terça-feira, 26 de agosto de 2008

BOLÍVIA- No referendo sinal para a virada.

Ao discursar no início do ano, vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, antecipava: uma consulta popular poderia ser ponto de bifurcação para mudanças profundas. Diplô Brasil publica a fala, que vê o país envolto em revolução radical — porém pacífica, democrática e inclusiva

Álvaro Garcia Linera

Nessa sessão inaugural do Congresso Nacional, com o objetivo de refletir o que se passa hoje na Bolívia, quero compartilhar com vocês, de maneira muito breve, três conceitos: o da revolução, o da transição estatal e o de Estado.

O que é, em sentido estrito, uma revolução? Fundamentalmente, trata-se de uma transformação radical, rápida, sob controle do poder do Estado. Isso significa, em primeiro lugar, que em toda revolução se dá a formação de uma nova colisão de classes sociais e de grupos culturais anteriormente marginalizados do poder político e que agora assumem o controle direto do poder do Estado.

Uma revolução é, também, uma mudança rápida do poder estatal de um bloco de classes sociais a outro. Quando essa mudança do poder do Estado é feita através da força, falamos de uma revolução violenta. Tanto a Bolívia como outros países do mundo têm exemplos de revoluções violentas. Agora, quando a transição de um bloco social de classes a outro sob poder do Estado realiza-se por meios pacíficos e eleitorais, falamos de uma revolução democrática. Ambas, revoluções violentas e democráticas, são uma transformação do Estado – podendo-se, dessa forma, chamá-las de revoluções políticas.

Quando a mudança política não só modifica a estrutura do Estado mas também a estrutura econômica da sociedade e seus hábitos culturais, falamos de uma revolução sócio-cultural. Nem toda revolução política é necessariamente uma revolução sócio-cultural. Somente o será, quando essa mudança do bloco sob o poder do Estado gerar transformações estruturais na economia, na cultura e nos hábitos da sociedade.

O que modifica, em profundidade, uma revolução? Quem controla, de maneira estrutural, o poder do Estado?
"Quando quem passa a ocupar o poder são classes totalmente distintas, falamos de uma revolução. E ele é tão mais radical quanto maior for a distância entre o bloco dominante antigo e o novo"

Quando essa modificação se dá no interior de um mesmo grupo de classes sociais, é simplesmente uma transição política ou uma reacomodação do mesmo bloco no poder. Mas quando quem passa a ocupar o poder são classes sociais totalmente diferentes ao governo anterior, falamos de uma revolução. Neste caso, a distância entre a bloco dominante antigo — deslocado do poder —, e o bloco emergente é diretamente proporcional à radicalidade de uma revolução.

Mas o que é esse Estado do qual estamos falando? Em termos sintéticos, podemos dizer que um Estado é, em primeira instância, em seu fundamento íntimo e elementar, monopólio da coerção legítima e dos tributos. Em sua composição e estrutura articulada, um Estado é uma correlação de forças; uma institucionalidade; e um sentido comum.

Quando dizemos correlação de forças, significa que existem grupos e classes sociais que têm maior capacidade de incidência na tomada de decisões políticas e econômicas, no controle da coerção legítima, na modificação de pressupostos, nos contratos públicos, na administração da justiça, na viabilização de investimentos, na planificação cultural etc. Em toda sociedade moderna e enquanto houver Estado, haverá classes sociais com menos capacidade de influência. A isso, damos o nome de correlação de forças.

A institucionalidade do Estado, seus poderes Executivo, Legislativo e Judicia, suas normas, trâmites, burocracia, memória são as maneiras pelas quais essa correlação de forças se consagra, materializa-se, objetiva-se, e se torna procedimento, norma e memória do Estado.

E, por último, um Estado é um sentido nacional comum. Ou seja, um conjunto de idéias dirigentes, em torno das quais governantes e governados organizamos e imaginamos nosso destino comum para as décadas seguintes.
"Uma crise de Estado torna-se visível quando pedaços importantes da sociedade, anteriormente apáticos, mobilizam-se por outros projetos de vida econômica e política. A Bolívia vive um processo assim desde 2000"

Por iso, uma revolução que transforma o Estado é um processo político que muda a correlação de forças; troca um grupo social por outro; é um processo político que modifica as instituições, as formas como se objetivam as correlações de forças; e, fundamentalmente, uma revolução é uma modificação mental que transforma em sentido comum da sociedade, das percepções, dos desejos e a maneira como uma sociedade imagina seu destino, o de seus filhos, de sua comunidade, de sua pátria.

Com estas idéias teóricas gerais, queria refletir com vocês sobre como essa mudança estrutural do Estado está acontecendo na Bolívia. De um Estado neoliberal para um Estado que podemos chamar: social, pluricultural e autônomo.

Toda revolução, toda a transição estatal passa por um largo processo – não acontece da noite para o dia. A revolução boliviana que teve sua coroação em 1952, foi precedida, ao menos, por sete anos de gestação e, por último, de culminação. As crises bolivianas de Estado, — que seguimos vivendo hoje —, visualizou-se em 2000. O primeiro momento de uma crise de Estado ou de uma revolução é o momento da visualização das crises.

Quais são as características da visualização de uma crise de Estado ou de uma revolução? Primeiro, o governo legalmente constituído perde o controle das expectativas e das aspirações de uma parte relativamente importante da sociedade. Em segundo lugar, o governo perde a liderança política, portanto, estamos diante de governos em momentos de crises de Estado, que já não têm capacidade de seduzir os cidadãos. Em terceiro lugar, a cise de Estado manifesta-se quando o controle das Forças Armadas racha, ou quando organismos legítimos da coerção da sociedade entram em contradição e cisões internas. Por último, uma crise de Estado é visualizada quando pedaços importantes da sociedade, anteriormente apáticos, mobilizam-se com outros projetos de vida econômica e política. A Bolívia viveu esses momentos no ano 2000 – dias dramáticos de crises, mas que deram lugar a todo processo que dura até hoje.
"O novo imaginário de país é marcado pela nacionalização dos recursos naturais, pela igualdade entre os povos indígenas e mestiços e pela busca da distribuição territorial do poder do Estado, sob a forma de descentralização ou autonomia"

O segundo momento da crise de Estado ou da revolução é o que chamamos, segundo Gramsci, o empate catastrófico.

O empate catastrófico significa a emergência de um bloco social com vontade de disputar o poder de Estado em nível nacional. A chave para um empate catastrófico acontece quando antigas coalizões do velho poder têm à frente um novo bloco emergente com ânsias de poder político – do poder do Estado. Isso é justamente o que se sucedeu com os movimentos sociais bolivianos. Da atitude sindicalista reivindicativa, que caracterizou os anos 1980 e 1990, eles passam, nos anos 2000, a assumir uma vontade de poder estatal e a dar início a esse empate catastrófico.

Em segundo lugar, um empate catastrófico surge quando se confrontam duas visões de país, duas visões de mundo que disputam o imaginário e a esperança da coletividade social. No período de 2003 - 2005, esse empate catastrófico apresentou-se com uma disputa entre dois horizontes. São dois imaginários coletivos: um, o dos últimos 20 anos, em que predominava o apego às privatizações, ao investimento estrangeiro, a uma globalização descontrolada, à conformação de coalizões partidárias para dar governabilidade e a um tipo de colonialismo interno disfarçado; o outro, o que se confrontou com o primeiro com vontade de poder e que deu lugar ao empate catastrófico, foi um novo horizonte de país marcado pela nacionalização dos recursos naturais, pela igualdade entre os povos indígenas e mestiços e pela busca da distribuição territorial do poder do Estado sob a forma de descentralização ou de autonomia.

Existe empate catastrófico quando há um bloco social que busca disputar o poder em escala nacional, quando há visões de país confrontadas e quando esse bloco com vontade de poder tem a capacidade de mobilizar, em escala nacional, distintos segmentos sociais. A Bolívia viveu tal empate catastrófico em torno de 2005.
"A terceira etapa da revolução, a que chegamos nas eleições de 2005, permite que novas classes, povos e identidades culturais tenham capacidade de influir no âmbito público estatal, sem necessidade de alianças políticas"

Em dezembro de 2005, o país entrou numa terceira etapa da revolução ou da crise estatal, como podemos chamar: a conquista democrática do poder político. Por meio de eleições, modificaram-se as estruturas de classes, povos e identidades culturais, que hoje têm maior capacidade de decisão no âmbito público estatal sem necessidade de alianças políticas. Isso, somado à distância cultural entre as forças sociais vitoriosas e as derrotadas poderia, sem dúvida, ajudar a explicar o processo de polarização que posteriormente o país viveu, já que os canais de vinculação nos hábitos, na vida cotidiana e na própria gestão de governo, são bastante escassos. Isso gerou distanciamentos entre o bloco do poder ascendente e o bloco de poder decadente.

Uma quarta etapa de um processo revolucionário é a expansão e assentamento nacional e institucional do novo poder; um processo de irradiação das novas decisões, os novos horizontes do bloco de poder emergente. No caso da Bolívia, isso se deu através de um conjunto de medidas institucionais. No plano econômico: primeiro a recuperação dos recursos naturais, que modificou a relação do Estado boliviano com a economia mundial. Agora, 75% da da renda petroleira é apropriada publicamente, o chamado government take. Em segundo lugar, uma nova política de terras; em terceiro, um papel renovado na construção de empresas do Estado competitivas e adequadas aos tempos modernos e de transformações tecnológicas. Já no plano político: o referendo que procura institucionalizar a nova correlação de forças no âmbito nacional.

Por último, a expansão e assentamento nacional do novo bloco de poder se deu, fundamentalmente, por meio da consolidação de um só horizonte nacional, de um só ideário de transformação social. Sejamos de esquerda ou de direita, tenhamos posições mais ou menos conservadoras ou mais ou menos radicais, hoje a política da Bolívia apresenta quatro fundamentos – e ninguém que queria fazer política no país pode afastar-se deles.

O primeiro é o papel econômico protagonista, decisivo e condutor do Estado. O segundo fundamento da política do século 21, pelo menos nessas duas décadas, é a igualdade: mestiços e indígenas, indígenas e mestiços, com direitos iguais, sentados na mesma mesa, definindo a economia, a política e o rumo da sociedade. O terceiro fundamento da política é a redistribuição da riqueza; ninguém discute hoje a necessidade e obrigatoriedade de quitar a dívida e a ferida social de uma pátria agoniada pela pobreza. E o quarto é a redistribuição territorial do poder do Estado.
"É nítida a cisão do bloco conservador. Uma vertente busca o poder político a longo prazo, por meios democráticos. Lamentavelmente, há também um bloco conservador radical e violento, que felizmente é minoritário"

Hoje em dia na Bolívia, não se confrontam duas visões de país. Em algum momento, possivelmente, poderia surgir uma nova visão de país com vontade de poder, é provável, teoricamente deve-se considerar a hipótese, mas nesses anos, nesse meses, existe somente uma visão de poder. A diferença – e isso se comprovou muitas vezes no debate no Senado ou com os prefeitos – é como se acentua ou se intensifica um e outro dos quatro pilares; uns querem uma desconcentração territorial do poder mais rápida; já outros, querem acelerar o papel protagonista do Estado na economia.

Mas hoje, quem quem quiser fazer política na Bolívia, tem que obrigatoriamente ocupar-se destes quatro princípios. Portanto, falamos da consolidação e da vitória irreversíveis, de um único sentido comum e um único projeto de transformação estatal. Diferenças existem nas velocidades, acentuações, mas todos – esquerda e direita, moderados ou radicais – movemos nossa atividade política em torno desses quatro princípios.

Uma quinta etapa do processo revolucionário, paralela a quarta, é, sem dúvida, o recuo do antigo bloco de poder, das forças conservadoras, ao plano regional – e sua adequação parcial ao novo sentido comum. Há uma crise interna de lideranças e, é nítido, uma cisão do bloco conservador, configurando-se duas vertentes. Uma delas, democrática, assume a busca do poder político a longo prazo, por meio de métodos democráticos: da luta eleitoral, do Congresso, do debate ideológico. Lamentavelmente, surge também um bloco conservador radical e violento, felizmente minoritário, mas que expressa uma conseqüência política de toda revolução: o surgimento de setores que gostariam mudar o curso do processo político servindo-se da violência e da intolerância.

Por último, toda revolução tem o que chamamos de um ponto de bifurcação, que não tem nada a ver com o racha da sociedade, como mal interpretou algum comentarista. O ponto de bifurcação, que de fato é um conceito da física, da termodinâmica, do professor Ilya Prigogino, está associado com o surgimento de ordem a partir da incerteza, a construção da estabilidade a partir da instabilidade.
"A grande aposta do governo nacional e das forças políticas do Congresso é que a nova bifurcação se dê da mesma forma como começou esta revolução: por meios democráticos, pacíficos e eleitorais"

Estamos vivendo um momento de instabilidade e toda revolução, em suas cinco ou seis etapas, tem momentos de instabilidade. O momento em que a instabilidade amadurece, para parir uma estabilização do sistema estatal e politico, é o do ponto de bifurcação e estabilização do novo Estado. Quando chegará tal ponto de bifurcação, última etapa deste processo revolucionário, é algo que os atores políticos deverão definir.

Permitam-me lembrar dois momentos de pontos de bifurcação. O primeiro – violento – deu-se em 1952. A revolução aconteceu em 1947, a vitória eleitoral em 1951 e o ponto de bifurcação em 1952, com uma insurreição. Outro exemplo, mas não violento, foi em 1986. O velho Estado nacional popular caía e emergia, vigoroso, o Estado neoliberal. A crise manifestou-se em 1977, o MNR e ADN ganharam as eleições em 1985, mas a bifurcação deu-se pouco antes de 1986, quando os mineiros que marchavam a La Paz foram cercados e preferiram regressar, pacificamente vencidos, a suas minas, para nunca mais voltar à vida política.

É provável que estejamos nos aproximando de um ponto de bifurcação. Mas a grande aposta do governo nacional e das forças políticas do Congresso é que tal bifurcação se dê da mesma forma como começou esta revolução: por meios democráticos, pacíficos e eleitorais.

A proposta de referendo ou de uma série deles em 2008 é uma aposta para consolidar a estabilização do novo Estado, a partir de um processo democrático eleitoral, onde o que se dispute sejam idéias e convicções, não pedras e balas. Por tal resolução da consolidação do novo Estado por meios pacíficos e democráticos, apostamos que a Bolívia alcance estabilidade.
"O novo bloco de poder não é egoísta, não fecha as portas. Convoca as demais forças a pactuar. A Bolívia precisa ter certeza de mudança, mas também estabilidade e segurança nas regras pacíficas e democráticas da transformação"

Os resultados de uma revolução verificam-se mediante muitos dados e cifras. Permitam-me explorar dois resultados que me parecem irreversíveis e que definem a situação da Bolívia do século 21. Aconteça o que acontecer daqui por diante, será com paz e democracia.

O primeiro resultado é a igualdade — entre povos, sociedades, culturas, idiomas, vestimentas, cores de pele. Isso é um fato irreversível: já não se pode voltar atrás. A Bolívia já não suportaria um regresso a formas de dominação colonial e de racismo camuflado. A Bolívia mudou e, hoje, indígenas e mestiços, como nesta mesa, podemos compartilhar a tomada de decisões políticas e econômicas, e a forma como conduziremos o país.

O segundo: o papel do Estado. Passamos de um Estado fraco, raquítico, ligth, que nos jogou para o fim da fila de uma globalização desrespeitosa e alocada, a um Estado forte. Hoje, o Estado boliviano controla cerca de 21% da economia, do PIB do país. Nosso horizonte é chegar a 30%. No que diz respeito à produção direta de riquezas, o Estado Boliviano que recebemos encontrava-se literalmente aniquilado, participando com apenas 0,6% da produção, controla hoje pelo menos 8% do aparato produtivo. Nossa esperança é chegar a 20 a 25% como um Estado sólido, moderno e capaz de redistribuir sua riqueza.

Daqui por diante, o grande objetivo é concluir pacífica e pactuadamente tal processo de transformação do Estado. O novo bloco de poder não é egoísta, não fecha as portas. O novo bloco de poder convoca as demais forças, as emergentes e as deslocadas, a pactuar-se, a integrar-se e a ser partícipes de uma única estrutura estatal, capaz de dar à Bolívia a certeza de mudança, mas também estabilidade e segurança nas regras pacíficas e democráticas da transformação. (Tradução: Aurelie Tolat e Carolina Gutierrez))
Fonte: Le Monde Diplomatique.

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