Um homem coerente
Por Mauro Santayana
Mais do que a continuidade de um talento que fascina, como regedor do espaço em sempre surpreendente arquitetura, Oscar é exemplo raro de coerência ética, intelectual e política. Para os que o conhecem de perto, ele não é o arquiteto Oscar Niemeyer; é Oscar Niemeyer, arquiteto. A profissão não lhe é substantiva: é adjetiva. Ele teria sido grande pintor, como excelente desenhista que sempre foi, mas preferiu esculpir edifícios. É certo que a estética faz parte de seu viver, na ousadia das formas, sempre belas; no equilíbrio de suas massas de concreto com a natureza, no seu texto enxuto, admirável, sólido e flutuante, como sua arquitetura. Oscar não agride nem domina a natureza: ele a seduz. É assim que sabe pesar o vento, associar-se ao mar e ao céu, como no belíssimo conjunto de Niterói, mas também ocupar as paisagens mais fechadas, quase íntimas, como a da Pampulha. Ali, convidado por Juscelino para levantar edifícios que servissem ao prazer da vida, como a Casa do Baile e o Cassino – que logo depois, com a proibição do jogo, se tornou espaço cultural – sugeriu ao prefeito a edificação da capelinha. Pelo menos era o que Juscelino contava a seus amigos, com bom humor, ao lembrar que aquela ideia piedosa partira de um comunista que chamara outros comunistas para a tarefa. Oscar, com plaisanterie, argumentara que, depois dos pecados na Casa do Baile e da possível perda no Cassino, o sujeito deveria ter um templo ao lado, para arrepender-se, pedir ajuda para se recuperar.
Na capela da Pampulha, que lembra a de São Francisco em Porciúncula, só podia ser dedicada ao poverello de Assis. Não iriam Oscar e Portinari colocar seu talento em louvor de algum santo guerreiro, como Bernardo de Claraval, que abençoou todas as atrocidades dos cruzados na Terra Santa. A singeleza das formas, com as paredes e o teto curvando-se como se imitassem a humildade do mais singelo de todos os santos, pediam a ousadia de outro criador, Candido Portinari. Uma das mais belas ideias do maior de nossos pintores foi a de deixar o lobo na selva e trazer seu descendente, o cão, para fazer companhia a São Francisco, ao lado dos pobres. Era a clara intenção de dar sentido mais humano à santidade de São Francisco, mediante o cão, companheiro milenar do homem, e dele assemelhado na astúcia, nos caprichos, na neurose, na ferocidade utilitária, na desabrida sexualidade.
A hierarquia reacionária de Minas não podia concordar com tanta heresia, e a presença do cão de Portinari, nas paredes do templo, ofendia os seus princípios: afinal, não é permitida a presença de cães nas igrejas. Tampouco podia admitir aquelas formas, que contrariavam os modelos góticos e barrocos dos templos católicos. Os criadores ousados haviam encontrado um homem público também ousado. Juscelino, com o conjunto arquitetônico da Pampulha, não só revelou o talento de Oscar: abriu caminho para a arquitetura moderna, feita menos de cimento e ferro, e muito mais da alegria.
Foi irresistível a carreira extraordinária de Oscar. Fiel às suas ideias, Oscar jamais delas abriu mão. Quando cedeu seu escritório de trabalho a Prestes, em 1945, estava assinando a sua ficha de subversivo. Não lhe faltaram inimigos, nem faltam hoje. É o tributo que os grandes homens sempre pagam. Oscar não lhes dá atenção. Continua, aos 102 anos, a estudar o cosmos, a trabalhar, a conversar com os amigos. A luz, nele, não está só nas pupilas, mas na prodigiosa mente.
Oscar nunca foi uma descansada testemunha, como muitos de sua geração. Foi homem de ação, ao projetar os edifícios de Brasília, ao arrancar, do solo árido e seco do Planalto, as formas quase florais de seus grandes edifícios, ao participar da vida política de seu povo. Na catedral, ele – embora lhe desse as dimensões adequadas – retornou à essência criadora da Pampulha. A torre do templo monumental não é a esguia haste que se levanta em direção ao céu, indicando o caminho da morada dos santos e anjos. Ela se levanta até certo ponto, para abrir-se, como as mãos, em plano quase horizontal, dirigindo-se mais aos homens, no apelo à solidariedade, do que à transcendência.
Quando a este século sucederem outros, e até que as pedras resistam – como resistem tantos monumentos milenares – o nome de Oscar estará ao lado de Fídias, de Michelangelo, de Leonardo. Ele é, assim, um orgulho da gente brasileira.
Mais do que a continuidade de um talento que fascina, como regedor do espaço em sempre surpreendente arquitetura, Oscar é exemplo raro de coerência ética, intelectual e política. Para os que o conhecem de perto, ele não é o arquiteto Oscar Niemeyer; é Oscar Niemeyer, arquiteto. A profissão não lhe é substantiva: é adjetiva. Ele teria sido grande pintor, como excelente desenhista que sempre foi, mas preferiu esculpir edifícios. É certo que a estética faz parte de seu viver, na ousadia das formas, sempre belas; no equilíbrio de suas massas de concreto com a natureza, no seu texto enxuto, admirável, sólido e flutuante, como sua arquitetura. Oscar não agride nem domina a natureza: ele a seduz. É assim que sabe pesar o vento, associar-se ao mar e ao céu, como no belíssimo conjunto de Niterói, mas também ocupar as paisagens mais fechadas, quase íntimas, como a da Pampulha. Ali, convidado por Juscelino para levantar edifícios que servissem ao prazer da vida, como a Casa do Baile e o Cassino – que logo depois, com a proibição do jogo, se tornou espaço cultural – sugeriu ao prefeito a edificação da capelinha. Pelo menos era o que Juscelino contava a seus amigos, com bom humor, ao lembrar que aquela ideia piedosa partira de um comunista que chamara outros comunistas para a tarefa. Oscar, com plaisanterie, argumentara que, depois dos pecados na Casa do Baile e da possível perda no Cassino, o sujeito deveria ter um templo ao lado, para arrepender-se, pedir ajuda para se recuperar.
Na capela da Pampulha, que lembra a de São Francisco em Porciúncula, só podia ser dedicada ao poverello de Assis. Não iriam Oscar e Portinari colocar seu talento em louvor de algum santo guerreiro, como Bernardo de Claraval, que abençoou todas as atrocidades dos cruzados na Terra Santa. A singeleza das formas, com as paredes e o teto curvando-se como se imitassem a humildade do mais singelo de todos os santos, pediam a ousadia de outro criador, Candido Portinari. Uma das mais belas ideias do maior de nossos pintores foi a de deixar o lobo na selva e trazer seu descendente, o cão, para fazer companhia a São Francisco, ao lado dos pobres. Era a clara intenção de dar sentido mais humano à santidade de São Francisco, mediante o cão, companheiro milenar do homem, e dele assemelhado na astúcia, nos caprichos, na neurose, na ferocidade utilitária, na desabrida sexualidade.
A hierarquia reacionária de Minas não podia concordar com tanta heresia, e a presença do cão de Portinari, nas paredes do templo, ofendia os seus princípios: afinal, não é permitida a presença de cães nas igrejas. Tampouco podia admitir aquelas formas, que contrariavam os modelos góticos e barrocos dos templos católicos. Os criadores ousados haviam encontrado um homem público também ousado. Juscelino, com o conjunto arquitetônico da Pampulha, não só revelou o talento de Oscar: abriu caminho para a arquitetura moderna, feita menos de cimento e ferro, e muito mais da alegria.
Foi irresistível a carreira extraordinária de Oscar. Fiel às suas ideias, Oscar jamais delas abriu mão. Quando cedeu seu escritório de trabalho a Prestes, em 1945, estava assinando a sua ficha de subversivo. Não lhe faltaram inimigos, nem faltam hoje. É o tributo que os grandes homens sempre pagam. Oscar não lhes dá atenção. Continua, aos 102 anos, a estudar o cosmos, a trabalhar, a conversar com os amigos. A luz, nele, não está só nas pupilas, mas na prodigiosa mente.
Oscar nunca foi uma descansada testemunha, como muitos de sua geração. Foi homem de ação, ao projetar os edifícios de Brasília, ao arrancar, do solo árido e seco do Planalto, as formas quase florais de seus grandes edifícios, ao participar da vida política de seu povo. Na catedral, ele – embora lhe desse as dimensões adequadas – retornou à essência criadora da Pampulha. A torre do templo monumental não é a esguia haste que se levanta em direção ao céu, indicando o caminho da morada dos santos e anjos. Ela se levanta até certo ponto, para abrir-se, como as mãos, em plano quase horizontal, dirigindo-se mais aos homens, no apelo à solidariedade, do que à transcendência.
Quando a este século sucederem outros, e até que as pedras resistam – como resistem tantos monumentos milenares – o nome de Oscar estará ao lado de Fídias, de Michelangelo, de Leonardo. Ele é, assim, um orgulho da gente brasileira.
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