Bolívia: à esquerda, não basta ganhar eleições!
Pelo que senti pessoalmente na Bolívia, isso é o que as massas populares esperam de Evo Morales: um governo para chamar de seu
Ivan Pinheiro
Evo Morales foi consagrado em meio ao seu mandato, em referendo convocado por ele próprio, com 67% dos votos, ou seja, 14% a mais do que quando foi eleito presidente, em 2005 (53%).
Até na Meia Lua, onde viceja o separatismo, Evo dividiu o eleitorado: ganhou em Pando, empatou em Tarija e perdeu de pouco em Beni e Santa Cruz de la Sierra. Do total de nove Departamentos (Estados) da Bolívia, ganhou em sete. Mesmo nos dois em que perdeu, teve mais votos que em 2005. Em La Paz que, junto com El Alto, tem um terço do eleitorado nacional, Evo Morales teve 83% dos votos.
Dois prefeitos (governadores) de Departamento tiveram seus mandatos revogados (La Paz e Cochabamba), ambos da direita. Os dois únicos prefeitos do MAS (partido de Evo) foram confirmados (Oruro e Potosi). Por outro lado, foram também confirmados os quatro prefeitos de direita da “Meia Lua” (Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija), que implantam o “autonomismo”, eufemismo para disfarçar o movimento separatista, dirigido e financiado pelo imperialismo.
O nono Departamento (Chuquisaca, que tem Sucre como capital) só votou com relação ao mandato presidencial, pois a prefeita (oposição moderada) havia sido empossada pouco antes do referendo de 10 de agosto, em função da renúncia do titular. Mesmo com a insatisfação em Sucre, que se reivindica capital do país, Morales ganhou em Chuquisaca com 54%.
O resultado do referendo é mais uma prova da manipulação da mídia burguesa mundial. Quem imaginaria que o presidente boliviano teria mais de dois terços de confiança popular? Que em Santa Cruz (que hegemoniza o separatismo), Evo teria 40,75% de votos favoráveis? Lembram-se do inconstitucional “referendo autonômico” (não reconhecido pelo órgão eleitoral nacional da Bolívia), em que o prefeito de lá anunciou 80% de votos pela autonomia, num processo de votação e apuração que não contou com fiscalização do lado contrário nem com observadores internacionais?
A manipulação foi escandalosa como sempre. A impressão era de que o presidente estava isolado, espremido entre a esquerda e a direita. Aliás, a direita se aproveitou bem do erro tático da histórica, unitária e combativa Central Obrera Boliviana (COB), que puxou uma greve justa por uma reivindicação justa, só que na hora errada (às vésperas do referendo), abrindo espaço para que setores sectários minoritários recorressem a formas de luta inadequadas para a ocasião (destruição de pontes com dinamite, para bloqueio da rodovia que cruza o país). Conseguiram dois cadáveres para agitar “Fora Evo assassino”, com ampla cobertura da mídia burguesa.
Por incrível que pareça, esses setores, supostamente ultra-esquerdistas, pregavam o “voto castigo” em Evo, sob a bandeira “Nem Evo nem oligarquia”. Oportunistas, votaram para revogar o mandato do presidente, para se apresentarem como alternativa em uma nova eleição!
As oligarquias fizeram um show midiático em torno da “greve de fome cívica” na Meia Lua, em que saudáveis jovens pequeno-burgueses se deitavam teatralmente em tendas durante o dia - assistindo as Olimpíadas na televisão – descansando da farra da madrugada, em que se alimentavam, bebiam, namoravam e se divertiam.
A Unión Juvenil Cruceñista (de Santa Cruz), vanguarda violenta da direita racista e separatista, não permitiu que Evo e Alvaro Liñera (vice-presidente) fizessem campanha pessoalmente na Meia Lua, bloqueando rodovias e pistas de aeroportos. Todas essas ações, divulgadas como manifestações populares, foram promovidas pelos mesmos jovens fascistas cruceños, financiados pela embaixada norte-americana, prefeituras locais e mesadas de papais e vovôs. Profissionalizados, movimentam-se por toda a Meia Lua. Não foi à toa que os ilegais “referendos autonômicos” promovidos na região se deram em dias diferentes, para que esses arruaceiros pudessem estar em todos, agredindo e intimidando a população proletária, especialmente indígena, para não votar.
A revogação do mandato dos dois prefeitos de direita, em departamentos importantes (La Paz e Cochabamba), onde Evo venceu esmagadoramente, será um ganho para o governo, que em breve deverá eleger seus candidatos à eleição complementar. Como foi eleito presidente, em 2005, mais pelos povos originários e movimentos sociais do que por estrutura partidária, até agora Morales só tinha dois Prefeitos aliados (Potosi e Oruro).
Com a vitória no referendo de 10 de agosto, desmontou-se um provável golpe de direita que estava em curso e que poderia ter sido retomado logo após o anúncio dos primeiros resultados, se negativos para o governo. O presidente saiu fortalecido. Melhorou seu posicionamento para enfrentar o imperialismo e a oligarquia. Desmoralizou-se a manipulação da mídia burguesa, que o vinha caracterizando como isolado, física e politicamente, espremido entre a esquerda e a direita. A partir de agora, o presidente fala mais grosso.
Mas, na luta de classes, não há espaço para ilusões. A direita manteve suas cidadelas na Meia Lua, o que não retira o separatismo da ordem do dia. A confirmação dos seus prefeitos – mesmo que com votação bem abaixo do esperado por eles – permite a difusão de uma versão do resultado, com um discurso de que houve um empate. Não deixam de ter alguma base para isso. Afinal, a Meia Lua oriental, de maioria branca, onde estão a pecuária e os hidrocarbonetos (petróleo e gás), representa 45% do PIB boliviano e mais de um terço do território e da população do país.
Manipulando o resultado das urnas, a oligarquia medialunense radicaliza após o referendo. Convoca lockout, com nome de “greve cívica”. Em Santa Cruz, aplicam os “estatutos autonômicos”, inspirados na Constituição do Kosovo, enclave que virou país, artificialmente criado sob o comando do atual embaixador norte-americano na Bolívia. Ao arrepio da Constituição Federal, legislam sobre eleições, organização de poderes, economia (incluindo exportação e tributos), criação de instituições locais (até polícia própria); arvoram-se em nomear unilateralmente autoridades para as repartições federais no Departamento.
O presidente tem agora mais fôlego e peso político para enfrentar em melhores condições os temas da conjuntura, como a Lei de Pensões, o Imposto Direto sobre Hidrocarbonetos (IDH), a nova Constituição, o separatismo, o tema da capital do país. Tem o direito e o dever de se locomover para qualquer parte do país, enfrentando, com a segurança necessária, as agressões e obstruções que a direita continuará a praticar. Tem mais legitimidade e autoridade até para negociar com Departamentos, o que não for questão de princípio, a partir de uma posição mais forte.
A agenda boliviana nos próximos meses vai ser marcada por dois temas que se imbricam: as autonomias departamentais e o referendo sobre a nova Constituição, já redigida e aprovada pela Assembléia Constituinte específica há um ano. A direita fará de tudo para evitar este referendo, pois a nova Constituição vem para consolidar e avançar mudanças progressistas.
A continuidade e o avanço do atual processo de mudanças – bem definido como uma revolução democrática e cultural – e a possibilidade de ele vir a assumir um caráter socialista vão depender principalmente da correlação de forças, do nível de consciência, organização e mobilização das massas populares, sobretudo da unidade operário-camponesa. Mas vai depender também da vontade política de Evo Morales, de seu governo e de seu partido (MAS), ou seja, vai depender do que o dirigente do Partido Comunista Boliviano (sigla homônima do nosso PCB), Marcos Domich, chama de “golpe do poder”, ou seja, da determinação do governo de não conciliar mais com a violência dos grupos de direita e com o separatismo, de retomar o exercício do governo, de avançar em medidas para mitigar as injustiças sociais, assegurando terra aos camponeses e direitos aos trabalhadores. E, sobretudo, de convocar imediatamente o referendo popular para a aprovação da nova Constituição. O momento é este: a tendência é de nova vitória, por expressiva maioria.
Pelo que senti pessoalmente na Bolívia, isso é o que as massas populares esperam de Evo Morales: um governo para chamar de seu. Se o presidente conciliar, ficará sem respaldo algum, nem dos oprimidos nem dos opressores. Ou renuncia ou cai, como um castelo de cartas. E se optar por avançar, como se espera, não nos iludamos. A radicalização vai aumentar até uma inevitável ruptura violenta, em que – mais do que a correlação de forças no terreno estritamente militar - os operários, camponeses e trabalhadores em geral podem fazer a diferença.
Na Bolívia de hoje, não há espaço para a conciliação de classe.
Fonte: Brasil de Fato.
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