terça-feira, 20 de maio de 2008

MEIO AMBIENTE - "Guerra no fim do mundo": 36 horas em Roraima.

Até que enfim um jornalista do quilate do Ricardo Kotscho foi fazer uma matéria "in loco" em Roraima.

BOA VISTA - Era deveras preocupante o noticiário embrulhado no pacote de jornais que levei para ler na longa viagem de São Paulo a Boa Vista, a pequena e bem cuidada capital de Roraima, no extremo norte do país, próximo às fronteiras da Venezuela e da Guiana Inglesa. A região ganhara notoriedade nacional naqueles dias em função dos conflitos provocados pela demarcação contínua das terras indígenas da região de Raposa Serra do Sol. Falava-se numa assustadora “guerra no fim do mundo”, talvez pela enorme distância entre as duas cidades brasileiras.
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Cheguei a Roraima às duas horas da tarde de quarta-feira, dia 14, depois de oito horas de viagem, para fazer uma palestra no mesmo dia à noite na VII Semana Roraimense de Comunicação e Marketing, no belíssimo Palácio da Cultura Nenê Macaggi. Trinta e seis horas depois, quando peguei o avião de volta, na madrugada de sexta-feira, estava mais confuso do que quando cheguei, mas já tinha uma vaga idéia sobre o que realmente está em jogo nesta “guerra do fim do mundo”.
Antonio Diniz
Vista aérea da cidade de Boa Vista, capital de Roraima
Não se trata apenas de mais uma disputa pelas terras brasileiras reivindicadas por muitos donos, no caso fazendeiros plantadores de arroz e 18 mil índios de 194 comunidades (macuxi, tauperang, patamona, wapixana, entre outras) espalhadas por uma área de 1,7 milhão de hectares, como tantas outras que, de tempos em tempos, pipocam pelo país.
Esta é apenas a parte mais visível de um litígio político entre o poder local e a União, que remonta à transformação do antigo Território Federal de Roraima em Estado, decisão adotada pela Constituinte de 1988. Vinte anos depois, o governo de Roraima detém apenas 7,34% da área do antigo território, enquanto as comunidades indígenas já controlavam 46, 68%, antes mesmo da demarcação contínua de Raposa Serra do Sol, sendo o restante de propriedade da União (terras de fronteira ou do Exército).
Como os índios representam apenas 10% da população de 394 mil habitantes de Roraima, há enormes áreas ainda pouco habitadas em que reina a lei do mais forte, a terra é conquistada a bala e o poder do Estado simplesmente inexiste. Mais de 60% da população de Roraima vive em Boa Vista, a capital. O Estado tem apenas 15 municípios.
O mais famoso deles agora é Paracaima, próximo à fronteira com a Venezuela, a três horas de carro de Boa Vista pela BR-174, onde reina o prefeito Paulo César Quartiero (DEM), um gaúcho bravo que também é líder dos arrozeiros, preso duas vezes este ano, e solto em Brasília no dia em que eu estava aqui. Na chegada dele a Boa Vista, na sexta-feira, Quartiero foi festejado como um herói de guerra por uma carreata com mais de um quilômetro de seguidores.
Alfredo Maia
Vale do Surumu, que fica na entrada de Paracaima, está na terra demarcada
Em Boa Vista, não há sinais dessa guerra, cujo epicentro fica a 200 quilômetros daqui, na Vila Surumu, na entrada de Paracaima, um povoado de apenas 900 moradores, onde fica a fazenda Depósito, com 4 mil hectares, um dos latifúndios de Quartiero na região. Foi lá que acamparam desde o início de abril as tropas da Força Nacional e da Polícia Federal, encarregadas de cumprir a ordem de tirar da área todos os não-índios, em função do decreto assinado três anos atrás pelo presidente Lula, homologando de forma contínua a terra indígena de Raposa Serra do Sol.
“Isso é cíclico. Já era assim em 1998, quando cheguei aqui. Havia muita discussão sobre a demarcação de terras indígenas, um assunto que rende há tempos e sempre ganha força nos anos eleitorais. A disputa não se restringe ao direito da terra para os índios ou aos arrozeiros, mas faz parte da disputa política pelo poder no Estado, pela hegemonia de determinado grupo político em detrimento de outro”, me explica o professor paraibano Damião Marques, 39, coordenador do curso de Jornalismo da Faculdade Atual da Amazônia, meu anfitrião nesta visita.
Índios e arrozeiros, de fato, são os combatentes visíveis desta guerra em que encontramos, de um lado, o governo do Estado; de outro, a Igreja católica. Por trás deles, colocam-se duas forças de influência. Do lado da Igreja, o governo federal, decidido a ir até o fim no processo de “desintrusão da área”, ou seja, mobilizar a Polícia Federal e a Força Nacional para tirar os não-índios da área demarcada por decreto. De outro, o governo do Estado, que defende os fazendeiros ali instalados em 116 mil hectares plantados de arroz, sob a bandeira do desenvolvimento econômico, disposto a lutar para assumir o domínio territorial de Roraima, hoje quase todo sob o controle dos índios e da União.
Dos dois lados, perfilam-se as forças auxiliares: a Igreja católica tem a seu lado a maioria dos índios reunidos no CIR (Conselho Indigenista de Roraima), hoje donos de uma boiada de 35 mil cabeças, apoiados por uma miríade de ONGs nacionais e internacionais; do lado oposto, o governo do Estado e os fazendeiros contam com a simpatia dos militares e das igrejas e seitas evangélicas, além da dissidência de algumas comunidades indígenas que trabalham com os arrozeiros.
Quer dizer, há aqui um claro choque entre Igreja e Estado, que já formaram um só poder quando da formação de Roraima, a ponto de os interventores federais morarem na Prelazia de Boa Vista, e uma disputa entre católicos e evangélicos, e entre índios e índios, tendo como pano de fundo o jogo de interesses do poder político local (a reportagem completa com os antecedentes históricos desse conflito será publicada na edição de junho da revista “Brasileiros”, que estará disponível também no iG).
Antonio Diniz
Ocas da tribo Waimiri
Evidente descompasso
Para quem acabou de chegar, há um evidente descompasso entre este clima de beligerância permanente e a hospitalidade dos nativos de Boa Vista, que continuam recebendo com muito carinho visitantes eventuais como eu e forasteiros vindos de todos os cantos do país em busca do eldorado amazônico.
Com seu traçado inspirado em Paris, as principais ruas e avenidas bem arborizadas convergindo para uma praça central, o Centro Cívico, que se abre em forma de leque, onde ficam a catedral e as sedes dos três poderes, Boa Vista ainda tem um trânsito civilizado, onde os motoristas respeitam a faixa dos pedestres, coisa que só vi em Brasília.
Tem lá até um Portal do Milênio, modesta cópia do Arco do Triunfo, uma das polêmicas marcas deixadas pelo brigadeiro Ottomar Pinto, interventor e depois governador e prefeito várias vezes, primeiro e talvez último coronel clássico de Roraima, morto no final do ano passado.
Você pode andar sem medo por suas ruas a qualquer hora do dia ou da noite e não deve estranhar se as criadas das casas chiques vierem conversar com você em inglês. Algumas são bilingues, mas a maioria delas com seus longos cabelos negros de índias, só falam a língua nativa da Guiana Inglesa, de onde emigraram. Não gostam de cozinhar feijão e detestam peixe, que é o que mais tem nestas terras de savanas a perder de vista.
O mais estranho, porém, é não poder ver ao vivo o jogo Fluminense e São Paulo, pela Taça Libertadores, que a Globo transmitiu para todo o país naquela noite de quarta-feira. Saí correndo do local da palestra, que estava lotado por mais de 500 pessoas, em sua maioria jovens estudantes, para ver se pegava pelo menos uma parte do jogo, mas a Globo estava transmitindo outra coisa àquela hora.
Só à meia noite daqui (o fuso é uma hora a menos do horário de Brasília), quando finalmente cheguei ao hotel, depois de comer um belo matrinchã na brasa, entrou no ar na Globo o vídeo-tape com os melhores momentos do jogo, como acontecia muito antigamente nos tempos em que não se via futebol ao vivo na televisão em qualquer parte do país à mesma hora. Vai ver que é por isso que deram o apelido de “guerra do fim do mundo”, tão longe e tão perto fica Roraima do Brasil.
Alfredo Maia
Policiais fazem a segurança no Vale do Surumu
As tropas federais já levantaram acampamento, os índios organizados pelas lideranças do CIR na Vila Surumu se dispersaram ou passam os dias jogam futebol, reina uma estranha e silenciosa paz em toda a região, só abalada com a barulhenta volta do líder Paulo César Quartiero, que logo seguiu para seu quartel-general em Paracaima.
Agora, todos estão à espera da decisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal, que anunciarão com quem devem ficar as terras de Raposa Serra do Sol. Prevista, segundo as últimas informações de Brasília, para meados de junho, qualquer que seja a sentença do STF, dificilmente a paz voltará a reinar na região.
O governo federal mexeu com um vespeiro e vai ser difícil colocar ordem novamente na colméia. Há muitos interesses em jogo nestas terras, onde o império da lei ainda é um sonho distante e a cobiça tem várias latitudes e nacionalidades. Enquanto isso, o poder político local, que é quem está dando cartas e continua comprando terras, discute se Quartiero deverá ser candidato a governador ou a senador nas próximas eleições.
O pior de tudo: desde o dia 8 de maio, quando um atentado atribuído pela Polícia Federal às tropas de Quartiero deixou dez índios feridos, os 1008 professores indígenas deixaram de dar aulas nas 203 unidades que atendem 11 mil crianças nas aldeias, por absoluta falta de segurança. Duas das vítimas do atentado eram estudantes, um deles menor de idade.
“São problemas graves que acabam com os direitos dos povos indígenas. Decidimos suspender as aulas porque não há segurança. Enquanto o Supremo Tribunal Federal não decidir, não podemos dar aula”, disse o coordenador do Centro Regional Mirikiô Makuxi, ao jornal “Monte Roraima”.

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