A cilada
Ou de como conceitos como “colaborador” e “empreendedorismo”, ou estruturas como as OSs, Oscips e PPPs estabeleceram a hegemonia ideológica do capital, amarram as mãos do Estado e levam os governos de esquerda a frustrar seus eleitores
Publicado 26/03/2024 às 17:11
Título original: A questão do Colaborador, da pessoa física-jurídica, o empreendedor, uberização, a invenção do terceiro setor e demais tranqueiras da estratégia urdida pelo liberalismo de novo tipo
Desde os anos 1990, em reuniões fechadas, aqui na terra ocupada dos tupiniquins, com consultoria ativa dos “hegemônidas” do Hemisfério Norte, a corrente principal dos organizadores das estratégias de dominação resolveu, subliminarmente e depois abertamente, introduzir o termo colaborador para substituir trabalhador, empregado ou funcionário. O nome, que não consta em leis, vem ganhando terreno a passos de légua no Brasil. O objetivo posto pela estratégia no processo de constructo da hegemonia neoliberal foi o de com isso ganhar corações e mentes para a colaboração entre capital e trabalho, entre patrão e empregado/a, retirando qualquer interpretação de
classes ou de interesses, entre os que contratam e os que vendem sua força de trabalho. Atualmente até no domicilio os patrões chamam as faxineiras/os, cozinheiras/os, arrumadeiras/os de colaborador/a; Hospitais universitários, grandes redes de comercio e indústria, progressivamente adotam a nova denominação. O pretendido é que todos se sintam colaborando com os seus patrões, ajudá-los, colaborativamente, a ganhar mais, economizando sempre. Não perguntaram aos operários, bancários, comerciários, pedreiros, trabalhadores ou empregados domésticos, cortadores de cana o que achavam de mudarem de nome, trocar o nome de categoria por um genérico – todo mundo colaborador e, se possível alegre e docilmente, sem conflitos. O ferramenteiro colaborando na montagem de um caminhão na Scania, um bancário colaborando com a família Setúbal a manter os juros no cartão de crédito e no cheque especial do Itaú, o cortador de cana colaborando com os Ometto na produção de álcool e açúcar e melhor manter seus imóveis em Paris, Nova York ou Montecarlo, o faxineiro de um hospital colaborando com a Rede d’Or, com o Hospital Sírio ou Einstein ou HC, o jornalista colaborando para a rede Globo fazer as matérias que divulga. Uma beleza.
Muito embora o nome não tenha poder de mudar as relações de trabalho, não foi construído à toa, tem simbolismo. É preciso pôr fim à farsa urdida, com o esclarecimento e debate permanente com os que trabalham e vivem de salários, das razões do nome, até que convenções coletivas de trabalhadores avaliem colocar em pauta a proibição do seu uso pelos empregadores e pôr um fim a este escárnio que integra o mecanismo de dominação.
O exemplo dessa construção veio no esteio da estratégia maior de reduzir o papel do Estado e por decorrência do voto popular, forma universal, conquistada a duras penas, de poder aproximar pela urna o peso do bilionário com o do despossuído. Como não podem mais, por enquanto, eliminar eleições, fazem-nas inofensivas ao poder dos “hegemônidas” atuais.
Assim, foi sancionada em 1995 a Lei de Concessões, criadas Organizações Sociais (OS) e as Organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP), por lei de inciativa do executivo federal em 1998, essas todas tendo à frente o autor da frase “esqueçam o que eu escrevi”, o mesmo que dizia orgulhar-se de enterrar a herança varguista (FSP, 14-02/1995, 20-08-1997), a lei das Parcerias Público Privadas (PPP), de 2004, bem como importado dos “esteites” o MBA- Master of Business Administration (Mestre em Administração de Negócios), também na década de 1990, depois veio uberização, o trabalho intermitente, as MEIs, o empreendedorismo, a pejotização do assalariado, você patrão de você.
Num regime capitalista é natural que a maior parte da atividade empresarial, econômica, seja realizada pelo setor privado, que ocorram contratos entre o poder público e o privado para compra de serviços, de obras, de materiais de consumo, pratica aliás sempre realizada no país. Também a necessidade de modernizar o funcionamento do Estado e das normativas para funcionamento do privado é de fácil compreensão. Não são essas a gerar controvérsia.
A controvérsia é que essa construção veio atender, engraxar o processo de aumento da apropriação do fruto do trabalho, pela redução dos direitos trabalhistas, pela automação e aumento da produtividade do trabalho, pela redução dos recursos e gastos do Estado para atender toda a população (para organizar e manter um sistema de saúde, de educação, de mobilidade, de assistência social, de cultura, para atividades esportivas, para orientar a produção de alimentos de qualidade e garantir o direito a uma aposentadoria digna), pelas isenções fiscais e subvenções do Estado ao setor privado em quase todos os campos, pelo pagamento da dívida pública, sem contingenciamento e a juros controlados pelo mercado. A decorrência é a de que a cada ano e década o grupo do 1% mais risco concentra mais renda e bens. Como o PIB é finito, meia dúzia de bilionários se apropriando de maior fatia do produzido pelos 108 milhões que constituem a População Econômica Ativa do Brasil, resta a essa, que envelhece, que demanda por mais cuidados, se muito, esperneio, pois esvaziadas foram também seus órgãos de representação e as categorias pelo enxugamento do trabalho formal e a desindustrialização acelerada.
Essa situação criada pelo liberalismo global turbinado a partir do final dos anos 1970 e, por aqui a partir de 1989-90, tem levado governos com discurso e programa voltados para atender as maiorias, decepcionar, entregar muito menos do necessário e prometido. Nos impérios ocidentais do Norte (EUA, Canadá e União Europeia) o que assistimos com a redução de direitos é o avanço da ultradireita que assumiu a pauta antissistema, mesmo sem o ser, uma vez que os chamados progressistas foram abduzidos politicamente pelo mercado e pela máquina de guerra do Império, como demonstra o envolvimento de países sob governos socialdemocratas em todas as empreitadas guerreiras (Iraque, Afganistão, Balcãs, Líbia, Siria e agora na operação Ucrânia).
No Brasil vimos assistindo situação semelhante, onde a expectativa criada com a interrupção do regime militar, em 1985, de que a democracia levaria a um maior e rápido atendimento aos mais necessitados, teve uma entrega muito parcial e sofre ataques permanentes para não se desviar do rumo neoliberal – persistência de privatizações/doações como a recente Eletrobrás, a do saneamento em curso, o garroteamento para que a Petrobrás pague lucros antecipados aos acionistas privados em detrimento de investimentos, autonomia do Banco Central. É preciso interromper este processo, revertê-lo e para isso repito aqui uns versos do Noel Rosa, que aprecio muito:
“João Ninguém
Que não é velho nem moço
Este João nunca se expôs ao perigo
Nunca teve um inimigo
Nunca teve opinião
João Ninguém
Não tem ideal na vida…”
Partidos, movimentos e governos voltados para atender as maiorias, os que mais precisam, devem deixar de ser João Ninguém
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