Governo de Israel odeia Guterres
Por muito rebuscada que seja a semântica, o governo de Israel acusa António Guterres de cumplicidade com o terrorismo. É uma ofensa grave. Revela desespero e falta de outros recursos diplomáticos para inverter a perda de influência e também a perda de apoio na opinião pública internacional. É quase a “bomba atómica” num contexto diplomático contra uma figura sempre respeitada pela generalidade da comunidade internacional. Pouco depois do ataque do Hamas a 7 de Outubro de 2023, o então Ministro dos Negócios Estrangeiros israelita, Eli Cohen, perguntou a Guterres “em que mundo vive?”; depois, o embaixador israelita na ONU pediu a demissão de Guterres e, agora, poucas horas depois de António Guterres ter estado na fronteira de Rafah a denunciar o pesadelo dos palestinianos e a exigir que a ajuda humanitária entre em Gaza, chegou a vez do actual Ministro dos Negócios Estrangeiros israelita, Israel Katz, recorrer à rede social X (antigo Twitter) para dizer que sob a liderança de Guterres, a UNRWA (Agência da ONU para os refugiados palestinianos) tornou-se um braço terrorista do Hamas. Acrescenta Israel Katz que “qualquer pessoa que se recuse a condenar os crimes do Hamas e não responda aos apelos à demissão do chefe da UNRWA, Philippe Lazzarini, deve ir para casa”. Israel Katz sabe que não é verdade. Sabe que António Guterres sempre tem condenado o ataque do Hamas, mas o governo de Israel teima em não ouvir e, a exemplo de muitos outros casos constrói uma narrativa paralela sabendo que será propagada e terá efeito.
Para além disso, esta reacção de Israel Katz pretende, obviamente, disputar o espaço mediático com a presença e os alertas feitos por António Guterres na fronteira da Faixa de Gaza.
Os “pecados” de Guterres
O que o governo de Israel não perdoa (a Guterres e) à UNRWA é que ela tem sido uma ajuda preciosa para que os palestinianos mantenham a esperança. É a UNRWA que assegura alimentação, cuidados de saúde e uma rede de educação, na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, e também noutros países onde há refugiados palestinianos. O governo de Israel odeia a UNRWA porque se ela deixasse de existir isso contribuiria para que os refugiados palestinianos “desaparecessem”. O governo de Israel que argumenta não fazer sentido que os palestinianos nascidos depois da fundação do Estado de Israel sejam considerados refugiados, é o mesmo governo que reivindica um território com base numa presença do povo judeu há milhares de anos.
O que o governo de Israel não perdoa a António Guterres é a coragem do Secretário-Geral da ONU ao afirmar que o ataque do Hamas não surgiu do nada. Guterres lembrou os 56 anos de ocupação israelita e a humilhação diária a que os palestinianos têm sido sujeitos. É disso que o governo de Israel não quer que se fale. Como não quer que se fale, e Guterres tem falado, da violação do direito internacional humanitário; como não quer que se fale dos colonatos e do seu consecutivo crescimento e expansão.
O que o governo de Israel não quer que se fale é que ainda na sexta-feira (22 de Março), dia em que recebia o secretário de estado norte-americano, anunciou a anexação de 800 hectares de terra palestiniana no Vale do Jordão, Cisjordânia. Segundo a organização israelita “Paz Agora”, é a maior anexação de terras palestinianas desde os Acordos de Oslo (1993). O anúncio desta apropriação foi feito pelo Ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, figura da extrema-direita e do movimento de colonização, que considerou a decisão uma “medida espectacular e importante para a colonização” judaica na Cisjordânia. O que Israel não quer que se fale é das advertências da ONU relativamente à possibilidade de haver crimes de guerra associados à questão dos colonatos.
O que o governo de Israel não quer que se fale é dos prisioneiros palestinianos (quase 10 000) e dos que morreram nas prisões depois do 7 de Outubro. O que Israel não quer que se fale é que, apesar de fazer grande alarido acusando a Cruz vermelha Internacional de não fazer o que deve para ter acesso aos reféns israelitas em Gaza, impede a mesma organização de ter acesso aos palestinianos presos nas cadeias israelitas. Desde 7 de Outubro que esse acesso está vedado à Cruz Vermelha Internacional.
Israel, já sabemos, nunca teve um governo tão extremista e tão focado em acabar com qualquer esperança de um Estado Palestiniano. Entre muitos outros, o actual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, diz abertamente que outra coisa não tem feito na vida a não ser combater a solução dois Estados. O que surpreende é que não haja uma única sanção para quem diz, sem rodeios, que não tem qualquer intenção de respeitar o Direito Internacional e as resoluções da ONU que regulam o conflito israelo-palestiniano.
Perante tudo isto, a fúria dos actuais governantes israelitas não deve preocupar António Guterres. Antes pelo contrário, ela significa que Guterres está a fazer o que deve e do lado certo da história.
Por José Manuel Rosendo em Meu mundo Minha aldeia.
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