Celso Lungaretti (*)
Preso em 1936 e em 1939, Carlos Marighella foi um dos camaradas mais bestialmente torturados pela polícia política de Filinto Muller, o carrasco da ditadura getulista.
Companheiros vieram contestar a avaliação que eu fiz da Revolução Constitucionalista de 1932 como um movimento libertário, batendo na surrada tecla de que a oligarquia de outros estados era melhor que a oligarquia de São Paulo.
Para revolucionários, oligarquias são oligarquias, pouco importando se compostas por industriais ou pecuaristas. Por aí não se justifica coisa nenhuma.
O que importa era o que defendiam os legalistas (uma nova Constituição que pusesse fim aos desmandos e arbitrariedades) e o que defendiam os repressores (o prosseguimento dos desmandos e arbitrariedades, sem uma lei maior para atrapalhar).
O fato é que até hoje a historiografia está contaminada pelas avaliações nada isentas dos historiadores que oscilavam na órbita do Partido Comunista (muitos, naquele tempo), os mesmos que minimizaram absurdamente a Grande Greve de 1917 por ter sido de inspiração anarquista. Só com a reaparição triunfal do anarquismo nas barricadas parisienses de 1968 é que historiadores de uma nova geração resgataram a importância histórica da primeira greve geral brasileira.
Como o Partidão não se colocou frontalmente contra o golpe de 1930, os acadêmicos progressistas bateram na tecla de que, no início, a coisa não havia sido tão ruim assim...
Depois, veio um daqueles ziguezagues caracteristicamente stalinistas, a súbita mudança de posição para o polo diamentralmente oposto. O PCB, que estava sendo complacente demais com os tiranos, de repente recebeu ordem de derrubar a ditadura!
A orientação foi de que partisse para a Intentona (ou seja, a tomada revolucionária do poder), com Luiz Carlos Prestes, convertido ao comunismo no exílio, voltando como uma espécie de interventor, já que conquistara a confiança dos dirigentes da Internacional.
O PCB era não só contrário ao ingresso de Prestes (ainda mais como principal dirigente!), por considerá-lo apenas um pequeno-burguês radicalizado, como também se opunha a planos insurrecionais que não encontravam respaldo na correlação de forças brasileira. Mas, teve de se submeter aos iluminados da Internacional.
E deu no que deu - um retumbante fracasso e uma arma propagandística que os reacionários ainda utilizavam na minha juventude, três décadas depois, vertendo lágrimas oportunísticas sobre a tumba dos oficiais que teriam sido surpreendidos na calada da noite e assassinados na cama pelos comunistas insidiosos...
Enfim, a historiografia inspirada pelo PCB absolve a ditadura getulista nos primeiros anos e só a recrimina a partir de quando, até como reação à Intentona de 1935, passou a pender mais para a direita, daí resultando o Estado Novo (quando Vargas esteve aliado aos integralistas de Plínio Salgado, ou seja, à versão cabocla do nazismo).
CENTRALIZAÇÃO POLÍTICA E ECONÔMICA - Eis algumas informações sobre o levante paulista de 1932 que esses historiadores não consideraram importantes, mas eu considero:
1.
não há provas incontestáveis de que Vargas tenha perdido a eleição presidencial de 1930 para Júlio Prestes por fraude, nem de que só um lado tenha fraudado (a prática mais frequente era de fraude generalizada, com as urnas ungindo sempre o candidato do governador em exercício, e Getúlio levava a desvantagem de ser apoiado por apenas três governos estaduais);
2.
a exemplo do de 1964 (o ouro de Moscou e outras tolices), o golpe de 1930 utilizou falso pretexto, já que João Pessoa não foi assassinado por motivos políticos, mas sim como vingança de João Dantas pela publicação na imprensa das cartas de amor por ele trocadas com Anayde Beiriz e que haviam sido confiscadas em sua casa pela polícia;
3.
Getúlio tomou posse instalando uma ditadura, já que suspendeu a Constituição; destituiu os governadores e nomeou interventores em quase todos os estados (a única exceção foi Minas Gerais); dissolveu o Congresso nacional, os Congressos Estaduais (câmaras e senados estaduais) e as Câmaras Municipais, além de exilar Júlio Prestes, o presidente deposto Washinton Luís e vários de seus apoiadores;
4.
afora a adoção de medidas despóticas de centralização política, praticamente idênticas às de 1964, o golpe de 1930 adotou figurino similar também em termos de centralização econômica (os estados foram proibidos de contratar empréstimos externos sem autorização do governo federal; o Banco do Brasil passou a deter o monopólio de compra e venda de moeda estrangeira, controlando, assim, o comércio exterior; foram impostas medidas para controlar os sindicatos e as relações trabalhistas; e criadas instituições para intervir no setor agrícola como forma de enfraquecer os estados);
5.
jornais foram empastelados, a imprensa intimidada;
6.
a resposta ao arbítrio foram comícios constitucionalistas em São Paulo, o maior deles reunindo cerca de 200 mil pessoas, um assombro para a época;
7.
a demanda civil por uma nova Constituição esbarrava no veto dos tenentes radicais, exatamente como as tentativas de devolução do poder aos civis no golpe seguinte esbarrariam na resistência da linha dura militar;
8.
o estopim da revolta de 1932 foi o assassinato de cinco jovens no centro da cidade de São Paulo (os quatro do MMDC morreram imediatamente e o quinto após agonia mais longa), baleados por partidários da ditadura pertencentes à Legião Revolucionária, um grupo paramilitar consentido pelos déspotas, assim como o CCC seria depois consentido pelo regime de 1964.
Ditaduras são sempre ditaduras: cruéis, sanguinárias e repulsivas.
E, se relevarmos os traços tirânicos da de 1930 por ter sido até certo ponto modernizante, teremos que conceder igual tratamento à de 1964, que também remodelou o Estado.
O fato de uma modernização haver tido viés populista e outra viés direitista pode significar algo para quem comunga com o utilitarismo. Mas nada significa para quem, como eu e os bem formados na tradição marxista, não considera que os fins justifiquem os meios.
Que o digam Olga Benário, que Getúlio Vargas despachou para morrer na Alemanha hitlerista, bem como os camaradas barbaramente torturados pela polícia política de Filinto Muller, a quem o jornalista David Nasser se referiria depois como o réu que ficou faltando no julgamento de Nuremberg.
O carrasco Filinto Muller, aliás, é um dos personagens que fizeram ligação entre os dois regimes de exceção: foi dirigente importante do partido de sustentação da ditadura de 1964.
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