terça-feira, 20 de maio de 2008

ARTIGO - A leitura como exercício da individualidade.

A autora é Renata Miloni e foi publicado na revista Le monde Diplomatique.

Um dos momentos em que mais se pode reconhecer, reconquistar e exercer a individualidade é durante uma lenta leitura. A mim, a literatura vale muito mais, ou melhor, tem seu real valor quando a atenção despretensiosa mas inevitável é o que move a leitura
Em novembro de 2007, o jornal Rascunho publicou um texto de Carlos Eduardo de Magalhães sobre o crítico literário. Apesar de ser um artigo opinativo, o autor registrou diversas teorias que, na sua opinião, descrevem de maneira exata o verdadeiro crítico.
Devo dizer que não me lembro de algum trecho com o qual eu tenha concordado. Magalhães separou com incalculável frieza o crítico de sua função principal: a de ler. Nos limites de minha ingenuidade, não consegui conceber, em instantes iniciais, uma razão para essa separação, direcionando o crítico a todos os (e aqui vai uma pitada de exagero) poderes da literatura — exceto o de ler. Com faixa etária estipulada e estratégias de guerra minuciosamente formuladas, o autor construiu o exterminador da crítica literária: aquele que determina, com inteligência e conhecimento únicos, o certo e o errado da arte em questão.
Por mais que isso cause um imenso estranhamento, o que realmente me preocupa é essa distância colocada entre o crítico e a leitura. Talvez por caminhar em zonas de combate, a leitura em sua forma original (e aqui vai um punhado nostalgia do mundo) beira a extinção. Claro, subtraindo o que as estatísticas nos mostram, me refiro à parcela leitora da população (não necessariamente somente a brasileira).
Ricardo Piglia, em uma entrevista, deu extrema importância à lentidão atenciosa que a leitura de um livro merece, a lentidão do deciframento:
Es necesario preservar esa lentitud. Hay que escapar del vértigo de la actualidad, llegar tarde a la moda, leer los libros cuando no son novedades...
Em seu texto, Carlos Eduardo de Magalhães insinua, a meu ver, que a função do crítico é identificar as influências literárias do autor de um livro. Mas para tal não é preciso, obviamente, ler? E como ser capaz de tão precisas identificações um leitor cuja prioridade é um maior número de leituras? Talvez por isso a idade seja tão importante para Magalhães. Mas (e a pergunta é simples) será que dá tempo?
Talvez os críticos sejam aqueles que mais precisam dessa lentidão da qual tão bem fala Piglia e, ainda assim, eles mesmos às vezes não conseguem evitar e se deixam levar pela tentação de acompanhar a pressa dos leitores contemporâneos. A pressa da moda. Hay que llegar tarde. Parece simples, e até bobo, mas como é possível "reconhecer fontes" em qualquer texto se a leitura foi acelerada para que o "repertório" do qual fala Magalhães aumentasse? Crítico bom é crítico obstruído?
Na opinião de Enrique Vila-Matas, uma obra fala por si mesma. Ao prestar mais atenção ao que disse o escritor espanhol, percebo a diferença entre ter o "repertório" e fazer dele sua literatura sem que deixe tomar sua própria literatura — o que Vila-Matas faz —, e conhecer tanto (não, nem sempre o saber importa) para apenas servir de "prova de fontes" — o que Magalhães parece achar certo um crítico fazer.
Na verdade, cada leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo. A obra do autor não passa de uma espécie de instrumento óptico que ele oferece ao leitor para permitir-lhe que consiga discernir o que, sem tal obra, provavelmente não teria visto dentro de si. (Proust em O tempo redescoberto)
Um dos momentos em que mais se pode reconhecer, reconquistar (porque anda perdida) e exercer a individualidade é durante uma lenta leitura. A mim, a literatura vale muito mais, ou melhor, tem seu real valor quando a atenção despretensiosa mas inevitável — e honesta, sem dúvida — é o que move a leitura.
Mas será que ela pode resgatar o indivíduo do abismo para o qual a pressa de estar em primeiro, acima, o empurra? Esse resgate é possível se o leitor perceber que uma grande obra, como disse Vila-Matas e com o que concordo plenamente, fala por si mesma? Se perceber que o livro é também — por que não? — um indivíduo e, portanto, deve ser lido por ele mesmo e não para encontrar resquícios, apesar de a literatura ser feita desse abrigo? Poderá o crítico de Magalhães se considerar um indivíduo ao ler? Hay que llegar tarde.

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