A política mudou: cinco reflexões e cinco tarefas
O resultado eleitoral consagrou uma vitória clara à direita e, em particular, ao partido de cariz fascista. À esquerda, compõe-se uma palete de reações que se distribuem entre desabafos emocionais contra a escolha do povo e outras que, rapidamente, vaticinaram o “fim da esquerda”. Há razões para preocupação, tristeza e autocrítica: um trabalho pela frente duro e exigente. Contudo, arrisco começar esta opinião escrita vaticinando os que vaticinam o fim da esquerda e criticando quem se propõe representar o povo insultando-o. Deixarmo-nos embrulhar pelo desânimo é sempre um caminho que não podemos aceitar. Pessimismo da razão, otimismo da vontade.
1. Mais do que um resultado, uma consequência da instável estabilidade
É importante relembrar o episódio que nos trouxe até estas eleições. O Ministério Público entendeu envolver diretamente o Primeiro Ministro num comunicado no qual não explicitou a razão das suspeitas levantadas. O Presidente da República deu cobro a esse embuste. O Governo caiu e fomos a eleições. Esse lamentável episódio é uma fotografia já partilhada em vários sistemas políticos onde a extrema-direita conquista espaço e disputa hegemonia cultural dentro de instituições como os tribunais (em concreto, o Ministério Público), a comunicação social, as forças de segurança e o próprio exército. Tudo isso é verdade, tudo isso é quase nada para explicar o atual momento político.
O que é que explica a procura por um voto na extrema-direita? As governações do PS e do PSD-CDS nas últimas décadas e, em particular, desde o período em que convenceram uma maioria de que “vivíamos acima das nossas possibilidades”, fundiram a própria identidade do sistema democrático com a austeridade como fim da história. As “contas certas” são uma das maiores heranças desse legado nefasto. Asfixiando qualquer alternativa económica àquela imposta pelas regras do défice - só possíveis de cumprir com o enfraquecimento dos serviços públicos fundamentais, desvalorização salarial e degradação do papel do Estado Social - a Democracia deixou de responder aos problemas da vida real da maioria da população. Um cenário partilhado com praticamente toda a Europa. O senso comum daquilo a que apelidamos “Democracia” (o sistema) deixou de ser um projeto de futuro e tornou-se um empecilho numa narrativa muito animada por quem nunca gostou muito do Estado de Direito democrático e aproveita hoje os seus interstícios para o derrubar por dentro. Até os 50 anos do 25 de Abril sofrem por arrasto: a memória dessa efeméride é altamente contaminada pela descrença criada pelo atual estado de coisas (a situação). Lucros milionários dos bancos, concentração de riqueza por um punhado de multinacionais, aumento do fosso entre ricos e pobres, subida brutal da exploração laboral, do assédio, da precariedade, da mão de obra escrava, cada vez mais casas vazias e cada vez mais gente sem casa, jovens gerações a emigrar. Tudo isto sem solução à vista. Mesmo o acordo parlamentar encontrado em 2015 propôs-se - e bem - a recuar nas medidas mais escabrosas implementadas no período da Troika, mas sempre foi demasiado curto e sem alterações estruturais e significativas. Posto isso, mesmo assim, o Partido Socialista rapidamente tapou qualquer hipótese de ir mais longe. Uma das tarefas essenciais à esquerda passa por revisitar e atualizar a crítica à terceira via, ao mesmo tempo que compreende novas formas de diálogo com o povo que escolheu votar Partido Socialista. Até esta campanha, com o recém nomeado candidato “mais à esquerda de sempre do PS” foi marcada por uma procura de narrativa centrista em defesa das famosas contas certas que impedem qualquer projeto coletivo de um país que proteja quem aqui trabalha e vive. Os prejuízos dessa nova identidade em torno da força política que quer a exclusividade do centro político e social não são apenas para o PS, mas para a palavra Socialismo que não merece esse tratamento.
2. Um novo ambiente mediático: partidos, comentadores e o youtube
Só os partidos políticos foram a sufrágio universal por voto secreto. Isso não significa que a comunicação de cada um dos programas em disputa tivesse acontecido sem um brutal condicionamento, desde logo com um modelo de debate televisivo centrifugado e imediatamente filtrado por “especialistas” escolhidos a dedo, verdadeiros anotadores de rankings de prestação onde a resposta inacabada do candidato por clara falta de tempo era penalizadora para o próprio. Por cada trinta minutos de debate entre candidatos, quatro horas com dezenas de comentadores (a esmagadora maioria de direita). Podíamos dizer que se trata de um exercício autofágico por parte da comunicação social, mas eles sabem o que fazem. É este o modelo que torna a política um shit show onde só o soundbite mais populista sobressai. Os lamentos por parte de diretores de comunicação após os resultados de domingo são lágrimas de crocodilo e representam uma estratégia de comunicação pensada para nunca terem de assumir responsabilidade pelo papel lamentável que têm vindo a desempenhar nos últimos tempos.
A par desta nova forma de censura, onde a informação e a verdade nos é negada através da produção de uma multiplicação de análises que cansam mais do que analisam, é preciso compreender o principal fenómeno: o ciberfascismo. Qualquer youtuber digno desse nome tem mais visualizações num vídeo publicado há trinta minutos do que qualquer tempo de antena num perfil oficial de qualquer um dos partidos com assento parlamentar. Nessa nova realidade digital - que não é virtual, é bem real - ensinam-se crianças a investir a mesada em criptomoeda, debate-se sobre carros de luxo e como os pobres não compram porque não investiram bem, partilham-se sites ilegais de apostas desportivas, desenvolvem-se negócios de aplicações de prostituição amadora. A par disso, explica-se que em Portugal vive-se numa ditadura socialista, nos intervalos de entrevistas concedidas nos últimos dois meses aos principais rostos do Chega e da Iniciativa Liberal. É a massificação digital junto dos mais jovens dos jovens de um capitalismo de casino aliado a mensagens revanchistas, que atentam aos direitos das mulheres, das minorias étnicas, da comunidade LGBT, de imigrantes. Lembra a frase: “Liberal até dizer Chega?”, expressa num cartaz que alguém carregava numa manifestação. O ambiente é tóxico, dá vontade de utilizar a palavra de ordem da direita “Deixem as crianças em paz!”. A esquerda tem a tarefa histórica de reerguer a luta pelas ideias, disputar culturalmente visões do mundo, interagindo dentro dos novos fenómenos digitais de forma crítica e informada, até porque não há espaços vazios e a luta faz-se em todas as esferas da vida. Não se trata de correr atrás de uma moda, mas convém compreender como é que se comunica hoje, especificamente entre a geração onde o jornalismo de qualidade enquanto mediador fidedigno entre o cidadão e a realidade social é uma miragem. Também já se experimentou transferir a luta da rua para as redes sociais e não correu bem. Mas e se tratássemos de a apresentar aí para trazer essa revolta para a rua?
3. De espanto em espanto até ao espanto final
É importante assumir que as esquerdas (então as europeias!...) padecem de uma síndrome peculiar: uma saudade daquilo que nunca existiu. Essa melancolia atrapalha a nossa capacidade de moldagem a novas realidades. Erguemos bandeiras revolucionárias e nem sempre nos apercebemos que esse gesto pode ser até de resistência, mas diz muito pouco a uma maioria popular que partilha as mesmas dificuldades do que nós, mas não obrigatoriamente os mesmos regimes estéticos que produzem significados sobre o papel da ação política a que nos dedicamos. É um festim para os nossos adversários políticos: rapidamente tratamos os eleitores descontentes por fascistas e racistas, mas daqui a uma semana sai um estudo de um conceituado cientista social que nos explicará que uma parte substancial dessa massa de eleitores é de classe média baixa ou baixa, filhos de operários, vivem nos subúrbios, têm problemas no acesso à habitação, sobrevivem entre contratos precários e demoram mais de uma hora a chegar ao emprego pela insuficiência da rede pública de transportes. Ficaremos espantados, pelo menos alguns de nós. É tempo de dialogar com as camadas que dizemos representar e ser o centro do nosso discurso político. A reconfiguração da classe do proletariado opera-se nas transformações do mundo do trabalho mas não é apenas aí que se manifesta. Qualquer reconfiguração no tecido social tem impactos na vivência coletiva, na escolha daquilo que se ouve, lê e partilha, nos espaços que se frequenta, nas preocupações que se leva na cabeça todos os dias para o trabalho, no modo como olhamos até o amor, a amizade, a relação com o vizinho até ao papel do Estado da nossa vida, entre tantas outras coisas. Não basta atualizarmos os cadernos reivindicativos se a folha em que escrevemos os novos amanhãs que cantam ficou empatada no correio que atrasou.
4. Partido, identidade, alianças
A perceção popular de que a geometria política se alterou e hoje vivemos empurrados a escolher entre dois grandes blocos político-ideológicos obriga todos os partidos a tomarem, de antemão, escolhas sobre alianças pré ou pós eleitorais. Para os mais interessados na matéria, vale a pena atentar à dedicação que o jornalismo deu a isso nesta campanha eleitoral: esmiuçou mais hipotéticos cenários, alguns deles completamente irrealistas, do que propriamente as propostas de cada partido. Em nome da transparência, é importante que cada um diga ao que vem e a política de acordos não é matéria de somenos importância num ambiente político onde a probabilidade de existência de maiorias absolutas é mais reduzida. Dito isto, é essencial, mantendo-me na linha de raciocínio em defesa da transparência, que prevaleçam as identidades ideológicas e partidárias. São elas que, afastados os cenários de putativas soluções conjuntas, permitem apontar novas estratégias e reinventar horizontes numa época onde é cada vez mais difícil pensar para lá da espuma dos dias. O enquadramento ideológico de um partido pode ser um pesadelo se se tornar um dogma pronto a responder a todas as suas derrotas, mas na crise é o leme que ajuda a atravessar algumas tempestades.
5. Ampliar o campo democrático, progressista, socialista
A ascensão do discurso fascista um pouco por toda a Europa e no Mundo vai pressionar muitas organizações políticas de esquerda a adotar um discurso de resgaste da imagem do homem operário branco menosprezado, deitando por terra um património construído nas últimas décadas (mais teórico do que prático, para ser honesto) que convidou a esquerda radical a decolonizar-se, olhar para setores da sociedade até então excluídos da própria identidade historicamente produzida sobre a ideia de “proletariado” por este espaço político. Esse caminho, tentação para alguns com certeza, pode muito bem significar mais um prego no caixão de um projeto que se quer emancipatório para a classe trabalhadora. Por outro lado, parece-me evidente não ser comportável insistir numa formulação teórica onde a luta contra o sistema capitalista se configura como uma espécie de constelação de opressões onde cada setor excluído se organiza à margem de qualquer denominador comum. Não é preciso repescar ipsis verbis a conceção clássica de luta de classes tal como Marx a concebeu num período onde a revolução industrial constituiu, por necessidade, uma classe trabalhadora mais facilmente detetada do ponto de vista social, cultural, económico. Porém, esse prisma continua a ser guião válido para uma visão ampla sobre quem é então essa maioria social que pode transformar o mundo.
A política mudou e, com isso, a forma de a fazer. A habilidade para formar avenidas nos atuais becos sem saída dependerá de uma geração antifascista 2.0. Novas sínteses para avermelhar programas socialmente mais amplos.
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