A fome no Brasil e no mundo, por Aloysio Biondi.
Alceu Luís Castilho.
Aloysio Biondi nadava contra a corrente. Em 2000, participava de um curso de Jornalismo quando o jornalista Aluízio Maranhão o citava como uma das referências em sua formação. Perguntei por que, então, Biondi estava fora da grande imprensa – naquela época, assinando seus artigos cirúrgicos na revista Bundas, dirigida pelo Ziraldo. A resposta foi mais ou menos assim: “É que a visão econômica que ele defende não condiz mais com o tipo de cobertura atual nas redações”. Maranhão não fez a constatação em tom de lamento, parecia concordar com aquilo – afinal, dirigira o “Estadão” por vários anos e poderia ter aberto ali espaço para o jornalista. E pensei: ué, mas o discurso nos jornais não costuma ser o da abertura à diversidade? Por que no jornalismo econômico isso teria de ser diferente?
Não conheci Biondi. Tenho até hoje a lista de um vôo que não peguei, para Brasília, naquele mesmo ano de 2000. Era a final do prêmio Líbero Badaró e o jornal (o mesmo “Estadão”) não me liberou. Ele era um dos jurados. Não ganhamos o prêmio e, muito mais importante, perdi a chance de conhecê-lo. Poucas semanas depois ele morreu.
Agora os filhos e amigos dele cuidam de um site em sua homenagem. A reunião de textos publicados em sua longa carreira acaba de ultrapassar mil documentos (cerca de metade da produção total do jornalista). Sim, considero-os documentos da história recente do Brasil.
Abro o site e clico na palavra “fome”. Nada mais atual que a crise mundial na produção de alimentos, não é?
Começo com um artigo para a Bundas, de 1999. intitulado: “Trigo para os porcos, dona Ruth!” Ele se referia a uma notícia sobre colheita de trigo jogada nos chiqueiros, currais e galinheiros do Paraná, “para alimentar porcos, bois e galinhas”. Os agricultores não tinham para quem vender a produção. Biondi criticava a suspensão da entrega de cestas básicas para 8,5 milhões de pessoas no Nordeste e em outros bolsões de pobreza. Dispara o jornalista:
- Os mesmos alimentos que estão sobrando no campo são cortados das cestas. Ruína para milhões de famílias de agricultores, fome para milhões de brasileiros. Compras do governo representariam renda, emprego, consumo no interior – e crescimento para toda a economia. E o inacreditável genocídio que está ocorrendo nas regiões pobres seria evitado. Ah, sim, os porcos vão luzidiamente bem, obrigado.
Vou em frente. Agora é um artigo na “Folha de São Paulo”, de 1994: “Como estoques de alimentos apodrecem os estoques de alimentos.” O problema era similar: “Milhões de toneladas de arroz, feijão, milho, ou café apodrecendo nos armazéns. Qual brasileiro não viu essa notícia nos jornais, ou imagens dramáticas na TV algumas dezenas de vezes nos últimos meses?” Mas dessa vez Biondi defendia não exatamente o governo, mas o Estado, segundo ele responsabilizado equivocadamente pelos fatos. Vejam:
- A verdade é exatamente o contrário. O apodrecimento de colheitas, milhões de toneladas, é o resultado da atuação dos grupos empresariais que, com a ajuda de ministros e formadores de opinião, tomaram de assalto a economia brasileira, e promovem verdadeiro saque dos bens públicos em todas as áreas –inclusive alimentos. São os grupos que fingem defender a "privatização", mas o que procuram é manter negócios bilionários, às custas da classe média e do povão brasileiros.
Estamos agora em 1975, e Biondi pergunta, na Gazeta Mercantil: “Onde há coragem de ir à raiz dos problemas?” Ele falava do Plano Nacional de Alimentação, que, em sua definição, visava a “distribuição de alimentação ‘suplementar’ (que, para milhões de brasileiros é um eufemismo, já que são vítimas da fome endêmica) às populações marginalizadas”. E trata de uma questão que, pela nomenclatura atual, poderia ser resumida em: agronegócio ou agricultura familiar?
- Dos estudos realizados por vários Ministérios, surgiram duas alternativas: produção de alimentos industrializados, por grandes grupos empresariais, ou produção de arroz, feijão, milho, por parte – atente-se – de milhões de pequenos produtores. A primeira proposta levaria forçosamente, como o demonstra a experiência, à concentração também da produção agrícola, pois as grandes empresas logo formariam grandes projetos agroindustriais (...)
Ao fim desse texto, ele completa: “Está na agricultura a raiz dos problemas brasileiros. Dos desperdícios e distorções de todos os tipos."
Tudo isso entre dezenas de textos que podem ajudar muito em nossa reflexão atual – e percepção histórica – sobre o tema.
O último texto sobre fome encontrado no site não traz data, mas foi publicado, também na “Folha”, durante o governo de Ronald Reagan: “O Brasil não fica no Hemisfério Norte”. Aqui o problema dos alimentos ganha uma visão internacional:
- A notícia de que o governo Reagan vai propor que os outros países exportadores de alimentos também reduzam sua produção, para combater os “excedentes” mundiais, exige meditação por parte desses personagens. Surgida no exato momento em que os problemas dos países pobres são discutidos em reuniões do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, a iniciativa dos EUA mostra o divórcio que continua existir entre o Norte e o Sul. Ao norte, os países ricos (pois a Comunidade Econômica Européia também deseja a redução da produção agrícola) mantêm uma postura imutável, não tomam conhecimento de todas as propostas surgidas nos últimos anos na FAO, na Unctad, na Comissão Brandt, em favor de uma nova Ordem Econômica Mundial – em que a integração das economias dos países ricos e pobres permitisse o aumento da renda, a redução da miséria, a redução da fome para centenas de milhões de seres humanos do 3º Mundo. Impermeáveis a essa tragédia humana, os EUA e demais países ricos continuam a apontar a mesma saída que sempre apontaram: reduzir a produção, reduzir o nível de emprego, aumentar a fome, aumentar a miséria. Fácil. Simples.
O site em homenagem ao jornalista (e ao jornalismo de qualidade, preocupado primordialmente com seres humanos, e não empresas ou mercados) é o www.aloysiobiondi.com.br. Fica a sugestão: não tem como traduzir para o francês e enviar uns trechos para o Pascal Lamy?
Fonte: Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário