Bolsonaro enreda-se. As Forças Armadas ainda se safam
Novos depoimentos no inquérito sobre a tentativa de golpe comprometem ainda mais o ex-presidente. Ex-comandantes do Exército e Aeronáutica afastam-se da trama. Mas suas instituições prestarão contas ao país?
Publicado 15/03/2024 às 19:13
Nesta sexta-feira (15) vieram à tona as íntegras dos depoimentos do comandante do Exéŕcito no governo Bolsonaro, general Marco Antônio Freire Gomes, e de Carlos de Almeida Baptista Jr., comandante da Aeronáutica na mesma gestão. Ambos deram testemunhos que implicam ainda mais o ex-presidente na tentativa de golpe para continuar no poder após a derrota na eleição de 2022.
Baptista Jr. afirma em seu depoimento que ouviu o próprio Bolsonaro apresentar a “hipótese de utilização da Garantia de Lei e da Ordem (GLO) e outros institutos jurídicos mais complexos, como a decretação do Estado de Defesa para solucionar uma possível ‘crise institucional'”. O general relata que teria tentado dissuadir o então presidente a não usar desses expedientes, já que não serviriam para mantê-lo no poder depois do fim de seu mandato.
Segundo o ex-comandante da Aeronáutica, em um encontro realizado após o segundo turno das eleições, após Bolsonaro ter aventado “a hipótese de atentar contra o regime democrático por meio de algum instituto previsto na Constituição (GLO ou Estado de Defesa ou Estado de Sítio)”, Freire Gomes teria afirmado que “caso tentasse tal ato, teria que prender o Presidente da República”. O próprio Baptista Jr. teria dito a Bolsonaro que não aceitaria “qualquer tentativa de ruptura institucional para mantê-lo no poder” após 1° de janeiro de 2023. Já o então comandante da Marinha, Almir Garnier Santos, teria colocado “suas tropas à disposição de Jair Bolsonaro”, conforme o depoimento.
Outra pessoa também implicada é o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, que teria apresentado uma minuta aos comandantes das Forças Armadas para “conhecimento e revisão”. Ao ser questionado por Baptista Jr. se o documento tratava sobre a “não assunção do cargo pelo novo presidente eleito”, o ministro teria ficado calado e o comandante da Aeronáutica teria entendido que “haveria uma ordem que impediria a posse do novo governo eleito”, recusando-se a receber a minuta.
Freire Gomes, em seu depoimento, também confirmou ter ouvido do próprio Bolsonaro hipóteses de utilização de GLO, Estado de Defesa e Estado de Sítio, tendo afirmado como resposta que “não participaria na implementação desses institutos jurídicos visando reverter o processo eleitoral”.
Ele ainda confirma ter estado em uma reunião com Bolsonaro, Nogueira e Garnier onde foi apresentada uma minuta que previa a decretação do Estado de Sítio seguida de Operação de Garantia da Lei e da Ordem. A justificativa se baseava na “restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil” diante de decisões “inconstitucionais” do Supremo Tribunal Federal que não atenderiam ainda ao “princípio da moralidade” consagrado na Constituição.
O general relata ainda que em reunião convocada por Paulo Nogueira teria sido apresentada uma outra minuta com decreto de Estado de Defesa e a criação de uma “Comissão de Regularidade Eleitoral” para “apurar a conformidade e legalidade do processo eleitoral”. O documento foi identificado por Freire Gomes como sendo o mesmo apreendido na casa do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro Anderson Torres.
Ação e reação
A íntegra das duas falas veio à tona após o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, ter derrubado nesta sexta o sigilo dos depoimentos das pessoas ouvidas no inquérito que investiga uma tentativa de golpe de Estado elaborada no âmbito do governo Jair Bolsonaro. Moraes argumentou que a decisão foi tomada “diante de inúmeras publicações jornalísticas com informações incompletas sobre os depoimentos prestados à autoridade policial”.
A divulgação, porém, também serve para que aqueles que se mantiveram em silêncio na Polícia Federal possam ser estimulados a falar, já que alguns personagens estão bastante comprometidos, não apenas pelo testemunho dos depoentes, mas pelo cruzamento das informações dadas com o material apreendido em mandados de busca e apreensão, principalmente com o ex-ajudante de ordens Mauro Cid.
Não faltam elementos de prova contra Bolsonaro e seu entorno mais próximo, mas a Polícia Federal pretende consolidar um conjunto probatório robusto, já que os ataques à investigação por parte de extrama direita estão se avolumando. Este segmento, sabe-se, tem há tempos no sistema de Justiça – em especial o Supremo Tribunal Federal – o seu alvo principal.
Assim como faz Donald Trump nos Estados Unidos, a ideia é apresentar Bolsonaro como uma “vítima do sistema”. Lá, essa narrativa tem sido bem sucedida em função de o Partido Republicano não ter tido força política para apear o bilionário de sua posição dentro da sigla após o episódio do Capitólio em 6 de janeiro. Desde então, ele conseguiu consolidar, entre seus eleitores, a falsa versão de que as urnas teriam sido fraudadas em 2020.
No Brasil, Bolsonaro, inelegível, tem menos poder de fogo, e os ataques ao sistema eleitoral encontram freios nos tribunais. Assim, articular apoio fora do país, onde os extremistas de todos os lados têm reforçado ainda mais sua cooperação/conexão, é uma saída para manter a chama acesa de sua base.
Uma mostra da estratégia foi a ida de uma comitiva brasileira, liderada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) até Washington, para tentar emplacar o evento “Brasil: Uma crise da democracia, da liberdade e do Estado de Direito?”, que seria realizado na Comissão de Direitos Humanos do Congresso americano. A audiência acabou barrada pelo democrata Jim McGovern, que preside o colegiado junto com o republicano Chris Smith.
McGovern, aliás, foi certeiro em sua análise em entrevista à Folha de S. Paulo. “Parece que foi desenhada para dar a ele [Eduardo Bolsonaro] cobertura e legitimidade, e esse não é o propósito da nossa comissão”.
Ainda que a expressão “direitos humanos” possa soar estranha saindo da boca de extremistas, é bom lembrar não só que se trata de um segmento que convive bem com a dissonância cognitiva como também dá sentido próprio aos próprios direitos humanos. Em sua lógica, obviamente Bolsonaro é um “humano direito” que merece o tratamento seletivo advogado pelos seus apoiadores.
A saída das Forças Armadas
Em seus depoimentos, Freire Gomes e Baptista Jr. sustentam ter refutado as hipóteses de ruptura propostas por Bolsonaro. E alinham outros fatos, como a ira de Walter Braga Neto contra o comandante do Exército, por este não ter aderido ao golpismo. Mas isso não os livra de dar explicações.
Os três comandantes ascenderam ao cargo após uma inédita saída tripla do comando das Forças em 30 de março de 2021, quando também saiu do Ministério da Defesa o general Fernando Azevedo e Silva. Junto com Braga Netto, o trio seria mais alinhado ao presidente do que os ocupantes anteriores.
Em dezembro de 2022, Baptista Junior tinha a pretensão de deixar o cargo no dia 23, antes da posse de Lula, o que gerou um princípio de crise. Os três comandantes de Força teriam combinado deixar o cargo antes, em um movimento que teria sido acertado em uma reunião no Palácio da Alvorada com Bolsonaro. A iniciativa foi vista pelo governo de transição à época como um sinal de insubordinação. Seria uma recusa dos comandantes de prestarem continência a Lula, já que o presidente usualmente participa das cerimônias de passagem de cargo. Após o clima ruim, a transmissão de comando do Exército foi antecipada para o dia 30 e a da Marinha e Aeronáutica aconteceu no dia 2 de janeiro.
Em novembro de 2020, no entanto, ocorreu o caso mais emblemático. Os três comandantes assinaram uma nota conjunta intitulada “Às Instituições e ao Povo Brasileiro”, vista como um endosso aos acampamentos golpistas, uma crítica ao STF e uma justificativa pretensamente formal para a inação dos militares diante deles.
“A Constituição Federal estabelece os deveres e os direitos a serem observados por todos os brasileiros e que devem ser assegurados pelas Instituições, especialmente no que tange à livre manifestação do pensamento; à liberdade de reunião, pacificamente; e à liberdade de locomoção no território nacional”, dizia o documento. E prosseguia: “Assim, são condenáveis tanto eventuais restrições a direitos, por parte de agentes públicos, quanto eventuais excessos cometidos em manifestações que possam restringir os direitos individuais e coletivos ou colocar em risco a segurança pública; bem como quaisquer ações, de indivíduos ou de entidades, públicas ou privadas, que alimentem a desarmonia na sociedade.”
No celular de Mauro Cid, a Polícia Federal encontrou um áudio enviado a Freire Gomes no qual ele ressaltava a importância da nota para a “manutenção e intensificação dos movimentos em frente aos quartéis e o deslocamento para o Congresso, STF e Praça dos Três Poderes”. Ao ser indagado sobre o áudio e o documento, o general respondeu que os comandantes tinham o objetivo de “passar uma mensagem de pacificação à população e às instituições”, entendendo que “precisavam dar uma resposta institucional à sociedade como um todo”.
Difícil engolir a versão de Freire Gomes. Até porque a nota, daquela vez, não havia sido assinada pelo ministro da Defesa Braga Netto, o que muitos entenderam como uma forma de ressaltar que se tratava de um posicionamento institucional das Forças. E era. À época, o professor Eurico Lima da Figueiredo, do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF) dizia ao Uol que “em uma democracia plena e consolidada, as Forças Armadas não têm de fazer declarações nem pronunciamentos, pois são instituições de Estado e mudas, no sentido de que cumprem seus deveres constitucionais”.
No início dos anos 2000, Chico Buarque deu uma entrevista na qual afirmava que uma pasta útil a ser criada para um governo seria o “Ministério do Vai dar Merda”, cujo titular teria a função, como o próprio nome diz, de advertir para situações e ações que certamente dariam errado se fossem implementadas. Talvez Freire Gomes e Baptista Jr. possam se jactar de terem exercido tal função nas reuniões preparatórias do golpe. Mas a pose de legalistas não resiste à exposição prolongada de uma lente mais acurada. E as Forças Armadas continuam devendo uma resposta como instituição ao país.
E Carla Zambelli?
Além de episódios como o que envolve a contratação de Valter Delgatti, o “hacker de Araraquara”, para atividades potencialmente ilegais, para dizer o mínimo, a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) foi citada no depoimento de Baptista Jr..
O militar conta que foi abordado pela parlamentar, após a formatura de aspirantes a oficial da FAB em dezembro de 2022, com a indagação: “Brigadeiro, o senhor não pode deixar o Presidente Bolsonaro na mão”. Ele teria dado a resposta: “Deputada, entendi o que a senhora está falando e não admito que a senhora proponha qualquer ilegalidade”. Ele diz ter contado o episódio ao ministro da Defesa, que também teria sido abordado da mesma forma por Zambelli.
Não seria surpreendente se alguma das próximas etapas da investigação alcançasse os possíveis braços parlamentares do golpe.
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