A transição em Angola
As eleições legislativas em Angola, em setembro próximo, representam um acontecimento importante para Angola, para a África, e para todos os democratas do mundo. Depois dos recentes e trágicos acontecimentos no Zimbabue e no Quênia, a África precisa de experiências democráticas bem sucedidas.
Boaventura de Sousa Santos
Dezesseis anos depois do último ato eleitoral, realizam-se no próximo dia 5 de Setembro eleições legislativas em Angola. Tudo leva a crer que serão eleições livres e que se, no pior dos casos, houver fraude eleitoral, ela não será significativa. É um acontecimento importante para Angola, para África, e para todos os democratas do mundo. Depois dos recentes e trágicos acontecimentos no Zimbabue e no Quênia (durante alguns anos considerado um país de exemplar transição democrática), a África precisa de experiências democráticas bem sucedidas. A importância especial de Angola neste contexto decorre do fator petróleo.
Como demonstram os casos acima mencionados, o petróleo não é o único fator de instabilidade política mas é um fato que historicamente a relação entre petróleo e democracia tem sido de antagonismo. É assim no Oriente Médio e foi assim na América Latina até à última década. Na África, um simples relance pelos maiores produtores de petróleo é revelador a este respeito. São eles, em função das reservas comprovadas de petróleo (medidas em mil milhões de barris): Líbia (41,5), Nigéria (36,2), Argélia (12,3), Angola (9), Sudão (6,4).
Objetivamente, o fato de mediarem dezesseis anos entre dois atos eleitorais significa que Angola é um país em transição democrática. Em situações destas, duas perguntas se levantam. Trata-se de uma transição irreversível? Qual a sua natureza sócio-política? Para a primeira questão são identificáveis duas respostas. Segundo a resposta pessimista, tudo está em aberto. Usando uma metáfora aeronáutica, a transição será um avião a subir mas ainda longe de atingir a velocidade de cruzeiro. Pode atingi-la ou pode cair entretanto. Ao contrário, a resposta otimista entende que depois dos traumas da guerra - Angola esteve em guerra mais de quarenta anos (de 1961 a 2002) – e da experiência política desde 2002, a transição não pode senão ser irreversível.
Há razões objetivas para considerar esta última resposta mais plausível. É certo que militam contra ela alguns fatores de peso: um setor fundamentalista do MPLA para quem as eleições visam apenas legitimar o poder que não podem pôr em causa; o excessivo peso do setor militar (com generais muito ricos, envolvidos em todo o tipo de negócios, do petróleo aos bancos e ao armamento); uma questão tabu em Angola – a questão étnica – a qual por não ser assumida politicamente pode germinar descontroladamente. Apesar disto, as razões a favor da irreversibilidade da transição são bastante fortes.
Primeiro, o MPLA está internamente dividido e se, por um lado, há os fundamentalistas, por outro lado, há aqueles que chegam a desejar que o partido não ganhe com maioria absoluta para aprofundar e alargar ainda mais a partilha de poder já existente. O próximo congresso do MPLA, marcado para Dezembro, será certamente revelador das tensões e tendências. Segundo, mesmo a classe empresarial, que em grande medida se criou à sombra do Estado e segundo processos que envolvem todo o tipo de favorecimento ilícito e de corrupção, deseja hoje mais autonomia e estabilidade, uma e outra só obtíveis em democracia. Terceiro, emerge uma pequeníssima mas influente classe média aspiracional que pretende ver reconhecido o seu mérito por razões que não as da lealdade política. Há hoje 100.000 estudantes universitários nas 12 universidades angolanas (a qualidade destas é outra questão).
Finalmente, no interior das classes populares cresce um associativismo de base, relativamente autônomo em relação ao MPLA e que o MPLA só poderá cooptar se der credibilidade ao jogo democrático e à partilha do poder.
A segunda questão, a da natureza da transição, é bem mais complicada. No plano político, tudo leva a crer que durante algum tempo a democracia angolana será uma democracia vigiada ou musculada, sujeita à venalidade dos políticos que o petróleo incentiva, à definição consular da agenda política, à tentativa de absorver as energias da sociedade civil e de as pôr ao serviço do Estado e do partido no poder. Será, em suma, uma democracia de baixa intensidade. No plano institucional, o presidencialismo auto-centrado e o peso-inércia do controle político do setor administrativo contribuirão para atrasar a consolidação das instituições políticas e administrativas. As necessidades da partilha do poder (ora mais real, ora mais aparente) e a tentação de distribuição populista de recursos não serão favoráveis à emergência de políticas públicas e sociais com credibilidade.
No plano social, é preocupante o aumento da exclusão social e a cada vez mais chocante convivência do luxo mais extravagante ao lado da pobreza mais abjecta. Apesar do vertiginoso crescimento económico dos últimos anos, Angola continua entre os 10 países com mais baixo desenvolvimento humano. Calcula-se que as reservas do petróleo terminarão dentro de 20 anos. Angola não tem muito tempo para se tornar uma sociedade mais justa e mais livre.
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
Fonte:Agência Carta Maior
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