Por: Flavio Aguiar
Yitzhak Ganon era um homem mais ou menos comum. Mais ou menos: aparentemente tinha boa saúde. Mas nunca consultava médico. Sempre que se sentia mal, alegava “cansaço”. E a esposa e a filha, Íris, acreditavam. Assim era numa cidade perto de Tel Aviv, capital de Israel.
Até que um dia, neste dezembro de 2009, o tal de “cansaço” não passou. Ao contrário, só piorou. Yitzhak não era jovem: tinha 85 anos. Sua vida não fora fácil, ao contrário, fora bem complicada. Nascido em 1924, na Grécia e numa família judaica, ele, mais o pai, a mãe e alguns irmãos foram deportados para o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, em março de 1944.
O pai morreu no caminho. A mãe e os irmãos foram enviados diretamente para a câmara de gás. Yitzhak não. Sobreviveu. Estava vivo, quando o Exército Vermelho, da União Soviética, libertou o campo, em 27 de janeiro de 1945. Tinha – e tem – o número 182558 tatuado no pulso. Voltou para a Grécia, e com os parentes que ainda restavam, emigrou depois para Israel, onde casou e teve filhos.
Diante do “cansaço” que não passava, a filha Íris rebelou-se contra o pai e chamou um médico. Este veio, viu e sentenciou que o paciente deveria ser removido imediatamente para um hospital. O paciente resistiu, mas assim foi feito. Dando entrada no hospital, Yitzhak teve um enfarto do miocárdio. Salvo pelos médicos, estes explicaram à família que fora um milagre ele se salvar, pois estava muito debilitado, e tinha só um rim.
Como assim, só um rim? Despertado da anestesia, Yitzhak esclareceu: o outro rim lhe fora retirado, em 25 de março de 1944, no campo de Auschwitz, pelo Dr. Josef Mengele, durante uma de suas sessões de “experimentos científicos” com pacientes selecionados. Por isso ele Yitzhak, sobrevivera: fora um dos tais pacientes. Só que, como costumava fazer em outras cirurgias “experimentais”, o Dr. Mengele lhe retirara o rim sem qualquer anestesia. Por essa razão Yitzhak nunca mais adentrara hospital nem consultara médico. Até esta vez, em 2009, quando a filha, a mulher e os médicos lhe salvaram a vida. Ganhou um marca-passo: se não houver outras complicações, Yitzhak poderá ter ainda muitos anos pela frente.
O dr. Mangele nasceu na Baviera, em 1911. Tornou-se membro da SS, e em 1944 estava em Auschwitz onde, embora não fosse o médico-chefe, dirigia o setor de seleção dos prisioneiros que deviam morrer ou que deviam fazer trabalhos forçados. Ou servir aos seus “experimentos científicos”. Foi assim que Yitzhak entrou para o seu “serviço”, onde foi de grande valia, pois, além de ser cobaia dos experimentos (que incluíram passar uma noite inteira dentro de uma banheira com água gelada), ajudava na limpeza dos instrumentos cirúrgicos e outros.
Terminada a guerra, Mengele fugiu para o setor norte-americano, de onde, provavelmente com ajuda do bispo católico (do Vaticano) Aloïs Hudal, fugiu para a América do Sul em 1949. Viveu na Argentina, no Paraguai e no Brasil. Parece que em seu temor de ser pego pelos caçadores de nazistas, tornou-se solitário, embora tivesse ajuda de amigos que conheciam sua identidade, irritadiço, agressivo, macambúzio, o que talvez pudesse ser sintoma de uma tendência depressiva. Nunca manifestou arrependimento.
Passou os últimos anos de sua vida entre os municípios de Embu das Artes e Itapecerica da Serra, perto de São Paulo. Morreu solitário: como costumava fazer, foi nadar sozinho na praia de Bertioga em 7 de fevereiro de 1979. Não se sabe se teve um enfarto porque se afogava ou se afogou porque teve um enfarto do coração. Esperemos que, como no extraordinário poema de Pablo Neruda sobre a morte do ditador espanhol Francisco Franco, em sua agonia os olhares das pessoas por cuja morte ou tortura foi responsável tenham brilhado na escuridão de sua mente, até ofusca-lo. E que tenha mergulhado numa noite de terror.
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