A ascensão da extrema-direita no 50º aniversário da Revolução dos Cravos: a morte da esquerda portuguesa?
É preciso entender o caráter sui generis de Portugal, situado na semiperiferia do sistema capitalista; a disputa pelo imaginário da memória coletiva, oscilando entre os ideais revolucionários do 25 de Abril e uma idealização remanescente do período colonial aliada a uma ofensiva global da extrema-direita; além do impacto das políticas de austeridade que facilitaram o ressurgimento da direita em um momento tão singular.
Publicado em 26/03/2024 // 1 comentário
André Ventura, presidente do partido de ultradireita Chega, com apoiadores em Portugal. Foto: Miguel Riopa/AFP.
Por Marcela Magalhães
No marco dos 50 anos da Revolução dos Cravos, Portugal se vê com a eleição de 50 deputados de extrema-direita, um deputado eleito para cada ano desde a Revolução. Uma eleição significativa, refletindo uma derrota notável para as forças de esquerda, e que foi amplamente reportada pela mídia europeia como o momento em que a extrema-direita consolidou sua presença no poder legislativo do último país da Europa onde ainda não havia conseguido uma expressiva representação política. Apesar das motivações variadas do eleitorado, mais de um milhão e cem mil pessoas votaram no partido Chega. É um sinal de alarme.
Para entender melhor o contexto, é preciso ter em mente que essas eleições foram conduzidas de forma acelerada, em resposta a uma fase especialmente turbulenta da política nacional: a dissolução do governo, pela segunda vez, em menos de dois anos. É um cenário que segue um roteiro característico já bem conhecido por aqueles que estudam a ascensão da extrema-direita: estabelece-se uma atmosfera de instabilidade governamental, propicia-se a formação de “governos técnicos” distantes da identificação popular, desembocando na proeminência de figuras da extrema-direita, apresentadas como alternativas “outsider” ao sistema estabelecido, culminando em suas eleições.
Este padrão não é exclusivo de Portugal, assemelhando-se às experiências de Itália e Brasil, onde a destituição de governos – justificada pelo combate à corrupção, alegações de incapacidade de governança e a judicialização da política – contribuíram para a erosão progressiva da confiança da população nas instituições governamentais. Conjuntura que favoreceu o surgimento de figuras que se apresentam como alternativas ao establishment. Esse caos, muitas vezes manipulado, propiciou o fortalecimento de um expressivo bloco de direita, que gradualmente ajudou a minar e marginalizar ainda mais a esquerda. É fundamental reconhecer claramente que a ascensão da extrema-direita é um fenômeno organizado em escala internacional, mas que seu desenvolvimento ocorre de maneira distinta em cada país.
Quanto ao resultado destas últimas eleições, é inegável que a esquerda enfrentou um revés significativo, especialmente ao observar que, juntos, o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) não alcançaram sequer a marca de 10 deputados eleitos dos 230 assentos parlamentares, o que gerou intensos debates sobre o futuro da esquerda em Portugal. Reflexões similares às de pensadores como Vladimir Safatle sobre o espectro político brasileiro começaram a surgir, levantando a hipótese de uma “morte da esquerda”. Contudo, declarar a morte da esquerda lusitana é prematuro. Embora seja verdade que a esquerda portuguesa enfrente desafios, marcada por uma série de ataques visando sua diminuição, ela não está extinta. Existe uma erosão clara de sua influência e poder de ataque, mas, apesar dessas “mil tentativas de assassinato”, a esquerda permanece viva, ainda que convalescendo.
Para termos uma ideia, ao longo da campanha eleitoral, a representação dos partidos políticos na mídia tornou-se um visível campo de disputa ideológica, atingindo pontos críticos muitas vezes com o silenciamento e a exclusão, por exemplo, de Paulo Raimundo, atual secretário-geral do PCP. Apenas para citar um caso, em um dos principais jornais nacionais em que mostrava os concorrentes ao governo, o candidato comunista foi o único a “convenientemente” não aparecer. Também um podcast chamado “Lei da Paridade”, veiculado por um renomado jornal nacional e apresentado por três mulheres com menos de 25 anos, oriundas de diversos partidos políticos, gerou grande revolta nos militantes comunistas. A indignação não veio apenas pela exclusão dos comunistas da “paridade”, mas também pela justificativa esdrúxula de que o Partido Comunista não seria “feminista”. Isso ignora não apenas o histórico do PCP na luta pela descriminalização do aborto, mas também inadmissível em um ano em que até a Fundação Gulbenkian celebra a vida de Maria Lamas, uma comunista cuja obra em prol dos direitos das mulheres é extremamente reconhecida. Essa exclusão na mídia evidencia a marginalização mais ampla do partido no cenário político e na narrativa pública portuguesa. Além disso, muitas propostas de leis que beneficiam os trabalhadores, aprovadas em governos anteriores, passaram a ser atribuídas ao “governo de situação”, omitindo-se frequentemente o mérito de que muitas melhorias foram propostas pelo PCP. Voltaremos a isso mais à frente.
Argumentar que a diminuição da capacidade ofensiva da esquerda é a única explicação para o crescimento da extrema-direita, contudo, seria uma simplificação. Dentre outros fatores, é preciso entender o caráter sui generis de Portugal, situado na semiperiferia do sistema capitalista; a disputa pelo imaginário da memória coletiva, oscilando entre os ideais revolucionários do 25 de Abril e uma idealização remanescente do período colonial – aliada a uma ofensiva global da extrema-direita, como já falamos. Também é importante lembrar do impacto das políticas de austeridade que facilitaram o ressurgimento da direita em um momento tão singular.
Portugal: imigração e ascensão da extrema direita na semiperiferia do capitalismo
A ascensão da extrema-direita é sintomática da crise estrutural do capitalismo. Portugal situa-se numa posição intermediária no sistema capitalista, conectando os países desenvolvidos, que dominam o cenário econômico e financeiro global, com as nações em desenvolvimento ou subdesenvolvidas, muitas vezes posicionadas à margem desse sistema. Isso implica uma relação de dependência e influência mútua com as economias centrais, seja por meio de investimentos recebidos, a adoção de políticas econômicas alinhadas ou a participação em fluxos de comércio internacional.
Frequentemente descrito como o “quintal da Europa”, o país enfrenta a exploração econômica pelas nações mais poderosas, enquanto simultaneamente compete com países menos desenvolvidos por investimentos estrangeiros. Essa competição ocorre às custas da qualidade de vida e das condições de trabalho dos que moram em Portugal. A gentrificação e a conversão de áreas residenciais em destinos turísticos de elite, principalmente para visitantes do norte da Europa, tornaram-se manifestações visíveis dessas dinâmicas: processos que exacerbaram as desigualdades sociais e têm contribuído para o deslocamento das comunidades locais.
De acordo com uma análise do Instituto Italiano de Estudos de Política Internacional (ISPI), Portugal era o destino número um para aposentados italianos, em 2022. Especialmente devido às vantagens fiscais que oferecia, permitia desfrutar de um padrão de vida superior em comparação a outros países europeus. Essa tendência foi intensificada pela ascensão do trabalho remoto, atraindo moradores que, recebendo salários de países com economias mais fortes, optaram por viver em Portugal, onde o custo de vida era inicialmente mais baixo. Contudo, para os residentes locais, cujo salário médio rondava os 700 euros, esse influxo foi uma armadilha que resultou em um aumento significativo do custo de vida e das despesas habitacionais, tornando as cidades progressivamente mais caras. Entretanto, quando se fala de impactos de “invasão de estrangeiros” geralmente a comunicação social não se refere a estes europeus do Norte, mas aos trabalhadores de países do Sul Global, criando um “inimigo comum” com um recorte de classe específico: o imigrante é, antes de tudo, um pobre.
Maurizio Ambrosini, professor italiano especialista em estudos sobre imigração, gosta de notar, aliás, que a categorização de “imigrante” não se refere meramente à origem geográfica, mas está intrinsecamente ligada à sua condição econômica. Nesse sentido, a retórica tanto da extrema-direita quanto de setores liberais revela uma distinção clara: indivíduos vindos do Norte Global frequentemente são isentos da conotação negativa associada ao termo “imigrante”, sendo em vez disso descritos como “nômades digitais” ou expatriados. Por outro lado, essa mesma consideração raramente se aplica a pessoas oriundas de regiões mais pobres ou do Sul Global, que experimentam uma marginalização significativa, em especial com o avanço da uberização.
O uso instrumentalizado do tema da “migração” pela extrema-direita – tanto ao falar de jovens portugueses que saem do país em busca de melhores condições como aqueles estrangeiros que chegam pelos mesmíssimos motivos – reflete a complexidade das dinâmicas de classe no contexto da globalização neoliberal, em que as políticas econômicas e a mobilidade internacional são filtradas através das lentes da desigualdade e da hierarquia imperialista. Mobilidade que recorda, de modo inequívoco, as continuidades e rupturas nas relações de poder e identidade que foram moldadas por séculos de história colonial, quebradas a partir do 25 de Abril. Aliás, a questão da memória também é um aspecto importante para entender a ascensão da extrema direita no aniversário importante da queda do fascismo e da descolonização.
Memória do 25 de abril neutralizada pela mentalidade colonial?
A memória é uma salvaguarda contra a tentativa das classes dominantes de reescrever a história em seu favor, apagando as lutas e resistências dos oprimidos. É verdade, parafraseando Walter Benjamin, que, ao preservar as memórias das lutas passadas, constrói-se um contraponto essencial às narrativas históricas dominantes que legitimam o status quo. No entanto, é curioso observar que, apesar da frequente menção nos meios de comunicação portugueses, a memória dos avanços sociais conquistados pela Revolução dos Cravos, não parece ser suficientemente forte para inspirar e mobilizar a nova geração de jovens em Portugal.
Desde abril de 1974, uma consequência direta da política de conciliação pós-Revolução tem sido a batalha em curso pela memória histórica e pela hegemonia ideológica, em Portugal. A glorificação do colonialismo fascista e o esvaziamento da memória histórica sobre o período pré-Revolução dos Cravos (25 de Abril) constituem um esforço para reescrever o passado e influenciar a percepção pública sobre o presente e o futuro. Em outras palavras, sempre existiu um esforço narrativo contínuo no qual o saudosismo pelo colonialismo de segmentos de direita tem neutralizado as lembranças e os ideais revolucionários de Abril.
Assim, vemos que a crescente adoção de ideologias negacionistas, incentivada pela globalização e pelo fortalecimento da extrema-direita, tem sido exacerbada por essa nostálgica idealização do período colonial. Uma visão que enaltece o país como uma nação de heróis, perpetuada tanto pelos monumentos que enfeitam a rede metropolitana da capital quanto pelo próprio hino nacional, que, apesar das transformações pós-revolucionárias e do processo de descolonização, permaneceu e evoca o passado colonial como um legado glorioso. Este panorama desafia a tentativa de vincular os princípios democráticos e progressistas da Revolução dos Cravos às preocupações atuais dos jovens, em um ambiente caracterizado pelo ressurgimento de discursos ultranacionalistas e pela saudade do império. O “Cumprir Abril” passou a ser percebido apenas como retórica por grande parte dos jovens, seduzidos pelos discursos da direita.
Esta aparente neutralização da “memória de Abril” é preocupante, especialmente quando consideramos a análise de Antonio Gramsci sobre o papel crucial da hegemonia cultural na consolidação do poder pelas elites, que se valem de instituições educacionais e culturais para disseminar sua ideologia e validar sua supremacia. O espírito da Revolução de Abril se encontra em oposição direta aos esforços de enaltecimento do colonialismo. Estes esforços, manifestados através de monumentos pós-revolução e narrativas que glorificam o passado colonial e fascista, acabam por atuar como instrumentos de controle ideológico cotidianos e contínuos. Eles buscam solidificar uma identidade nacional que omite as conquistas das lutas pela liberdade e os princípios democráticos e progressistas, fundamentais para o legado de Abril.
Além disso, a esquerda muitas vezes minimizou o potencial do Chega, uma subestimação que não antecipou os perigos evidenciados pelo crescimento de 38% nos crimes de ódio contra imigrantes, apenas em 2023. Estes crimes, erroneamente justificados pelo argumento de que os imigrantes seriam um obstáculo ao progresso nacional, já indicavam o rumo problemático destas eleições. Esse aumento está intrinsecamente ligado a uma mentalidade colonial e à exploração acentuada desses grupos vulneráveis, tornando imperativo fomentar uma compreensão crítica da história que ultrapasse a simples celebração memorial e insira os acontecimentos históricos no contexto das lutas de classes e das relações de poder. A mera recordação de uma revolução nunca será suficiente sem uma análise crítica das condições materiais que facilitaram o renascimento da extrema-direita, como, por exemplo, a Troika.
Troika: a austeridade na via para o retorno ao fascismo
Como lembra Clara E. Mattei, em A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo, a austeridade acentua as contradições inerentes ao capitalismo e facilita o caminho às forças de direita. A resposta neoliberal à crise financeira, na forma de austeridade, visa sempre preservar o sistema capitalista às custas da classe trabalhadora e abre a estrada para o fascismo.
As políticas de austeridade, implementadas em muitos países europeus como resposta à crise financeira global de 2008, tiveram efeitos significativos no tecido social e econômico dessas nações. No caso de Portugal, essas políticas foram impostas pela Troika – um termo que se refere à Comissão Europeia, ao Banco Central Europeu e ao Fundo Monetário Internacional. A intervenção da Troika, em 2011, foi condicionada à adoção de um rigoroso programa de austeridade em troca de um pacote de resgate financeiro destinado a estabilizar a economia portuguesa. Como resultado, as condições precárias de vida foram exacerbadas por políticas neoliberais que promoveram a desregulamentação econômica, a privatização de serviços públicos e a erosão dos direitos laborais, contribuindo para o aprofundamento da desigualdade social e econômica. Essa deterioração socioeconômica ajudou a criar um terreno fértil para discursos populistas de direita, que oferecem sempre soluções simplistas para problemas complexos, frequentemente culpando minorias e imigrantes pelas dificuldades econômicas enfrentadas pela população.
As medidas de austeridade incluíram cortes profundos nos gastos públicos, como saúde, educação e segurança social, aumento de impostos e a implementação de reformas trabalhistas que visavam tornar o mercado de trabalho mais flexível, mas que também resultaram na precarização do emprego. Essas políticas tiveram como consequência uma recessão econômica, aumento do desemprego, emigração em massa, especialmente entre os jovens e uma crescente desigualdade social.
As políticas de austeridade intensificaram a insatisfação geral e minaram ainda mais a confiança na elite política tradicional e nos “partidos centristas”, percebidos como os principais responsáveis pela crise financeira e pelas severas medidas impostas pela Troika. Essa situação criou um terreno fértil para o avanço de movimentos de extrema-direita, que se aproveitaram do descontentamento popular, adotando discursos nacionalistas e anti-globalização e, novamente, atribuindo a imigrantes e minorias a culpa pelos desafios econômicos enfrentados pelo país. Assim, muitos eleitores viram e veem o apoio ao Chega como um “voto de protesto” contra uma classe política acusada de falhar na resolução dos problemas enfrentados pela sociedade.
No entanto, apesar de sua retórica contra o establishment, a extrema-direita propõe soluções que não desafiam as bases do capitalismo, desviando a atenção das verdadeiras causas da desigualdade e da exploração para questões de identidade nacional e cultural. Essa estratégia atua como uma cortina de fumaça, afastando o foco da necessidade de uma autêntica transformação socialista, que almeja uma mudança radical na organização da sociedade.
E qual o papel da esquerda nisso? Ela ainda existe mesmo?
A esquerda não morreu, apesar de quererem matá-la
A dinâmica atual de distração em relação à luta por uma transformação socialista aponta para uma manobra que visa desviar a atenção das massas da busca por uma reorganização verdadeira da sociedade e da economia, que atenderia às necessidades da maioria, em vez de apenas perpetuar o poder e a riqueza nas mãos de uma elite. Nesse contexto, a esquerda, longe de estar morta apesar dos esforços para silenciá-la, continua a ser uma força vital na luta contra a hegemonia contrarrevolucionária. Esta hegemonia busca não apenas enfraquecer a esquerda partidária, mas suprimir os movimentos populares de resistência radical.
A campanha persistente contra o comunismo, tanto na mídia tradicional quanto por parte de diversos grupos políticos em Portugal, é evidente. Um exemplo claro dessa postura é a posição de Paulo Rangel, vice-presidente do Partido Social Democrata (PSD), que apoiou a inclusão do Centro Democrático e Social-Partido Popular (CDS-PP) no futuro governo, uma escolha que descreveu como “natural”. Em contrapartida, Rangel excluiu o PCP dessa configuração, rejeitando qualquer diálogo com o partido, ao qual sustenta ser “não-democrático”, na Assembleia da República. Não se pronunciando sobre o caráter e a presença massiva do Chega, na formação da próxima legislatura. Ou seja, a rejeição ao comunismo parece sobrepor-se à defesa dos princípios democráticos fundamentais, abrindo espaço para a normalização e até a legitimação de ideologias de extrema-direita no espectro político português.
A redução do número de parlamentares do Partido Comunista Português (PCP) tem sido associada por alguns analistas às suas posturas em temas internacionais, como a situação na Ucrânia. Contudo, mesmo uma observação superficial sublinha que essa interpretação é parte de um esforço mais abrangente para enfraquecer a legitimidade da esquerda, impulsionado pelo pensamento neoliberal. Isso se evidencia não só pela manipulação das declarações e posicionamentos do PCP, mas também pela criação de uma narrativa voltada a isolar e diminuir o impacto político da esquerda. Um dos exemplos mais notórios dessa abordagem foi a cobertura mediática do posicionamento do PCP sobre Putin. A despeito de Jerónimo de Sousa, o antigo secretário-geral do partido, ter repetidamente expressado em discursos e aparições na TV a oposição ao apoio a Putin, a grande mídia frequentemente apresentou o partido sob uma perspectiva distorcida.
É importante reconhecer que essa não é apenas uma questão de viés midiático, mas que reflete uma estrutura de poder mais profunda na sociedade portuguesa, em que predominam os interesses capitalistas e neoliberais que moldam o discurso público. As mídias tradicionais, que se alinham com esses interesses, tendem a se opor a qualquer grupo político que apresente alternativas viáveis ao sistema vigente. A ausência de uma rede de mídia alternativa robusta, capaz de oferecer um contraponto a essa narrativa dominante e de retratar as perspectivas da esquerda radical de forma precisa e contextualizada, representa um desafio significativo. Essa lacuna deixa partidos como o PCP em uma posição vulnerável, refém e estrangulado, diante das mídias convencionais. Apesar dessas adversidades, o partido comunista mantém sua atividade política ofensiva, posicionando-se claramente contra o programa do governo de direita da Aliança Democrática (AD), anunciando uma moção de rejeição antes mesmo da posse do novo governo, após as recentes eleições.
As redes sociais e outras formas de mídia digital oferecem algum espaço para essa contraposição, mas enfrentam seus próprios desafios, incluindo algoritmos que limitam o alcance de conteúdos políticos, a proliferação de desinformação e os ataques de “ciber milícias”. A luta por uma representação justa e precisa na esfera pública, portanto, não é apenas uma questão de correção de narrativas, mas uma batalha na frente ideológica contra as forças do capital empenhadas em silenciar e enfraquecer as perspectivas da esquerda. Ultrapassar esse obstáculo demanda a criação de plataformas de mídias alternativas, ao mesmo tempo que exige um esforço coletivo para educar e mobilizar a base trabalhadora, criando uma contra hegemonia que desafie e eventualmente supere as narrativas impostas pelo neoliberalismo.
Além disso, a ideia de que a esquerda está morta é claramente desmentida pela realidade dos fatos. Movimentos sociais ativos, particularmente nas áreas periféricas urbanas, como o “Vida Justa” entre outros grupos, partidários ou não, têm exibido uma energia e perseverança notáveis, marcando presença nas ruas de Lisboa quase todo fim de semana, ao longo do último ano. Essas mobilizações organizam-se em torno de reivindicações por políticas que atendam às necessidades da classe trabalhadora, evidenciando um potencial considerável para intensificar a pressão social por mudanças.
Esses movimentos sociais emergem como autênticas forças de resistência ao fascismo e ao avanço da extrema-direita, demonstrando a capacidade de mobilização e ação direta característica da esquerda revolucionária. Um momento emblemático dessa atuação foi observado durante uma manifestação em outubro do ano passado, marcada por um episódio em que um membro do movimento “Vida Justa” confrontou e expulsou deputados do partido de extrema-direita Chega, numa manifestação contra a grave crise habitacional que assola o país. A presença dos deputados foi exposta como oportunista, especialmente no que diz respeito à questão da falta de moradia, um problema crítico que requer soluções concretas e não apropriações políticas superficiais.
Este confronto, amplamente divulgado nas redes sociais e meios de comunicação, ilustra como os movimentos sociais podem efetivamente desafiar e desmascarar as tentativas da extrema-direita de capitalizar sobre as crises sociais para avançar sua agenda. Além disso, reflete a importância desses movimentos na construção de uma resistência coletiva e na articulação de alternativas políticas que genuinamente busquem atender às necessidades da população, em contraste com propostas populistas e divisionistas.
A luta contínua e a organização destes movimentos – nas ruas de Lisboa e além – demonstram que a esquerda, longe de estar morta, está ativamente engajada na construção de uma sociedade mais justa. Ela continua a inspirar e mobilizar indivíduos e coletivos na busca por direitos, dignidade e soluções efetivas para os desafios enfrentados pelas classes trabalhadoras, constituindo um elemento crucial na luta contra o avanço de ideologias autoritárias e regressivas.
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Marcela Magalhães é doutora em Estudos Ibéricos/ Literatura Pós-colonial pela Universidade de Bolonha. Mestre em Direitos Humanos e Gestão de Conflitos, pela Scuola Superiore Sant’Anna di Pisa. Fez pós-doutorado na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab), em sociobiodiversidade e tecnologias sustentáveis, estudando comunidades quilombolas. Desde 2016, a partir de um período de estudos no CES/Universidade de Coimbra, pesquisa a extrema-direita. Co-fundou o coletivo de feministas CABE, em 2018, em Portugal. Escreve para o BlackPost, redação vencedora do prêmio de jornalismo Roberto Scialabba, apoiado pela Associação Nacional de Partigiani d’Italia, pelo empenho antifascista, na Itália. No Brasil, colabora com a Agência de Notícias das Favelas, Jacobin Brasil e outros meios de comunicação no campo da esquerda. Publicou, em 2015, o livro de ensaios De cafres e de cafajestes: fluxos e refluxos de personagens no Atlântico Sul (Premius) e, em 2023, o livro de contos O Almanaque dos insetos (Patuá). Em 2024, participou da antologia Lenin: The Heritage We (Don’t) Renounce (Daraja Press and Kickass Books 2024), junto com autores como Jodi Dean, Antonio Badiou, Michael Löwy, Slavoj Žižek etc.
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