que se refere aos direitos indígenas no país?
Ela foi um avanço formidável. A parte que trata dos índios do Brasil é fruto das mobilizações das comunidades indígenas e de suas organizações e foi uma referência de mudança do paradigma da compreensão da questão indígena. A passagem de um modelo integracionista para o modelo de autonomia, um modelo que compreende o indígena como capaz de determinar a sua própria identidade, sua própria cultura, seus valores, suas línguas no espaço dos seus territórios e memoriais, foi consagrada pela Constituição. Ela parece apontar para uma direção correta, porque, por exemplo, somente no ano passado a ONU aprovou a declaração dos povos indígenas junto a 143 países que convergiram no sentido de reconhecer a autonomia interna dos índios. A autonomia que o artigo 231 consagra vai nessa mesma direção. Este reconhecimento é civilizatório.
Em sua opinião, como os índios são vistos no imaginário social brasileiro?
Problematicamente. Você sabe que a nossa cultura é fruto de uma sociedade desigual, hierárquica, que recém saiu de uma sociedade escravocrata e mantém ainda práticas de redução à condição análoga de escravo nas relações de trabalho. No caso do índio, esse problema é mais complicado. Isso porque no imaginário da formação da própria América, a partir do olhar do colonizador, a identidade humana do índio foi um problema. Como sabemos, no século XVII ainda se discutia isso. O próprio Rei Carlos V da Espanha mandou suspender o empreendimento da conquista enquanto não se definia se os índios eram gente ou não. Foi o Papa João II quem estabeleceu que os índios são seres humanos e, por isso, têm alma. No imaginário antigo, os índios eram vistos como monstros e bestas, o que os desumanizava. Isso se projeta no imaginário das pessoas ainda hoje.
O senhor acha que é possível chegar a um acordo pacífico entre os índios e os arrozeiros?
Acordo pacífico na sociedade democrática sempre é possível estabelecer. Neste caso, é preciso levar em conta a autonomia das comunidades indígenas sobre seu território, sobre a questão da riqueza que é produzida a partir do emprego das matérias-primas de seu território e também sobre o modo como se concebe o sentido da produção. Os índios têm uma produção de sentido social, comunitário, de subsistência, enquanto que os arrozeiros têm uma produção no sentido da apropriação egoísta, para exportação, para a busca de lucratividade. Então, este é um problema complicado, porque estamos tratando com paradigmas diferentes, com concepções diferentes. É claro que numa sociedade democrática, dada a situação adequada de negociação, é possível encontrar uma alternativa sustentável que salvaguarde os direitos dos interessados e a preservação da identidade, na qual nós devemos tributar todo o nosso compromisso, dos indígenas em nosso país.
Negociar os direitos dos índios brasileiros é inconstitucional?
Sim, é inconstitucional, porque são direitos e integram o sentido de identidade que foram reconhecidos na Constituição. Os índios perdem a sua identidade se perdem a sua relação com a terra e com o lugar dos seus ancestrais, pois eles cultuam seus espíritos dentro desse espaço. Isso é inegociável. Mantida a sua identidade cultural e preservadas as suas condições de autonomia, sem abrir mão dos seus direitos, eles podem negociar as condições transacionais de seu contato com a comunidade do seu entorno, com outras formas de cultura, com outras formas de produção, desde que sua autonomia seja preservada e seus direitos não sejam alienados.
Então, esse julgamento pode ser considerado uma negociação dos direitos indígenas, não?
Pode. Se o STF se abrir para compreender o sentido inédito desse processo, será o realizador da Constituição, que precisa ser efetivada. O Tribunal precisa se identificar nesse processo. Vocação ele tem, vide o debate acerca das células tronco em que chamou a sociedade para discutir e também em relação ao debate acerca do aborto dos anencéfalos que está sendo realizado. São formas novas de atuação do STF que mostram a possibilidade de que ele pode se colocar a altura das exigências que se formam e que deve, além disso, nos levar a possibilidade de pensar novos modos de determinar a regra do direito.
Qual é sua avaliação sobre as ações do governo em relação ao conflito que se gerou em Roraima?
Do ponto de vista da função de realizador da Constituição, minha avaliação é muito positiva porque o governo tratou de garantir a afirmação do princípio da autonomia indígena e da demarcação administrativa contínua das suas terras. Num segundo momento, minha avaliação também é positiva porque, diante da ordem de suspender a continuidade administrativa da demarcação, o governo foi capaz de manter as expectativas dos setores que estão ali diretamente envolvidos nesse processo. Parece-me que o governo criou condições para uma solução que preserve aquilo que é mais essencial nesse debate: os direitos inalienáveis das comunidades indígenas que estão naquele território.
Como o senhor vê a presença de diversas religiões entre os índios?
Vejo de uma maneira preocupante porque elas carregam elementos exteriores que afetam as cosmologias das comunidades indígenas e indicam, a partir das suas éticas convencionais, destinos para essas comunidades. É difícil avaliar como se configuram, do ponto de vista da sua intervenção no espaço, aquilo que, desde a perspectiva da sua origem teológica, represente respeito aos outros modos de vida. Então, eu vejo com preocupação. Há diferentes trajetórias nesse processo, mas há um potencial problemático na medida em que essa presença interfere na cultura das comunidades. Alguns têm a intenção de preservar a cultura indígena, suas crenças, seus valores. Mas, ainda assim, vejo essa presença sob um olhar preocupante.
Como a situação de Raposa Serra do Sol chegou a este patamar?
Existem ações que aconteceram no passado sobre a definição do território que estão ainda presentes nesse conflito hoje. Além disso, há uma investida no espaço local, fazendo daquela região uma fronteira econômica e não uma fronteira política estratégica que leva em conta a presença do Estado como preservador das fronteiras, do meio ambiente e da presença indígena. Essa excitação agravou o conflito.
O que está acontecendo em Raposa Serra do Sol pode mostrar uma perda da soberania brasileira sobre a região?
De jeito nenhum. A presença dos indígenas na região assegura a presença concomitante do Estado. O setor privado ali presente é que faz com que as fronteiras se movam no sentido da hegemonia econômica da região. A presença indígena, que historicamente foi fator para que as fronteiras fossem determinadas, faz com que essa região não corra ameaças. Não há perspectivas, como alguns teimam em dizer, de autodeterminação por parte das comunidades indígenas em relação a esse território. Eles pedem o reconhecimento da sua autonomia para exercer seu modo de vida dentro do contexto brasileiro. Eles são os primeiros interessados em defender o país.
Fonte: Agência Brasil de Fato.
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