Uma greve de quem não pode fazer greve
Está marcada para esta sexta-feira, 22 de março, e promete ter impacto. É mais uma “paralisação pacífica” dos estafetas, sob o mote “Respeito”, tendo como foco o valor das tarifas e como reivindicação principal um pagamento mínimo de 3 euros por entrega, a que se deve somar um valor por quilómetro. É uma reação à compressão dos valores pagos pelas aplicações digitais (UberEats, BoltFood, Glovo), que obrigam estas pessoas, se quiserem ganhar um rendimento que lhes permita sobreviver, a fazer horários de 10, 12 ou mais horas por dia e a trabalhar sem folgas nem fins de semana, sem hora para voltar para casa, sem pagamentos pelos tempos de espera.
É uma greve? A pergunta tem duas respostas possíveis.
Formalmente, não é uma greve, na medida em que os estafetas não têm ainda, legalmente, o estatuto de trabalhador por conta de outrem, não estão enquadrados pelo direito do trabalho, são supostamente empresários por conta própria ou trabalhadores independentes.
Esta é uma questão, aliás, em apreciação pelos tribunais. Há 861 processos que aguardam decisão, na sequência da nova lei que entrou em vigor em maio do ano passado, que inclui uma “presunção de laboralidade” para reconhecer um contrato de trabalho aos trabalhadores das plataformas e que previu que a Autoridade para as Condições do Trabalho deveria fazer ações inspetivas e que, caso as empresas não regularizassem estes casos, o Ministério Público avançaria para tribunal. Em todo o caso, até ver, ainda não há contratos, ainda não se aplica o direito do trabalho. Estes trabalhadores também não têm (ainda?) um sindicato que organize estes protestos ou que convoque esta “paralisação”.
Poder-se-ia então dizer que não é uma greve. Mas na substância, sim, é uma greve. Uma greve de quem não pode, formalmente, fazê-la. Uma greve de quem tem como patrão um algoritmo e é atirado para a condição de pessoa-empresa. Uma greve dos trabalhadores da nova escravatura digital. Uma greve de novo tipo, que já teve lugar noutros países (no Brasil, estes protestos ficaram conhecidos como o “Breque dos Apps”) e que também já aconteceu em Portugal, quase clandestina, no passado dia 21 de fevereiro.
Nesse dia, nenhum jornal, nenhuma rádio, nenhuma televisão, nenhum sindicato deu notícia desse acontecimento peculiar. Mas nas praças da alimentação de vários centros comerciais, e à porta de vários McDonald’s das principais cidades do país, uma greve aconteceu. Frente a estes locais em que se concentram os restaurantes mais populares nas aplicações digitais, os estafetas marcaram presença em protesto e deixaram a comida à espera. “Lamentamos muito”, escreveu a Glovo nesse dia 21 aos clientes, “mas devido à alta procura não podemos processar novas encomendas”. A palavra greve jamais foi pronunciada pela empresa. Mas era disso que se tratava. As aplicações entupiram porque os trabalhadores pararam. As plataformas tentaram pagar preços inimagináveis para quebrarem o protesto, mas a adesão obrigou-as a desligar a aplicação durante algum tempo. Não tinham quem transportasse os pedidos.
Ao mesmo tempo, as aplicações tentaram retaliar contra o protesto, ameaçando “desativar permanentemente” os trabalhadores, ou seja, impedi-los de aceder à aplicação. Se aceitarmos que eles são, de facto, trabalhadores subordinados da aplicação, então do que se tratou foi da ameaça de despedir sem justa causa estes trabalhadores, quase todos migrantes, todos sem contrato.
Mas esta conduta das aplicações não teve sucesso. É certo que a precariedade extrema em que assenta o “modelo de negócio” das plataformas é um forte entrave à organização sindical. É evidente que a condição migrante destes trabalhadores e o seu frágil estatuto de cidadania contribui para inibir a ação coletiva. É claro que a ausência de um estatuto de trabalhador que lhes seja reconhecido os põe fora dos mecanismos institucionais de voz e representação coletiva. E no entanto, o mundo move-se: na sombra, vai crescendo uma mobilização, através de coletivos informais e de redes de contacto. Nos lugares da maior exploração, há sempre formas de resistência. Onde se forja o despotismo digital, inventam-se também solidariedades. Nos mecanismos de maior desconstrução das proteções coletivas do trabalho, há sempre uma força dos de baixo que encontra os seus modos de emergir. Se o mundo digital continua a depender do trabalho vivo, este encontra também as formas de demonstrar a sua força e imprescindibilidade.
E assim ressurge, em novos modos, este velho repertório de luta de quem trabalha: a paralisação, a greve. Estejamos atentos – e solidários.
Artigo publicado em expresso.pt a 20 de março de 2024
Nenhum comentário:
Postar um comentário