Vivemos um momento histórico no Brasil, disse a advogada índia Jôenia Batista de Carvalho, que defende no Supremo Tribunal Federal a demarcação contínua da reserva indígena de Raposa Serra do Sol, no julgamento da ação iniciada pelo governo de Roraima e por um grupo de fazendeiros que querem anular ou modificar a demarcação feita em 1998 e homologada pelo presidente Lula em 2005. Joênia tem razão: a decisão que sair do julgamento iniciado na quarta feira terá forte impacto em decisões judiciais envolvendo terras indígenas em todo o país.
A questão envolve forte controvérsia - que, muitas vezes se traduziu em confronto aberto e direto - entre comunidades indígenas, fazendeiros, e outros setores da sociedade, com destaque para os militares e sua justa preocupação com a segurança e a soberania de nosso país.
A controvérsia é antiga. Ela remonta aos tempos coloniais quando comunidades indígenas muitas vezes invocavam a proteção Del Rei para garantir suas terras. Mas, quase sempre, o ''julgamento'' era decidido pela força das armas, com a escravização ou extermínio puro e simples das populações originárias.
Demorou muito tempo para que o direito indígena às suas terras fosse reconhecido pela lei, e mais tempo ainda para que a lei fosse efetivamente aplicada. Levar o julgamento para o STF é, deste ponto de vista, um progresso histórico e democrático que deve ser saudado como um enorme aperfeiçoamento da civilização brasileira.
Há três pontos que merecem destaque nesta questão; eles se referem à defesa da Constituição, ao destino dos moradores não índios da área, e à soberania nacional.
A Constituição de 1988 não deixa dúvida a respeito dos direitos dos índios. Suas determinações foram acatadas e explicadas cabalmente no voto do relator do processo, ministro Carlos Ayres de Britto que, num voto memorável, refirmou os direitos por ela reconhecidos e rejeitou a ação movida pelos fazendeiros que ocupam parte daquela área.
No artigo 20, A Constituição declara as terras indígenas como bens da União e reconhece o direito dos índios a elas; no artigo 231, reconhece o direito dos índios à sua ''organização social, costumes, línguas, crenças e tradições'', e reafirma seus direitos sobre suas terras, delegando à União a tarefa de ''demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens''. Define como terras indígenas ''aquelas tradicionalmente ocupadas pelos índios, as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições'', destinando a eles ''sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes'', sendo ''inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis''. Proibe também a remoção dos grupos indígenas, salvo ''em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população''. Este mesmo artigo da Constituição garante a defesa nacional contra qualquer ameaça estrangeira ao arrolar entre os motivos de remoção o ''interesse da soberania do País''.
Finalmente, declara ''nulos e extintos'' todos os ''atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse'' de terras indígenas, ressalvando casos de ''relevante interesse público da União'', e veta o direito a ''a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé''.
É a legitimidade dos preceitos constitucionais sobre a questão que está em jogo no julgmento, pelo STF. O ministro Ayres de Britto não acatou a pretensão dos fazendeiros de mudar a demarcação da área indígena contínua feita pelo governo federal e criar ''ilhas'' dentro da reserva, que teria assim sua continuidade quebrada, com a apropriação por fazendeiros de terras indígenas cuja posse a Constituição declara ''inalienáveis e indisponíveis'', e os direitos dos índios sobre elas ''imprescrítíveis''.
O segunto ponto diz respeito à necessária indenização, na forma da lei, da população não índia residente na área antes da demarcação. Qualquer negociação com estes moradores deve ser feita respeitando a Constituição, e levando em conta a ação daqueles que, como exige a lei, tenham agido de boa fé. O governo já depositou em juízo valores referentes a esta indenização, e quase todos agricultores que lá residiam entraram em acordo e sairam da área. Resta um pequeno grupo liderado pelo prefeito da cidade de Pacaraima, Paulo Cesar Quartiero (DEM). Ele é um grande plantador de arroz que já foi preso, em maio, por insuflar a resistência contra a demarcação, e multado em mais de 300 milhões de reais por danos ambientais causados na reserva.
Finalmente, há a questão da soberania nacional. A Constituição prevê medidas para defendê-la. Ao definir as terras indígenas como propriedade da União, integrou-as ao patrimônio nacional, como partes do território brasileiro habitadas por povos indígenas, cuja guarda e defesa cabe ao Estado nacional, sendo as Forças Armadas o instrumento para isso. Não há portanto impecilho constitucional para a presença do Estado e das Forças Armadas dentro delas, para o pleno exercício da soberania nacional e defesa das próprias populações indígenas. Como disse o ministro Carlos Ayres de Britto em seu voto, as terras indígenas fazem parte do poder estatal brasileiro e submetem-se às regras da soberania nacional, definidas pela Constituição.
A importância do julgamento em curso no STF decorre da definição de regras para enfrentar estes três problemas. A primeira batalha preservou a Constituição e garantiu os direitos indígenas. Mas o resultado ainda não é final: um dos ministros do STF, Carlos Alberto Direito, não se sentiu suficientemente esclarecido e pediu vistas, protelando a decisão para um prazo ainda não definido. Até lá, a luta continua!
Fonte: Blog Vermelho.
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