CUBA: UMA SOCIEDADE EM MOVIMENTO.
Por Lúcio Costa*
Refletir sobre Cuba exige superar os muitos véus que impedem de ver a dinâmica efetiva, os problemas e os desafios reais da sociedade cubana. Os obstáculos que se interpõem à reflexão são de distintas ordens. Há o discurso do Governo dos Estados Unidos da América e suas agências de propaganda para os quais Cuba é uma ditadura comunista; existe o discurso dos saudosistas do socialismo realmente existente na URSS e nos países do Leste Europeu para os quais Cuba é a realização plena do socialismo e, por fim, temos aqueles que olham para Cuba e enxergam nela uma ditadura estalinista com mojitos, Pablo Milanés e Silvio Rodrigues.
Em todos estes discursos sobre Cuba e sua Revolução, em que pesem suas distintas motivações e orientações político-ideológicas, encontramos o elemento comum da estandardização e redução de Cuba à realidade de uma sociedade que, seja por seus erros – ser um estado totalitário – ou por seus acertos – ser a materialização plena da utopia socialista – em que o devenir é esterilizado, congelado pela repetição dos dogmas. Olhar para Cuba pede despir-se destes véus e tomá-la como ela efetivamente é, como é vivida e pensada pelos cubanos e cubanas realmente existentes.
Inicialmente, há que sublinhar o fato de que nestes quarenta e nove anos abertos com a derrubada do ditador Fulgêncio Batista, Cuba viveu um processo acelerado de mudanças. Transformou-se de uma sociedade rural, jovem, com imensas massas de analfabetos, em que os serviços públicos alcançavam reduzidos setores da população em uma sociedade urbana na qual cerca de 70% da população vivem nas cidades, em que os serviços públicos como, por exemplo, saúde e educação são universais, em que existe uma maciça presença feminina no mercado de trabalho e nas universidades, onde a universalização dos serviços públicos ampliou a expectativa de vida o que implicou que o contingente de pessoas da terceira idade tenha se ampliado significativamente, com índices de violência e criminalidade baixíssimos se comparados a quaisquer países da América Latina e África e mesmo aos EUA.
No entanto, a realidade revelada acima não implica em que mazelas de séculos de subdesenvolvimento tenham sido plenamente superadas. Cuba ainda não conseguiu romper plenamente com os limites de uma economia dependente de produtos primários e, se é verdade que não existem favelas em que milhões de pessoas vivem em sub-habitações, sem saneamento ou serviços sociais todavia ainda persiste um importante déficit na construção de moradias populares.
Desde o ponto da vida social, as transformações iniciadas com a Revolução deram origem a um processo de reorganização da sociedade civil existente, pois de um lado, toda uma série de formas associativas desapareceram e, por outro lado, surgiram novas organizações.
A reorganização da sociedade cubana no período posterior à Revolução deu origem tanto a novas organizações profissionais e civis, quanto a "organizações de massas". Estas últimas, têm caráter nacional e representação legal de determinados setores sociais junto ao Estado como, por exemplo, a Central de Trabalhadores de Cuba, Federação de Mulheres Cubanas, Comitês de Defesa da Revolução, Federação de Estudantes Universitários e a Federação de Estudantes do Ensino Médio.
Ao longo dos anos a nova estrutura demográfica, a mobilidade social ascendente decorrente da democratização das relações de renda e poder, a elevação dos níveis de escolaridade e formação cultural da população ensejaram mudanças que, ao longo destes últimos quarenta e nove anos, foram tornando o tecido social cubano mais complexo e plural.
O processo de complexificação e ampliação da pluralidade social e cultural cubanas tem dado origem ao nascimento de novas sensibilidades culturais e demandas sociais as quais se expressaram em novas redes de sociabilidade e formas associativas que se expressam, por exemplo, no surgimento de associações de caráter local, profissional, desportivo, cultural, ecumênico, étnico, ONGs, etc.
Nos anos oitenta, o processo de "retificação dos erros e tendências negativas da Revolução" levou a uma maior valorização da participação popular. Na década de noventa, ocorreu uma ampliação significativa do associativismo em Cuba. Em decorrência da brutal crise econômica quando da queda de aproximadamente 30% do PIB e de cerca de 80% de seu comércio internacional em função do fim do "socialismo realmente" existente na URSS e nos países do Leste Europeu deu-se tanto o crescimento do protagonismo popular nos marcos das formas organizativas já existentes, quanto o surgimento de novas organizações civis.
Registre-se que a ampliação do papel e das funções de organizações já existentes como, por exemplo, as igrejas e também as novas redes e formas associativas, tais como as associações de moradores, desempenharam um papel relevante no enfrentamento da dura realidade do "período especial" colaborando para fazer frente às carências e necessidades que a ação do Estado por si só já não era capaz de atender.
Levar em consideração este cenário, nos permite compreender porque o discurso do presidente cubano, Raul Castro, em 2007, quando da comemoração do 26 de Julho – dia do ataque da guerrilha de Fidel ao quartel Moncada em 1956 – chamando à discussão ampla e profunda dos problemas que afligem o país e das soluções que devem ser tomadas encontrou eco, desatou esperanças e teve como resposta a participação cidadã nos debates travados nos bairros e locais de trabalho.
O recente congresso da UNEAC (União Nacional de Escritores e Artistas Cubanos), realizado em fins de março em Havana, faz parte e revela a profundidade dos debates travados em Cuba.
Refletindo o momento vivido, em seu discurso o vice-presidente dos Conselhos de Estado e de Ministros, Carlos Lage Dávila, falou às claras problemas de Cuba ao dizer que “viemos da ausência dramática de alimentos e medicamentos, de ruas desoladas, de noites às escuras, de dupla moeda”, da “dupla moral, das proibições, de uma imprensa que não reflete a realidade como queremos, de uma desigualdade indesejada”. Segundo o Ministro, estas “são feridas de guerra, de uma guerra que ganhamos”.
Ao falar no Congresso, num discurso bastante difundido, o importante intelectual e historiador, Eusébio Leal, afirmou que "se estão tocando coisas tão profundas como aquelas que em 1959 – e antes – minha geração via como as mais altas aspirações" e que "é necessário nos prepararmos para o novo destino de nosso país".
Nos debates travados entre os intelectuais cubanos encontramos uma aguda avaliação das questões mais diretamente "culturais" tais como, a crítica aos "anos cinzentos" da década de setenta, quando o "realismo socialista" impunha como normas o "maniqueísmo e dogmatismo"; a "prática cultural dos meios de comunicação de massa" cubanos com sua "banalidade e trivialidade" aliadas a presença neles de "ideologias reacionárias através dos produtos midiáticos dos Estados Unidos e de seus epígonos e análogos do Brasil, México e outros países".
Criador e criatura desta sociedade civil que debate e busca soluções para os problemas do país, há cerca de um mês, o jornal diário GRANMA, órgão do Comitê Central do PC de Cuba, tem dedicado todas as sextas-feiras quatro páginas para a sessão "Cartas à Direção". Nesta, os leitores e leitoras têm apresentado suas opiniões e criticas.
Para que não se incorra na tentação de acreditar que as cartas publicadas trazem apenas reflexões de menor relevância tomemos a edição de 11 de abril. Nela, encontramos uma carta intitulada "Não funciona o conceito de nos sentirmos donos" na qual o Sr. P. Núñez sustenta que "o conceito de que todos somos donos dos meios de produção, é uma frase de ocasião sem maior sustento real" porque "ser dono implica em participação efetiva e total, desde a determinação com pleno conhecimento de causa do que e como vai ser feito". Em outra carta, "Mais Produtores", do Sr. I. Hernández Lorenzo, é dito que o "trabalhador não deve ser apenas uma engrenagem do Estado mas sim agente transmissor de idéias e conhecimentos". Expressão deste momento de debate, no dia 28 de abril, quando da realização da 6a Plenária do Comitê Central, o Bureau Político informou que considerava necessário realizar o 6º Congresso do Partido que, segundo comentários, deve ocorrer em fins de 2009.
Como vimos, ao longo dos anos a sociedade civil tem demonstrado sua vitalidade, complexidade, pluralidade e capacidade de aportar protagonismo e reflexões às discussões travadas no Estado, no Poder Popular e no Partido Comunista de Cuba em torno dos problemas, encruzilhadas e caminhos que Cuba deve trilhar.
Como dizia Marti, "ganado el pan hagase la poesia". Daí que a preservação do socialismo existente em Cuba relaciona-se à capacidade que a Revolução tenha de enfrentar e superar os problemas econômicos surgidos com a crise econômica posterior ao fim da URSS e dos estados socialistas do Leste da Europa.
No entanto, a consecução mesma deste objetivo dependerá em boa medida tanto da capacidade que tenha o Estado de relacionar-se positivamente com a sociedade civil cubana, superando o dogmatismo e o burocratismo aprofundando o reconhecimento da importância do protagonismo popular no enfrentamento aos problemas econômico-sociais, quanto da capacidade da sociedade civil, das organizações populares, de desempenharem um papel ativo e propositivo na renovação do socialismo. Mais uma vez, os destinos da Revolução Cubana encontram-se nas mãos do povo!
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Lucio Costa é advogado, membro da Executiva Estadual do PT do RS e da Coordenação Nacional da Democracia Socialista (DS, tendência interna do PT) e participou do VII Encontro Hemisfério Contra os Tratados de Livre Comércio e Pela Integração dos Povos, realizado no inicio de abril passado em Havana.
Fonte: Site Perspectiva Internacional.
Um comentário:
Olá, Carlos,
Há tempos que venho aqui te visitar, e agradecer o link, devidamente retribuído.
Mas sempre estou apressada, etc.
Hoje finalmente te escrevo e parabenizo pelo excelente blog.
Grande Abraço.
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