"A ditadura se viu obrigada a tirar o que lhe restava de máscara democrática".
Por Pedro Venceslau.
Em 1968, Arthur José Poerner era redator e articulista do Correio da Manhã, um dos raros veículos de comunicação a fazer frente à ditadura no Brasil. Mas não foi apenas dali que ele acompanhou os turbulentos dias que marcaram aquele ano. O jornalista e escritor esteve envolvido desde o início das manifestações estudantis no Rio de Janeiro, tendo inclusive carregado o caixão do estudante Edson Luis, morte que foi o estopim dos protestos dos jovens contra o regime autoritário.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Poerner, autor do livro O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros, dá a sua versão do significado de 1968 para o Brasil. Fórum – Como foi o ano de 1968 para você?
Arthur Poerner - Em 1968, aos 28 anos, eu chegava ao sexto de carreira jornalística, como redator e articulista do Correio da Manhã, que liderava a resistência à ditadura na imprensa, e ao meu terceiro livro, O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros, lançado pela Civilização Brasileira e um dos mais vendidos já no segundo nº da Veja, em 18 de setembro. Era quintanista da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (atual UFRJ) e, desde julho de 1966, o mais jovem brasileiro atingido por decreto presidencial de suspensão dos direitos políticos por 10 anos, o que me obrigara a renunciar à direção do semanário Folha da Semana, também do Rio de Janeiro, ligado ao Partido Comunista Brasileiro.
Rebelde sem causa até 1960, quando deixara a Escola Naval como aspirante da Marinha de Guerra, eu me politizaria e conscientizaria socialmente em viagens pelo Nordeste e pela Amazônia, como comissário de bordo da Cruzeiro do Sul, e com a ajuda do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), onde muito me impressionara a entusiasmada palestra de Jean-Paul Sartre sobre a Revolução Cubana. A fracassada invasão promovida pelos EUA na Baía dos Porcos, em 1961, já me encontrou na esquerda, mas só me organizei politicamente com o golpe militar, quando, decidido a resistir, procurei me aproximar do Partido Comunista. Por isto, na Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968, eu gritava "Povo organizado derruba a ditadura!", e não "Povo armado derruba a ditadura !".
Fórum - Quais ações da época foram equivocadas e quais foram corretas? O que poderia ter sido feito e não foi?
Poerner - Os que preconizavam a organização e a luta de massas para derrotar a ditadura no Brasil não incorreram, a meu ver, em equívocos relevantes em suas ações. Levaram-nas aos limites possíveis, que se esgotaram com a edição do AI-5, em 13 de dezembro, quando, com os colegas, também escritores, Edmundo Moniz e Franklin de Oliveira, tive que deixar a redação do jornal, num terceiro andar, pela janela, enquanto forças policial-militares a invadiam e o radialista Alberto Cury lia os drásticos dispositivos do ato em cadeia nacional. A luta armada, sim, foi um equívoco de estratégia política, mas é fácil dizê-lo 40 anos depois. À época, também tive dúvidas e nutri esperanças. Fórum – Qual o legado que ficou de 1968?
Poerner - Depois daquele ano, o mundo não foi mais o mesmo, embora o que a compulsão simplificadora da mídia relembre hoje como 68 tenha sido uma rebelião plural e diversificada, isto é, vários 68 coincidindo, com as suas peculiaridades locais, em diversos países. A nossa, por exemplo, foi deflagrada quando a Polícia Militar do Rio, então sob o comando do Exército, matou, no restaurante estudantil do Calabouço, em 28 de março, o estudante Edson Luís, que participava com colegas de manifestação pela melhoria da comida e da higiene; a francesa começou quando os universitários de Nanterre resolveram exigir o fim das barreiras que separavam os dormitórios masculino e feminino no campus. Não deixa de ser interessante distinção entre as aflições do terceiro e do primeiro mundos. No Brasil, a ditadura se viu obrigada a tirar o que lhe restava de máscara democrática, o que contribuiria para o seu inglório final; na França, as mulheres casadas se livraram da até então obrigatória autorização dos maridos para abrir contas bancárias, e as relações entre professores e alunos se tornaram menos autoritárias (já podem até se tratar por “tu”); pelo mundo afora, - México, Alemanha, Tchecoslováquia, etc. - , um alento libertário sacudiu relações anacrônicas de poder e ridicularizou a caretice, reforçando os movimentos ecológicos, feministas, das minorias raciais e sexuais; enfim, fortalecendo a luta mundial pela igualdade e pelos direitos humanos. O que resta a explicar - a ciência ainda não o conseguiu - é porque tudo isso aconteceu em 1968, inaugurado com a grande ofensiva do Tet (ano novo lunar) da Frente de Libertação Nacional do Vietnã. Algo a ver ?
Fonte: Revista Fórum.
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